sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12265: FAP (79): Os Dias do Strela - Há 40 anos na Guiné (Paulo Mata / Miguel Pessoa)

1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Reformado), com data de 6 de Novembro de 2013, a propósito da publicação de um trabalho sobre a sua odisseia de 25 de Março de 1973, data em que a aeronave que pilotava foi atingida por um míssil Strela.

Olá Luís
Na realidade este artigo do Paulo Mata resultou de um conversa que tivemos no decorrer de um dos nossos almoços da Tabanca do Centro.
O Paulo Mata é um "jovem" de uma geração mais nova que a nossa, que tem o "bichinho" da aviação. Tem aparecido em alguns desses nossos almoços a meu convite e mostrou-se interessado em contar essa minha história.
Para teres uma ideia mando-te o texto saído na revista "Take-Off", com uma disposição gráfica um pouco diferente da que foi publicada no "Pássaro de Ferro" (por acaso até gosto mais desta última).
Sobre uma referência no blogue, tu saberás o que interessa publicar; por mim não vejo nenhum inconveniente, embora já se conheça o final... Até acho que está bem escrita - e o Paulo até me deu a oportunidade de lhe dar uma olhadela antes de ser publicada, não fosse haver alguma imprecisão.
Bom, talvez haja uma - do pessoal abatido pelo Strela fui realmente o único que terminou a comissão.
Outro pessoal que se ejectou antes do meu tempo, não te posso confirmar se acabou por concluir a sua comissão ou não. Mas isso provavelmente não é assim tão importante - apenas serviu para eu tentar explicar quão difícil foi o meu regresso ao "local do crime".
Já tive a oportunidade de referir isto por várias vezes: Quando me perguntavam se senti medo após o meu regresso, disse que sim - não o medo de ser outra vez abatido e morrer, mas sim o de ficar vivo. É que não me via a passar outra vez por aqueles episódios que vivi naquelas vinte horas que estive no chão, provavelmente com um fim bem menos feliz que da primeira vez...

Abraço.
Miguel




2. Assim, com a prévia autorização do autor, Paulo Mata [foto acima], passamos a reproduzir, com a devida vénia, o texto e fotos publicados no Blogue Pássaro de Ferro


OS DIAS DO STRELA - Há 40 anos na Guiné

Texto: Paulo Mata
Artigo publicado no jornal Take-Off de abril de 2013

Um Fiat G.91 R/4 com a configuração habitual de depósitos e rockets sob as asas    Foto: AHFA

Há momentos que marcam uma vida. Há 40 anos, a bordo do Fiat G.91 com a matrícula 5413 da Força Aérea Portuguesa, em missão nos céus da Guiné, o então Ten PILAV Miguel Pessoa teve vários desses momentos, quando foi atingido por um míssil terra-ar SA-7 Strela e teve de se ejectar em território hostil.
O Ten. Miguel Pessoa com equipamento de voo à saída da Esquadra 121 na BA12 - Bissalanca

A 25 de Março de 1973, cumprindo o serviço de alerta na BA12 em Bissalanca, na Esquadra 121- Tigres, que operava os Fiat G.91, a parelha é chamada a responder a um ataque com canhões e foguetões, sobre o aquartelamento de Guileje, no sul da Guiné Bissau, bem próximo da fronteira com a vizinha Guiné Conacri. De serviço nesse Domingo, o Ten. Miguel Pessoa acabaria por descolar sozinho, de modo a identificar visualmente as posições do  inimigo e transmitir a informação ao avião que descolaria em segundo lugar, entretanto equipado com o armamento mais adequado.

A placa de estacionamento com abrigos laterais na BA12 - Bissalanca onde ficavam estacionados os Fiat G.91 da Esq.121

Se há momentos a evitar, estar do lado errado de um lança-mísseis é certamente um deles. Mas foi isso exactamente que aconteceu a Miguel Pessoa, na aproximação a Gandembel, local referenciado pelo aquartelamento como provável base de fogo do inimigo que flagelava Guileje. Já cinco dias antes tal havia acontecido também, então no norte do território, com o míssil (então desconhecido) a deixar um rasto branco, por entre o seu avião e o do TCor Almeida Brito, com quem voava em formação. Desta vez não chegou a ver nada. Sentiu apenas a detonação do míssil na traseira do avião, e imediata perda de potência na turbina.

Um Fiat G.91 R/4 em picada sobre o inimigo    Foto: AHFA

E se há momentos que podem marcar a diferença entre a vida e a morte, puxar a alça de ejecção de uma cadeira ejectável num avião em queda, é certamente também um deles. Momentos que parecem desmultiplicar o tempo e multiplicar as forças. O gesto de puxar a alça de ejecção sobre a cabeça (mecanismo que oferece alguma resistência) foi feito de tal forma, que o piloto julgou estar o sistema de ejecção avariado, tal foi a facilidade com que a alça se moveu. Por outro lado, a ausência de resposta dos foguetes que deveriam impulsionar a cadeira, reforçou a mesma ideia, levando-o a considerar a hipótese de accionar o sistema secundário de ejecção, situado no assento da cadeira, entre as pernas. Contudo, antes de esboçar esse movimento, dava-se já a ignição dos foguetes, que iniciavam a extracção da cadeira do avião. Afinal tinham-se passado apenas 0,3 segundos.

Cadeira ejectável Martin Baker MkG W4B usada nos Fiat G.91 R/4 portugueses e que salvou a vida ao Ten. Miguel Pessoa

A escassa altitude, com o avião em queda desgovernada e já sem comandos devido a falha do sistema hidráulico, Miguel Pessoa ejecta-se da aeronave no último instante. De tal modo, que o pára-quedas não chegou a abrir totalmente, tendo o piloto entrado pelo arvoredo adentro com velocidade excessiva, o que lhe viria a causar a fractura do perónio, no embate com o solo. Acordado no meio de mato cerrado, depois de alguns minutos de inconsciência, havia que avaliar a situação.
Sem ter tido tempo para enviar um pedido de socorro, em zona não controlada por forças amigas, cercado de vegetação densa e inferiorizado fisicamente por uma perna partida e com fortes dores nas costas devido à violência da ejecção, o futuro afigurava-se incerto e pouco risonho para o piloto português. Explorando o kit de sobrevivência que transportava, do material que continha, elegeu osvery-lights e uma pequena bússola, como verdadeiramente úteis, esquecendo os restantes itens por falta de uso prático. Não havia rádio para poder comunicar. Na verdade, era a primeira vez que via tal material. Os treinos de sobrevivência não eram então o que são hoje.
Deslocou-se conforme pôde para uma zona de floresta menos densa, de modo a conseguir lançar osvery-lights e esperou pela passagem de alguma aeronave amiga. Apesar de não ter enviado pedido de socorro, a sua ausência seria naturalmente notada.
Passado pouco tempo, ouvia já de facto o ruído de aviões a jacto, mas a sua (falta de) visibilidade para o céu contudo, impedia-o de saber com certeza, a proximidade das aeronaves e avaliar o momento adequado para o lançamento dos foguetes de sinalização. Passava das 5 da tarde e as esperanças de resgate durante o dia diminuíam com a mesma velocidade da luz do sol, que na Guiné se desvanece cedo e rapidamente. Haveria que passar a noite no meio do nada. A única possível companhia que se afigurava então, era a que menos pretendia: o inimigo. Teriam visto o local do despenhamento? Teriam visto os very-lights que lançou? Andariam à sua procura? Perguntas às quais apenas os ruídos da floresta respondiam. Não tinha sequer a arma de mão que fazia parte do equipamento normal para missões de combate, uma vez que estava no fato anti-G, que não havia vestido, para ganhar tempo na resposta ao alerta.
A noite foi interminável. Apesar do cansaço, pouco dormiu. Todos os barulhos pareciam movimentos dissimulados no escuro da floresta. Todas as sombras se podiam confundir com vultos humanos. Num dos breves momentos em que conseguiu dormir alguma coisa, enganando as dores que sentia, acordou sobressaltado com a sensação de movimento junto à perna magoada. Seria uma serpente, ou apenas a perna partida a latejar? Na escuridão não arriscou mexer-se para saber. Se dum animal se tratou, nunca o chegou a saber. A sensação passou e pelo clarear da aurora já nada lá se encontrava.

