Décimo segundo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Não durmo, estou levantado não sei há já quanto tempo,
aqui, nesta parte do mundo, são “quatro da madrugada”,
pelo menos é o que dizem os relógios que marcam o
tempo, devia estar a dormir, a descansar o corpo já um
pouco cansado, entre outras coisas da idade, mas não
durmo, já fui lá fora, está quente, há luzes