Pela manhã, ainda que cansado, e com sinais de desidratação, visto não ter bebido qualquer líquido desde a hora de almoço da véspera, o moral melhorou com a perspectiva de ser resgatado. Não demorou muito para ouvir o som de aeronaves a sobrevoar a zona. Na verdade, havia sido localizado ainda na véspera, pelo TCor Almeida Brito, que em G.91 visualizou um dos very-lights lançados, já muito perto do anoitecer. A hora tardia contudo, inviabilizou o destacamento duma força de resgate ainda no mesmo dia.
O ruído característico dos helicópteros Alouette III fazia-se também ouvir nas proximidades, mas por via das dúvidas e por desconhecer ainda se já havia sido localizado ou não, lançou os very-lights que lhe restavam. Vestiu a camisola interior branca por cima do fato de voo, de modo a ficar mais visível, mas a ajuda tardava. Passavam já três horas desde o amanhecer e nada. Tentou fazer uma fogueira com alguns fósforos alegadamente anti-humidade, mas nenhum acendeu. A desidratação começava então também a pregar partidas, ao toldar os pensamentos e perturbar o discernimento. 

Marcelino da Mata com a catana na mão e o seu grupo posam para a foto após encontrar o Ten. Miguel Pessoa

Quando finalmente conseguiu divisar pessoas na sua proximidade, eram… africanos. Armas Kalashnikov e uniformes estranhos. Na falta de melhores argumentos para se defender, optou por insultar o que supunha serem elementos do PAIGC, portanto o inimigo. Estes contudo, trataram-no pelo próprio nome, o que lhe baralhou o raciocínio. O chefe identifica-se como sendo Marcelino da Mata, conhecido líder de um grupo de operações especiais das forças portuguesas, embora formado por elementos de etnia africana. Apesar de conhecer a sua fama, o Ten. Pessoa nunca o tinha visto pessoalmente. O facto de saberem o seu nome também facilmente se explicava, ou por informadores na base, ou por escuta de comunicações rádio, pelo que não estava convencido ainda. Sabendo que o verdadeiro Marcelino da Mata era conhecido por trazer sempre consigo cantis com Fanta ou Coca-Cola, pediu de beber e confirmou a veracidade da identidade através das bebidas. Foi uma espécie de o santo-e-senha improvisado. O regresso, apesar de penoso e demorado, devido à dificuldade em andar com a perna fracturada por entre a vegetação densa, não teve grande história. 

O penoso regresso a pé pela mata

O Alouette que o havia de transportar de regresso, encontrava-se na orla da mata e os restantes helicópteros que tinha ouvido mais cedo, destinavam-se à colocação dos grupos de caçadores pára-quedistas e de operação especiais que tinham ido em sua busca. Com uma primeira paragem em Guileje, onde outro helicóptero o haveria de transportar para o hospital militar, a jornada terminaria finalmente na BA12, após os exames médicos e tratamento da perna fracturada, onde um numeroso grupo festejou o seu regresso e o sucesso da missão de recuperação.

O Alouette III que transportou o Ten. Miguel Pessoa na chegada a Guileje
Aspecto da zona de aterragem em Guileje com os helicópteros destacados para transportar os grupos de busca

Há momentos que marcam um ponto de viragem e a introdução dos mísseis terra-ar no teatro de guerra, foi esse momento. Portugal perdia a supremacia dos ares, onde até então se tinha movido livremente. A guerra entrava numa nova fase, decididamente pior para as forças portuguesas. Durante as duas semanas seguintes mais quatro aeronaves seriam abatidas por mísseis SA-7 Strela. As tripulações não tiveram então a mesma sorte do Ten. Pessoa. Uma das vítimas mortais seria mesmo o TCor Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, o mesmo piloto que havia localizado a sua posição no dia 25 de Março e que já havia sido alvejado consigo a 20 de Março na fronteira  norte da Guiné. 
Ficou então patente o modus operandi do inimigo, atacando posições portuguesas no terreno, para depois esperar a chegada dos aviões que vinham em resposta, e assim os alvejar. Após suspensão da actividade aérea, para análise da arma que se enfrentava, sua utilização e características, foram tomadas medidas a nível dos procedimentos nos ataques, altitudes de voo e armamento a utilizar. Depois de implementadas essas medidas, apenas uma aeronave mais seria abatida por um Strela, já em Janeiro de 74 e alegadamente por não ter cumprido os procedimentos definidos. 

O míssil portátil SA-7 Strela      Foto: US Navy

Quanto ao Ten. Miguel Pessoa, após passar duas semanas na enfermaria da BA12 terminaria durante os quatro meses seguintes na Metrópole, a convalescença das mazelas físicas decorrentes da ejecção, nomeadamente a nível do perónio fracturado e da coluna, cuja compressão de 2 cm nunca chegaria a recuperar. Depois deu-se o difícil regresso ao teatro de operações onde quase tinha perdido a vida, com a reactivação da sua comissão. Sem qualquer ajuda psicológica, ou apoio para voltar a enfrentar as mesmas situações de risco, voltar a sobrevoar o local onde tinha sido abatido não foi fácil, tal como não é difícil de compreender. Acabaria por ser o único piloto a terminar a comissão na Guiné, após ter sido abatido em combate. Ainda chegou a ser visado mais quatro vezes por mísseis Strela. Numa delas conseguiu mesmo ver a cabeça de busca do míssil que o perseguia e a tentativa de correcção da trajectória, para prosseguir atrás da fonte de calor que era o seu avião. Quando alguém alude à aura de herói que o rodeou por ter sobrevivido ao abate por um míssil, Miguel Pessoal responde que o verdadeiro acto de registo que teve, foi regressar e enfrentar outra vez o mesmo inimigo, o mesmo perigo, olhos nos olhos. E se os procedimentos de combate adoptados acabaram por lhe salvar a vida, nunca chegaram a ser aplicadas nos aviões quaisquer ajudas em termos de autodefesa relativamente aos mísseis.

De regresso a Portugal, e já depois do fim da guerra, viria a ser instrutor em T-37 na Esq 102 em Sintra. Integrou a patrulha acrobática Asas de Portugal durante sete anos, tendo sido também Comandante da Esq 102 e dos Asas. Foi mais tarde Comandante do Grupo Operacional 51 na BA5 em Monte Real onde voou ainda em A-7P e finalmente Comandante da BA6 no Montijo. Reformou-se com a patente de Coronel em 1998. 

A enfermeira pára-quedista Giselda Antunes à direita carrega a maca do Ten. Miguel Pessoa

Para final de história, em jeito de argumento de filme e dentro do espírito bem português, de conseguir ver sempre um lado positivo numa situação má, do abate que sofreu na Guiné, nasceria uma relação duradoura com a enfermeira pára-quedista Giselda Antunes, que o socorreu em Guileje após o resgate, e viria a tornar-se sua esposa, no regresso definitivo a Portugal.


Perfil do avião em que seguia o Ten. Miguel Pessoa no dia 25/3/1973       Imagem: Paulo Moreno



Agradecimentos: Cor (Ref) Miguel Pessoa, Paulo Moreno, Carlos Santos, Cristiano Valdemar, Vicente Braz, Arnaldo Sousa

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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12206: FAP (78): Nunca tão poucos fizeram tanto com tão pouco... (António Martins Matos / Helder Sousa / Luís Graça)... Fotos do Artlindo Roda

Guiné 63/74 - P12264: Notas de leitura (532): "Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau", por Fernando Antunes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2013:

Queridos amigos,
A literatura luso-guineense vai evidenciando-se neste engrossar de crónicas e múltiplos apontamentos. São pessoas que ganharam amor aquela terra e àquelas gentes, sentem o dever de contar e resumir, são provas de amor entranhado à procura de novos seduzidos.
É o caso de Fernando Antunes, estudou afincadamente a Guiné e dá-nos a sua visão, cheia de coração saudável.

Um abraço do
Mário


Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau, por Fernando Antunes

Beja Santos

Fernando Antunes tem atividade empresarial na Guiné-Bissau, onde viveu entre 1996 e 2001. Refere na sua nota curricular que desde aí vive entre Portugal e a Guiné. O seu livro “Crónicas, Lendas e Usos Costumeiros da Guiné-Bissau”, Chiado Editora, 2013, é uma bem-intencionada evocação da sua relação afetiva aos guineenses, a quem dedica a publicação.

Leu muito para se documentar: sobre a história muito nebulosa das origens do que é hoje a Guiné-Bissau, sobre os impérios Mandinga e Fula, sobre os Balantas, a origem de Cacheu, as delícias de Bubaque, o que é o acampamento da SOMEC, a comida tradicional portuguesa que se come na Adega do Loureiro, como fervilha o mercado de Bandim, como são os transportes públicos, etc.

Discreteia sobre a cosmologia dos balantas, seguimos o seu empolgamento com maior interesse: “No que respeita à origem das coisas, para os Balantas, há um Ser Supremo (N´haala) que é o criador de todos os entes. No começo só havia o N’haala. Este criou a matéria imprecisa (Iaqwat) a qual ao transformar-se no espírito da terra libertou uma outra essência (Sim) traduzida em vapor no qual aparece o arco-íris que, como uma cobra, se lança no mar dando lugar ao Ethe ndan. Destes três elementos – terra, ar, água – é este último o mais importante pois o espírito da água é indispensável para a produção de arroz. Daí que a Grande Cobra seja muito venerada nas ocasiões relevantes da vida dos Balantas. Uma pessoa possuída pelo Ethe ndan é um ser completo. O Balanta na cerimónia do fanado (Fo) é tomado por esse espírito, e só então passa a ser adulto (lambe). Todos são filhos de N’haala e ao mesmo tempo filho de uma geração. São compostos por um corpo (lite), uma parte imortal (flide) e por uma alma (flite). O flide, para este povo, sempre existiu e existirá. Antes de nascerem já existiam e depois da morte do corpo, continuaram a existir, na casa de Deus”.

Trabalhar em África requer uma nova atitude face à gestão do dia-a-dia e conta o que é a sua vida doméstica. Alugou uma casa no centro da cidade, sem água e sem luz, 1300 euros por mês. Comprou um gerador que dá mais problemas que luz. Dias há que água nem vê-la. Com alguma frequência, o gerador recusa-se a trabalhar. E começam as surpresas: “O gerador: nada. Que trabalhasse eu. Aí, tomei medidas drásticas. Telefonei ao homem que trata dos geradores. O que era? A placa elétrica estava queimada. Toca a ir ao libanês, toca a trocar a placa. Eureka! O gerador trabalhou sábado e domingo, depois disse que estava cansado e que trabalhasse eu. Novo pedido ao meu homem. Diagnóstico: o alternador não carregava a bateria. Mas o habilidoso lá resolveu o problema. Agora, e até ver, há luz e água. Aleluia! E é isto o dia-a-dia fora das horas de serviço! No dito serviço as coisas são mais simples. Serão? Vejamos: quando cá cheguei, das seis impressoras que a empresa tem (ou tinha) só uma funcionava – e funciona. Como não há quem as repare e não as há cá à venda, tive de encomendar a Portugal de urgência duas para virem no voo de sexta-feira da TAP. Aguardei ansiosamente que a semana chegasse ao fim para ter alguma segurança em termos de impressoras. No sábado, chega a notícia: a TAP não trouxe carga, só os passageiros e respetiva bagagem. Simples, não?”.

Deambula pela cidade, não se conforma com a degradação aparentemente irreversível que toma todos os domínios. Bom apreciador do convívio à volta da mesa, dá conta daqueles jantares ao ar livre e refere o restaurante a “Fernandinha”, ali a iluminação provem das velas e os pratos de marca são o peixe grelhado a “bica”, ou a espetada de carne, porco e/ou vaca. Quem vai para estes jantares também deve ir preparado para um bate-papo pela noite fora. Naquele dia, imagine-se, falou-se dos Bijagós, os seus valores do sagrado, a natureza dos seus vínculos sociais.

Sempre que pode, vai até ao interior, sabe que existe a Bafatá histórica e a nova cidade. E dão uma dica para outros presumíveis visitantes: “Quem visita a região e quer almoçar não tem muita escolha. Então, recorre-se ao restaurante do Dinis. A D. Célia lá estará à nossa espera com uma cozinha que os anos deram uma forte influência local. A galinha da terra à cafriela, à bica dourada, será o que encontram se, de improviso, irrompem pelo restaurante. E há que esperar, com conversa morna e uma conversa bem gelada, que as coisas são feitas na ocasião e, por estas bandas, não há lugar para pressas”.

Os encontros fortuitos em África têm outro sabor. Estava um grupo em conversa pachorrenta no complexo turístico de Bubaque, Bijagós, quando chegou um casal acompanhado de dois filhos, foram efusiva e deferentemente cumprimentados, se estava a discutir o povoamento das ilhas Bijagós, foi uma surpresa a intervenção do senhor acabado de chegar: “Para os que não me conhecem, passo a apresentar-me: meu nome é Capacura, o que quer dizer ‘Falcão’. Um dia o meu avô contou-me que o seu avô lhe dissera o que lhe tinha sido transmitido pelo seu avô que… No princípio, todas as ilhas dos Bijagós eram desabitadas, exceto a de Orango Grande onde vivia um homem e uma mulher. Ele chamava-se Orakuma, tinha construído uma cabana e vivia trabalhando a terra com a qual se identificava e de onde retirava o seu sustento. A mulher, de nome Oraga, vivia ao ar livre e passava a vida olhar para o céu e a falar com os espíritos. Num dia de ventos fortes, trovões estrondosos e chuva copiosa, Oraga pediu abrigo a Orakuma, que de bom grado lho deu passando, a partir de então, a viver juntos. Dessa união nasceram Ogubane e Ominka. Ogubane tinha uma inclinação natural para se relacionar com todo o tipo de animais, enquanto Ominka foi adquirindo poderes sobre as chuvas e os ventos. Daqui nasceu o povo dos Bijagós, pois foram-se multiplicando e espalhando pelas outras ilhas e ilhéus, dando origem a quatro linhagens distintas”. Ou seja, há sempre uma forte probabilidade de um repasto vir desvelar um mistério.

Fernando Antunes fala-nos dos poilões, dos Brames, dos Mancanhas, dos Manjacos e dos Papéis. Repete-se, são notas despretensiosas de quem foi matar a curiosidade e redireciona para os amigos saberem um pouco mais sobre estes povos. Não há para ali ajustes de contas, nem miserabilismos, nem rancores trazidos do fundo da memória. A tradição já não é o que era, o confronto de civilizações atenuou as lutas pela hegemonia entre etnias diferentes, a vida na cidade rompe com imensas tradições, só os animistas é que parecem manter-se à parte. Muitos jovens abandonam os usos tradicionais, os Manjacos, devido à gravidade dos problemas económicos, emigram com as mulheres, o que representa uma profunda alteração dos papéis dos chefes de família. Recorde-se que a estrutura social assenta na família extensa, nas linhagens, nos poderes dos velhos, o que acarreta uma estrutura vertical. As chamadas etnias mais supersticiosas, animistas, vêm pôr em causa o papel dos anciãos. Os mais velhos que estão associados ao Ser Supremo, são os intermediários face ao desconhecido. No caso dos Balantas, deteta-se que compete ao líder da congregação unir a comunidade em redor das tradições, mas é também patente que a tradição Balanta vai gradualmente separando-se do terreno religioso.

Estas são, em suma, os apontamentos de alguém que quis encontrar respostas para cultos assombrosos e mistérios que se julgavam indecifráveis. Fernando Antunes gosta tanto da Guiné que pretende passar as suas memórias a quem duvide que a Guiné e os guineenses não são um inestimável afeto.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12248: Notas de leitura (531): "Cambança Final", contos de Alberto Branquinho (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 – P12263: Memórias de Gabú (José Saúde) (32): “Ao esforço da Pátria”

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

As minhas memórias de Gabu: uma passagem por Bissau

“AO ESFORÇO DA PÁTRIA”

As minhas memórias de Gabu contemplam uma infinidade de situações por mim vividas e trazidas a público, por entender que nestes pequenos textos se cruzam gerações. Desta vez foi uma passagem por Bissau que meu deu ânimo para colocar na tela este pequeno resumo. 


A frase do título deste texto assume-se claramente estafada, admito. Aliás, terá sido com ênfase que os antigos marinheiros que desafiaram os “mares nunca dantes navegados” partiram para a descoberta de novas aventuras em territórios distantes, mas… “comendo o pão que o diabo amassou”. Foram heróis.

Deixem-me, porém, opinar que a dita efeméride “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”, assimilada num outro prisma, foi, também, substancialmente sugerida aos antigos combatentes que em Angola, Moçambique e na Guiné cumpriram as suas comissões militares. Partia-se para a guerra em honra de uma missão meticulosamente incentivada pelos então senhores do poder que no cais de embarque reforçavam essa velha e misteriosa tese.

Ficava a prece ditada pelo estafado dicionário português que pátria é o “país onde se nasce e de que se é cidadão”. Com efeito, o soldado desconhecido embevecia-se com os discursos daqueles que na hora do adeus se desfaziam em múltiplos dizeres ocasionais, interiorizando a ação psicológica ao soldado sem medo que entretanto começava a ganhar uma outra dimensão. A Guiné, na ótica de ancestrais senhores, pressuponha um porção da pátria lusa que ousara forçosamente defender.

O militar seguia para a guerra convicto que a sua missão era defender um território que era declaradamente português. Seu. De facto, analisando o passado histórico que os nossos antigos navegantes nos legaram, a Guiné era uma província ultramarina onde a bandeira portuguesa se hasteava com presunção. Havia, pois, que defender aquele território que era nosso.

Lembrando dados históricos Nuno Tristão, navegador português, terá chegado à Guiné no ano de 1446. Outras fontes indicam que o primeiro a pisar solo guineense e a navegar nos seus rios, foi Álvaro Fernandes.

A certeza por nós observada ao vivo, e colocando de parte esses laivos históricos, a realidade remete-nos que a Guiné ao longo de 11 anos (1963/1974) foi palco de muitos milhares de militares que pisaram um território que nos foi deveras agreste. A guerrilha, sempre constante, não deu pausas e as suas consequências são sobejamente conhecidas.

Aliás, as suas sequelas apresentam-se para todos nós, antigos combatentes, como resquícios de pequenas/grandes memórias que contemplam ainda hoje o nosso já vasto palco da vida terrena e que nos remetem para imagens de outrora que guardamos honradamente no baú das recordações.

Olhando atentamente a foto exposta, certamente que todos os camaradas que tiveram oportunidade de passear pela cidade de Bissau e passarem ao cimo da avenida principal, defronte ao “chalé” do então governador, ter-se-ão deparado com este monumento erigido em tempos idos.

Naquela altura o verbalizado monumento forneceria ao esmerado guerrilheiro uma simbólica força interior que o conduzia ao fundo da dita avenida, precisamente numa das suas ruas transversais, montar uma emboscada a um prato de ostras, servidas com um molho africano, ou de uma travessa de camarão gigante grelhado e “derrubar” umas boas cervejas, mandando por ora os estridentes sons do armamento de guerra às urtigas. Combatia-se, simultaneamente, um eventual ataque de paludismo, ou um ataque de formigas, ou de abelhas em pleno mato. O momento era de lazer. A companheira G3 estava agora acomodada algures num eventual abrigo e num qualquer buraco em que a Guiné era fértil. 

Bissau assumia-se como ponto de embarque e de partida. Pela cidade movimentavam-se batalhões de tropas. Os que chegavam, alcunhados de piriquitos, desbravavam a nova metrópole; os velhos, já conhecedores da burgo e dos seus buracos, percorriam as ruelas com um certo à vontade. Havia no entanto um cuidado sempre atempado: um contacto com a PM que impunha a ordem pública e que esporadicamente se envolvia com veteranos de guerra que mandavam os camaradas policiais declaradamente às malvas. 

O alcatroado das ruas da cidade de Bissau, ou o pó das apertadas ruelas onde proliferavam casas tipo europeu, foram entretanto substituídos pelos amargurados trilhos e picadas num mato adensado, onde o imprevisto imperava a cada instante e o soldado sem medo desvendava rumos sempre impensáveis.

Reporto-me à foto onde estou sentado no já referido monumento, ficando a certeza que o clique foi justamente dado aquando vim de férias, abril de 1974, e quando o meu papel na Guiné pressuponha um antecedente grito de liberdade que parecia já entoar nos bastidores de um regime prestes a chegar ao fim: o 25 de Abril!... Num país já em liberdade, Portugal, atrevo-me a citar que para trás ficava a meteórica frase ostentada naquele irreverente monumento a jovens enviados para as frentes de combate, aniquilando os seus sonhos, e que mui pomposamente dizia: “AO ESFORÇO DA PÁTRIA”.

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12262: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (3): Um bacalhau que ficou para a história

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Cardoso (ex-Soldado de TRMS do Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74), com data de 4 de Novembro de 2013:

Meu caro amigo, Carlos Vinhal:
Envio o presente texto, que é mais um episódio dos que retenho na memória.
Peço-te o favor de o ler e, caso entendas ser digno de publicação, dá-lhe o teu toque pessoal e coloca-o no respectivo lugar. 
Um grande abraço para ti e toda a tertúlia
Até breve.
J.Cardoso.


MEMÓRIAS DE UM PASSADO

3 - Um bacalhau que ficou para a história

Decorria o ano de 1973 e, em Agosto desse ano, completava eu, ou tinha completado, 1 ano (?) de permanência no Gabú-Nova Lamego-Guiné.
Os ponteiros do relógio teimavam em ser demasiado lentos, dando a sensação de cada hora passada ser um dia, cada dia um ano e, um ano uma eternidade!

A monotonia do dia a dia, juntamente com as saudades da família, o stress começava a apertar! Como se isso não bastasse, a alimentação que nunca foi famosa por aquelas bandas, vinha piorando cada vez mais, a ponto de haver mais que um levantamento de rancho, (recusa de comer a respectiva refeição).

Na ementa diária constava, salvo raras exceções, num dia arroz com "estilhaços" no outro esparguete com "estilhaços" (pedacinhos de carne). Legumes, não havia! Dizia-se que o Vagomestre se estava a governar com o "pilim" que era devido a cada militar para sua alimentação.

Por essa altura escrevi a meus pais, queixando-me da dita alimentação. Que estava enjoado de comer constantemente arroz e esparguete e, em termos de desabafo, manifestei um desejo à minha saudosa mãe, dizendo-lhe:
- Ah mãe... Quem me dera comer uma boa posta de bacalhau. Fosse cozido, assado ou mesmo cru! (É meu prato preferido).

 Confesso que nunca imaginei o resultado deste meu desabafo! Apesar de meus pais viverem numa aldeia e serem pessoas de fracos recursos, minha mãe interiorizou o meu queixume e o amor de mãe falou mais alto. Deslocou-se aos correios, percorrendo a pé uma distância de aproximadamente 8 quilómetros, informando-se sobre a possibilidade ou não, do envio de uma encomenda para a Guiné. Como a resposta foi afirmativa, na volta do correio entre outras coisas, dizia mais ou menos seguinte:
- Meu filho, recebi as tua carta e tomei nota do que dizias relativo à alimentação. Sabendo dos teus desejos, fui aos Correios de Vila Meã e despachei um pacote com bacalhau. Quando o receberes, dá-me notícias. Reconheço que não será o suficiente para te matar a fome, mas creio, contribuirá para teres alguns momentos de satisfação.

Cabe aqui uma nota de agradecimento:
- Obrigada mãe. Onde quer que estejas, que tenhas a devida recompensa pelo bem que me fizeste. De mim, nesta altura que escrevo, só poderei a título póstumo, publicamente agradecer-te e saudosamente recordar-te, vertendo algumas lágrimas de emoção causada pela prática do teu ato.

Depois de tão surpreendente novidade, dei por mim a imaginar se tal encomenda chegaria ao destino! Tomasse ela o rumo de algumas "folhas de vide" (notas de 20 escudos), que eram enviadas dobradinhas junto às notícias dentro dos aerogramas e, dificilmente comeria bacalhau! 

Felizmente assim não aconteceu! Passadas que foram cerca de 3 semanas(?), recebi o aviso e levantei a dita encomenda! Fiquei maravilhado. Coloquei o pacote às costas com cerca 4 kg, dirigi-me à caserna, e imediatamente o abri. Ali estavam diante de meus olhos umas boas postas do fiel amigo!

Para o saborear, convidei meia dúzia dos meus amigos e camaradas mais próximos e, no final do repasto, o resultado fica à imaginação de cada um, bastando para tanto visualizar as fotos que junto. Quando mais tarde noticiei a minha mãe o gosto que me tinha dado, ela, algum tempo depois, repetiu a dose, e o resultado final do segundo foi idêntico ao do primeiro. 

Penafiel. 4/11/2013
Joaquim Moreira Cardoso
Ex-Sold.Trans. NM 194530/71


Nesta foto, a começar da esquerda em plano mais baixo: O Vasco e eu Cardoso. Em plano mais alto, Pereira e Cunha(?). Na direita e plano mais baixo, o Monteiro e Morim(?)



Nesta foto, à esquerda, o Graça, de costas o A.Santos e mais 3 colegas dos morteiros e na direita eu, Cardoso
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12063: Memórias de um passado (Joaquim Cardoso) (2): Um só dia e uma só noite no mato bastaram para um grande susto

Guiné 63/74 - P12261: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca...é Grande (76): Encontro do nosso editor, ao fim de 6 anos, com a família do ex-alf mil Martinho Gramunha Marques, natural de Cabeço de Vide, Fronteira, morto heroicamente em combate, em Madina do Boé, em 30/1/1965


Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde > Em cima, o nosso editor Luís Graça, com a família do nosso infortunado camarada Martinho Gramunha Marques: duas irmãs (sendo a Adelaide a primeira a contar da direita) e um irmão (ou cunhado, não sei ao certo).


Lisboa > Casa do Alentejo > 26 de outubro de 2013 > Sessão de lançamento do livro do José Saúde >  Sessão de autógrafos: o autor escrevendo uma dedicatória a um familiar do alf mil Martinho Gramunha Marques, que era natural de Cabeço de Vide, concelho de Fronteira, Alto Alentejo. (Tem na sua terra natal, uma rua com o seu nome.)

Fotos (e legendas) : © Luís Graça  (2013). Todos os direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Pirada > Janeiro de 1965 > Da direita para a esquerda: (i) em primeiro plano, o alf mil Martinho Gramunha Marques (3ª CCac Indígena / BCAÇ 512, Mansoa e 1963/65; (ii) ao centro, o António Figueiredo Pinto, [alf mil, BCAÇ 506, Nova Lamego, Beli, Madina do Boé, 1963/65]; e (iii) o Sarg Piedade.

Foto tirada em Pirada...Poucos dias depois, a 30 de Janeiro de 1965, o Gramunha Maqreus morre numa emboscada, em Madina do Boé, heroicamente, em grande sofrimento...  Natural de Cabeço de Vide, concelho de Fronteira, Alto Alentejo, está inumado no cemitério de Cabeço de Vide.  Pertencia à 3ª Companhia de Caçadores Indígenas do BCAÇ 512.

Foto (e legenda) : © António Pinto (2007). Todos os direitos reservados.


1. No passado dia 26 de Outubro, o nosso camarada  e amigo José Romeiro Saúde, natural de Vila Nova de São Bento, Serpa, a viver em Beja, Baixo Alentejo, fez o lançamento do seu 5º livro, "Guiné-Bissau, as minhas memórias de Gabu, 1973/74" (Beja: CCA - Cooperativa Editorial Alentejana, 170 pp. + c. 50 fotos; preço de capa: 10 €),

Como já noticiámos, o evento constituiu um sucesso e foi pretexto para uma belíssima tarde de animação cultural, com dois grupos musicais do Baixo Alentejo. O Zé estava felicissímo pela presença de numeroso público, com muitos amigos e uma meia dúzia de camaradas da Tabanca Grande.  Fartou-se de escrever dedicatórias e autógrafos (nos cerca de 4 dezenas de livros vendidos). Veio gente de vários lados, do Baixo e até do Alto Alentejo. Um das grandes surpresas, que me emocionou, foi a presença da família do saudoso Martinho Gramunha Marques, um dos 75 alferes que morreram no TO da Guiné.

Mais uma prova de que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! (*)... Finalmente pude comhecer um das primeiras mulheres, familiares de camaradas nossos, a entrar para a Tabanca Grande, Adelaide Gramunha Marques (ou Adelaide Crestejo). Vinha acompanhada de mais dois familiares, uma irmã e um irmão (, ou marido, ou cunhado, não fixei na altura, no meio de tanto ruído).

Já lhe mandei as fotos que publicamos hoje, juntamente com a seguinte mensagem, por mail de 3 do corrente::

Querida amiga Adelaide:

Estou feliz pelo nosso breve encontro. Afinal, você perdeu, irrremediavelmente, um mano na guerra, mas também nós ganhámos, enquanto grupo de ex-combatentes, uma mulher, que será nossa irmã, e que será sempre para nós e para as mulheres portuguesas que nos leem, um exemplo extraordinário de coragem, de lucidez e de amor fraterno.

A sua história tocou-nos, ao revelar-nos, publicamente, a sua reação íntima à notícia lida no blogue, sobre as circunstâncias da morte (heróica) do Martinho, dada por uma camarada dele, o António Pinto, e que você irá mais tarde conhecer (se não me engano).

Se a ajudámos a fazer o luto, a si e à sua família, como temos feito com outras mulheres e outras famílias, é o suficente para nos sentirmos compensados pelas agruras, que também as temos , da edição deste blogue, que vai fazer 10 anos de existência.

Gostaria de relembrar, num novo poste, a publciar em breve, o seu mano bem como a grande família que ele tem e de que ele se pode continuar a orgulhar, lá onde quer que ele esteja... Junto duas fotos que tirámos, na Casa do Alentejo, uma delas em grupo. Com tanto ruído na sala, não consegui tomar boa nota dos nomes dos seus manos, ou melhor, mana e mano (?). Enfim, gostaria de publicar no blogue uma pequena notícia sobre o encontro em que finalmente conheci uma mulher, como você. de grande nobreza, e uma boa amiga do blogue, uma das primeiras a juntar-se à nossa "caserna virtula", a que chamamos Tabanca Grande.

Se por acaso tiver fotos, digitalizadas, do seu mano e dos seus camaradas, cá e/ ou na Guiné, esteja à vontade para mas mandar (ou não). Eu acho que ele, mas vocês e nós também, temos direito à memória. Falar dele é não esquecê-lo, é mantê-lo ao pé de nós. Um beijinho do Luís Graça



2. Recorde-se aqui a mensagem de Adelaide Gramunha Marques, publicada em 20 de junho de 2007 (**):

Exmo. Senhor Dr. Luis Graça

Estou a escrever-lhe porque através de um dos meus sobrinhos (#) veio parar-me às mãos um blogue que fala da Guiné, daqueles que por força do destino ou da cegueira de um homem, se viram envolvidos em lutas que não provocaram e cujo desfecho final nem sempre foi o mais agradável.

Deixe que me apresente primeiro: o meu nome é Maria Adelaide Gramunha Marques Sales Crestejo, irmã do falecido Martinho Gramunha Marques (##).

Quero que saiba que a minha primeira reacção quando vi o blogue, foi de expectativa pois fiquei entusiasmada com a ideia de que aqui podia finalmente encontrar alguém, que durante aquele período de tempo em que ele esteve na Guiné (3), conviveu com ele, quem sabe assistiu aos seus últimos momentos, o confortou, lhe deu apoio enfim, não o deixou morrer sozinho.

Quando vi a mensagem do Sr. António Pinto e vi o nome do meu irmão ali escrito com todas as letras, nem parei para pensar e foi então que um murro me atingiu em cheio o estômago, a cabeça começou a girar e as lágrimas não paravam de brotar dos meus olhos.

Ali à minha frente estava aquilo que durante anos e anos eu tentei saber e nunca tive ninguém que mo dissesse. Como foi a morte do Martinho Gramunha Marques ? O meu coração pedia a Deus que tivesse sido rápido, que ele não tenha sofrido.

Agora sei que isso não foi assim. Agora que já passaram 2 dias desde que tive conhecimento da vossa existência, e tendo lido com mais calma alguns dos comentários e narrativas, acho que foi bom, esta revelação aproximou-me mais dele.

Há no entanto tanta coisa que eu gostaria de saber, por essa razão lhe escrevo este email, pois gostaria se isso fosse possível, entrar em contacto directo com o Sr. António Pinto (4), seja através de telefone ou email.

Dr. Luis Graça, não quero terminar este email sem antes mandar para si e para todos os que de uma maneira ou doutra tornaram este cantinho uma realidade, um BEM HAJAM e as maiores felicidades.

Adelaide Gramunha Marques
______________

(#) Comentário de Bernardo Garmunha Marques ao poste de 23 de janeiro de 2007 | Guiné 63/74 - P1456: Gabu: Fotos com legendas (António Pinto, BCAÇ 506 e 512) (1): Pirada e Piche

(##) Vd. poste de 17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1437: Estórias de Madina do Boé (António Pinto) (1): a morte horrível do Gramunha Marques e o ataque a Beli em que fui
ferido

3. Comentário, na altura, de L.G.:

Querida senhora, cara amiga:

(...) Deixe-me ser solidário na sua dor e na sua revolta. Deixe-me que lhe fale do meu próprio espanto. O seu irmão morreu há mais de 42 anos, no dia 30 de Janeiro de 1965, em Madina do Boé (de má memória para muitas famílias portuguesas) (...)

(...) Mas a família nunca soube as circunstâncias da morte do Martinho. Vem a sabê-lo, há dias, casualmente, impessoalmente, através da blogosfera, através do do relato de um camarada e grande amigo do seu tempo de Guiné, o ex-Alf Mil António Pinto...

É triste que as coisas tenham acontecido assim. É revoltante que o Exército, na época, não tenha conseguido sequer humanizar a notícia da morte dos seus homens.  Percebo hoje a sua revolta, que é também a nossa. Resta-nos a consolação de termos contribuído um pouco - todos nós, a começar pelo António Pinto - para que você, irmã do nosso camarada Martinho Gramunha Marques, e os seus familiares mais próximos, consigam finalmente fazer o luto e preservar o melhor da sua memória... Através do nosso blogue, através do pungente relato do seu amigo e camarada António Pinto, o Gramunha Marques não será esquecido. (...)


[ Foto a esquerda, António Pinto, II Encontro Nacional da Tabanca Grande, Pombal, 2007; vive atualmente em Vila do Conde] (***)

4. Excertos do poste P1437:

(...) (1) Gramunha Marques, morto em Madina do Boé.

Estava em Beli, já noite, quando através do rádio do Chefe de Posto soube o que aconteceu aos nossos camaradas, que foram vítimas duma emboscada fatal. A minha primeira reacção foi entrar em contacto com Nova Lamego e pedir autorização para ir tentar ajudá-los.


Levei uma nega do Ten Cor Figueiredo Cardoso  (****) que me deu ordens terminantes para ficar onde estava, em Beli, com redobrada vigilância. Com os nervos à flor da pele, desliguei-lhe a comunicação depois de quase o ter insultado (e que mais tarde pedi desculpa, do acto impensado).

Pedi voluntários para irem comigo, mesmo desobedecendo
às ordens e quem conseguiu demover-me, já
com a pequena coluna pronta para arrancarmos, foi o Furriel Stichini, que me disse e não posso mais esquecer:
- Nós vamos, mas será o responsável pelas nossas mortes.

Acabei por ficar, destroçado e cheiro de raiva. O Gramunha Marques, soube-o depois, teve uma morte horrível,
com uma perna esfacelada, esvaindo-se em sangue e sempre consciente até ao fim. (...) (*****)

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Notas do editor

(*) Último poste da série > 5 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12252: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (75): O reencontro de 3 amigos e camaradas estremenhos: Eduardo Jorge Ferreira (Polícia Militar, BA 12, 1973/74), Jorge Pinto (3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) e Luís Fernando Mendes (38ª CCmds, 1972/74)

(**) Vd. postes de:

20 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1862: 42 anos depois, com emoção e revolta, sei das circunstâncias horríveis em que morreu o meu irmão... (Adelaide Gramunha Marques)

5 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8324: As mulheres que, afinal, também foram à guerra (10): O pungente testemunho da irmã do nosso malogrado camarada Martinho Gramunha Marques, morto em Madina do Boé, em 30 de Janeiro de 1965

(***) Alguns dados sobre o António Figueiredo Pinto:

(i) Embarcou para a Guiné em Novembro de 1963, em rendição individual ("Fui substituir um colega que se pirou para o Senegal");

(ii) Passou  por Nova Lamego, tendo ao fim de algum tempo sido destacado para Pirada ("onde reconstrui o aquartelamento");

(iii) Esteve e algum tempo em Geba ("zona na altura um bocado perigosa, mas sem problemas");

(iv) Veio de férias, à Metrópole,  em Outubro de 1964;

(v) No regresso, foi destacado para Madina do Boé (,"tendo sido o primeiro pelotão a chegar lá onde montei o primeiro aquartelamento");

(vi) Depois foi para Beli (, o primeiro pelotão também a lá chegar e a montar o destacamento);

(vii) Em Maio de 65, o destacamento de Beli é atacado; o António Pinto é um dos sete feridos, na sequência do rebentamento de uma granada de morteiro;

(viii) Esteve um mês internado no HM 241, em Bissau;

(ix) Seguiu depois para Bolama, para dar instrução e terminar a comissão.

(***) Ficha das unidades:

BCAÇ 506: mobilizada pelo RI 2, partiu para o TO da Guiné em 14/7/1963, regressando a casa em 29/4/1965. Esteve sediado em Bafatá. Comandante: ten cor inf  Luís de Nascimento Matos.

BCAÇ 512: mobilização pelo RI 7;  partida a 17/7/1963 e regresso a 12/8/1965; localização: Mansoa e Nova Lamego: comandante: ten cor inf António Emílio Pereira de Figueiredo  Cardoso.

3ª Companhia de Caçadores Indígenas:

Elementos informativos pelo nosso colaborador, amigo e camarada José Martins:

(i) Esta unidade foi constituída em 1 de Fevereiro de 1961, como unidade da guarnição normal do CTIG;

(ii) Era  formada por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local, 

(iii) Iniciou  a sua formação adstrita à 1ª CCAÇ I;

(iv) Em 1 de Agosto de 1961, com a constituição de dois pelotões, substitui a 1ª CCAÇ I na guarnição de Nova Lamego;

(v) Desloca elementos para guarnição de várias localidades do Setor Leste, por períodos e constituição variáveis, sendo de destacar as localidades de Che-Che, Béli e Madina do Boé;

(vi) Passou a guarnecer, em permanência as localidades de Béli e Madina do Boé instalando, em 6 de Maio de 1963, um pelotão em cada localidade;

(vii) Em 1 de Abril de 1967 passa a designar-se por Companhia de Caçadores nº 5, com sede em Canjadude.

(*****) O dia 30/1/1965 foi particularmente trágico para as NT no TO da Guiné. De acordo com o portal da Liga dos Combatentes, complementado com informações preciosas do portal Ultramar Terraweb (sobre a unidade de origem, e o concelho de naturalidade) morreram nesse dia, em combate, 10 camaradas nossos, todos do Exército, incluindo o Martinho Gramunha Marques. Nove estavam ligados ao BCAÇ 512, e devem ter morrido em Madina do Boé. Só um é de batalhão diferente, o BART 733 (que estava na região de Farim):

ANTÓNIO ANGELINO TEIXEIRA XAVIER, alf, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Valpaços:

ANTÓNIO CANDEIAS DOS SANTOS,  Sold, CART 730 / BART 733; natural de Tavira;

ANTÓNIO JOAQUIM DA GRAÇA VIEGAS, Sold, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Olhão:

AVELINO MARTINS  ANTÓNIO, 1º Cab, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Monchique:

DOMINGOS MOREIRA LEITE,  Fur, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Paredes:

JOSÉ MAXIMIANO DUARTE, Sold,  CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Monchique:

JOSÉ PIRES VIEIRA DA CRUZ,  Sold, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Coimbra;

LEONEL GUERREIRO FRANCISCO,  1º Cabo, CCAÇ 727 / BCAÇ 512; natural de Loulé;

MARTINHO GRAMUNHA MARQUES,  Alf, 3ª CCAÇ I / BCAÇ 512; natural de Fronteira;

SILVÉRIO GALVÃO NOGUEIRA,  Fur, CCAÇ 509 / BCAÇ 512; natural de Mafra.


Guiné 63/74 - P12260: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (4): A caminho do Xitole, 26 anos depois

1. Quarto episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU


A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

4 – A CAMINHO DO XITOLE, 26 ANOS DEPOIS

No Capé, bem cedo, preparámo-nos para a viagem ao Xitole.
Viatura pronta, almoço piquenique na mala térmica para um dia inteiro “fora de casa” e lá partimos para uma visita cheia de incógnitas e de muita ansiedade.

Vinte e seis anos depois estava a caminho dos locais em que vivi os momentos mais marcantes e sofridos do meu percurso como ser humano. Ia levantar a poeira das memórias, ia rever um filme cujo enredo conhecia, mas cujo cenário e figurantes eram agora uma interrogação.

Atravessámos Bafatá. A partir daqui a estrada era alcatroada mas, a espaços, muito maltratada. Pela frente ficava Bambadinca. Aqui esteve sediada a CCS do BART 2917 a que pertencia a “minha” CART 2716. Em toda a comissão, só passei por Bambadinca de e para Bissau ou Bafatá e, este não era o momento para me deter por aqui.
Seguimos o nosso caminho e vos confesso que, ao atravessar Bambadinca, talvez pela presença de militares ou pelo imenso formigueiro humano que nos impunha marcha lenta, me senti algo inseguro.

Uns quilómetros mais à frente e, já só pensando no Xitole, tudo passou.
Com os olhos fixos na estrada tentava adivinhar os sinais que me ajudassem a identificar a “Ponte dos Fulas”, passagem obrigatória a caminho do Xitole. De repente, surge uma ponte que não conhecia. Aqui parámos e lesto, saltei da viatura. Um misto de alegria e de nervoso miudinho dominava-me. Debrucei-me sobre o varandim e não foi difícil encontrar logo ali o esqueleto da velha ponte. De um lado, alguns pilares carcomidos pelo tempo e, do outro, escondido entre a ressequida mas densa vegetação, estava escondido o velho fortim de vigilância. Estávamos na época seca e, do rio Pulon restava uma pequena lagoa com uma canoa submersa. Nada mais restava daquilo que a memória guardava. As obras da nova ponte e da estrada alcatroada, apagaram a estrutura principal do destacamento. Mas, qualquer coisa faltava ainda ao cenário.

A memória dizia-me que, entre a mata que deixara para trás e a ponte, existia uma bolanha que era cortada pela picada de acesso à mesma. O arvoredo que foi crescendo, algo disperso, alterou a paisagem. Da bolanha só o local. O Xitole estava agora muito próximo. Jipe em marcha, vencida uma pequena subida e, tendo por companhia cajueiros de ambos os lados da estrada, surge uma pequena placa que indicava que à direita estava o Xitole.
Abordámos a entrada da povoação. A paisagem que se me apresentou, só a espaços me dizia alguma coisa. Reconheci as árvores alinhadas de ambos os lados da antiga picada à saída do Xitole no sentido Saltinho, mas não reconheci uma mesquita que entretanto aí se construíra. Esta não era a entrada para o Xitole que eu conhecia.

Avançando devagar, entrámos pela tabanca adentro. A comparação das imagens que guardava na memória, com o cenário que tinha pela frente, dizia-me que este era o lugar em que passei os cerca de dois anos mais marcantes da minha vida. As moranças, alinhadas como no passado, eram agora em menor número e os velhos mangueiros continuavam no seu posto de sempre.
À medida que íamos avançando, a localização do “quartel” tornava-se mais nítida. Poucas crianças e alguns adultos aproximaram-se do jipe. Num primeiro olhar, não descobri qualquer cara conhecida. As primeiras palavras entre nós foram, num primeiro momento, algo cerimoniosas, passando rapidamente para o desinibido e até efusivo, o suficiente para quebrar aquela estranha sensação de estar a invadir a intimidade daquela gente.

Sentia-me tranquilo e feliz. Estava entre a “minha” gente. Reconheci neles a simplicidade, o jeito afável e as marcas das suas tradições e cultura. Era aquele povo que aprendi a respeitar, mas a quem tudo falta. Já no local da “porta de armas” e, na nossa frente, eram visíveis a casa do Chefe do Posto, o depósito de géneros, a secretaria e messe de sargentos, a messe dos oficiais e, à esquerda, o esqueleto em betão do que foram as oficinas e o posto de socorros. Aqui, mais ao centro, estava o memorial deixado pela CART 2413 que nos antecedera, e o mastro em que todos os dias era desfraldada a Bandeira Nacional. À direita, ainda resistia a casa e o armazém do comerciante libanês Jamil Nasser.

Saí do jipe e fui vasculhar o que restava do “meu” posto de socorros. Dois degraus, as vigas da estrutura da construção e os muitos “cacos” dos tijolos que tinham sido aproveitados para outros fins, eram tudo o que restava do cenário em que exerci a enfermagem possível, e de que guardo memórias que nunca mais se apagam. Continuámos até ao fundo do “quartel” e aí encontrei outra construção que não conhecia. Era a escola com duas salas de aulas.
Quando o Professor (Nicolau Afonso) se apercebeu da nossa presença, acabaram-se as aulas. Dissemos que trazíamos roupas, cadernos, lápis e uma bola de futebol. A criançada pulava alegre, ruidosa e olhava-nos com curiosidade. A notícia chegara até à tabanca e não tardou que mais crianças e adultos se nos juntassem para a distribuição. Era o brilho no olhar daquela gente e o sinal de que estavam gratos pela nossa presença.

Quando demonstrei interesse em encontrar o “meu ajudante”Galé Djaló, informaram-me que ele vivia em Quebo (Aldeia Formosa). Aproximava-se a hora de aconchegar o “papo” e fomos devorar o almoço piquenique em Cussilinta, para onde nos dirigimos, passando pelas tabancas de Cambésse e Sincha Madiu, com a ideia de irmos depois até Aldeia Formosa.
Os rápidos de Cussilinta são um lugar de visita obrigatória para quem dele desfrutou no tempo da guerra. O almoço bem regado e “farto” de carnes frias, foi saboreado à sombra de robustas e velhas árvores, junto dos rápidos. Para ajudar à digestão, saltitamos depois pelas rochas até aos canais por onde a água se escapava e até junto da piscina natural.

A paisagem é soberba. Duas águias pesqueiras sobrevoavam a zona. Estava na hora de irmos até Aldeia Formosa procurar o Galé. Pelo caminho ainda haveria lugar a uma pequena paragem no Saltinho para um café e para se apreciar aquela obra de arte. Lugar mítico este. Um antigo quartel aproveitado para uma “Pousada” de Pesca e Caça, uma ponte de porte altivo e o Rio Corubal a deixar-se deslizar por entre os espaços das rochas.

A paragem seguinte seria na procura daquele guineense futa-fula que tanto me tinha ajudado. Chegados a Aldeia Formosa indaguei, junto de um grupo de locais, da localização da morança do Galé. Depois de conversarem entre eles, informara-me que ele estava a trabalhar em Cacine, lá bem para o sul, como funcionário das alfândegas. Deixei o meu contacto e o pedido de, o informarem da minha presença no dia seguinte no Xitole. Queria encontrar-me também com o ajudante dos mecânicos Saido Baldé, que nessa manhã esteve ausente do Xitole.

Estava na hora do regresso ao Capé, para um resto de tarde junto da piscina, na companhia dumas “loirinhas” bem fresquinhas.

Foi um dia que respondeu a muitas das perguntas que trazia na bagagem e que me conciliaram com o passado. O “quartel” do Xitole retinha o essencial da sua estrutura e, apesar da degradação, tudo me era familiar. Estava tranquilo, feliz e em segurança, mas sentia a falta do contacto humano daqueles que conhecia.

Amanhã seria um novo dia.

(Continua)

Xitole - O que resta da Oficina e do Posto de Socorros

Xitole - Memorial da CART 2413

Xitole - Casa do Chefe de Posto

Xitole - Alunos a caminho da Escola

O que resta da mítica Ponte dos Fulas

Xitole - Resto da oficina e, à direita, degraus de acesso ao posto de socorros

Tabanca do Xitole

A minha primeira viagem à Guiné -1998 (2) - Do Hotel Capé (Bafatá), Xitole, Cambêsse e Sincha Madiu
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12226: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (3): A minha primeira viagem em 1998 - A descoberta da nova realidade

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12259: (De)Caras (14): Foto do alf mil capelão Augusto Baptista a celebrar missa em Binar, para a malta da CCAÇ 2404... Bate certo, camarada João Diogo da Silva Cardoso! Um Alfa Bravo!... (Armando Pires / Augusto Baptista)

1. Mensagem do Armando Pires [, foto recente, no Chiado, Lisboa, com o Augusto Baptista]

Data: 4 de Novembro de 2013 às 23:44
Assunto: Capelão Baptista

Bom, estou aqui pata te dizer que acaba de me telefonar o Capelão Baptista a confirmar o que para mim não tinha dúvidas.

Isto é, nas fotos do João Diogo (P12224)  [, foto abaixo, à direita] é ele, Augusto Baptista, quem está a celebrar a missa [, em Binar]. E disso te peço que informes o nosso camarada da CCAÇ 2404 [. João Diogo da Silva Cardoso, que vive no Funchal].

Mais, o Baptista pede-lhe desculpa, a ele e a ti, de não escrever pelo seu próprio punho, mas tem, e isso eu posso garantir que tem, uma vida sacerdotal muito agitada.

Não são apenas as duas paróquias à sua responsabilidade, é também toda a gestão do centro social paroquial de Perosinho, a que acresce a muitas solicitações, como padre, a que tem que ocorrer.
Deixa-me dizer-te que não há uma vez que eu lhe telefone que não me atenda enquanto vai a conduzir.
O Baptista é padre mas não faz milagres.

Por outro lado, e finalmente, a sua disponibilidade para as novas tecnologias não é famosa.
A bom entendedor...

Portanto, o que se passa aqui é que eu tenho todo o gosto em servir como intermediário, uma espécie de sacristão informático.

Pede-me o capelão Augusto Baptista que seja enviado um abraço ao nosso camarada,  ex-furriel miliciano João Diogo da Silva Cardoso, abraço que estende a todos os camaradas desta Tabanca Grande.

Pelo meu lado, ex-furriel enf  Armando Pires, fica a promessa (estamos a tratar de questões clericais, não é verdade?) de chegar a convencer um dia o Baptista a sentar-se à secretária, escrever sobre a sua experiência na Guiné,  seja por que método for,  que eu depois me encarregarei do resto.

Espero que, não obstante agnóstico, o Senhor me ouça.

Abraços


2. Comentário de L.G.

Armando: Quanto ao nosso capelão, diz-lhe que é uma alegria tê-lo aqui. Faço a conveniente receção dos abraços e comunica que foram de imediato reenviados aos destinatários, os nossos grã-tabanqueiros (m/f). 

Vou publicar a tua mensagem em estilo "tandem" (tu conduzir, ou seja, a teclar e ele ao lado, a ditar, neste caso, pregar...). 

É um gesto bonito da tua parte, oefereceres-te como "intermediário" entre o céu e a terra, o sagrado e o profano... Ex-enfermeiros, continuas, afinal, a ser um terapeuta, no sentido etimológico da palavra que vem do grego, therapeutes, aquele que faz a ligação com um deus, que esse, sim, é que cura, que faz milagres... Tu não és padre, mas é um medium (ou não fosses também um homem da comunicação social!)... Porra, predicados não te faltam, camarada!... Para Luanda, no dia 16, levo os contactos e as recomendações de me deste. Em matéria de angolanidade(s), sou periquito à tua beira...

Um abração. Luis

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Nota do editor: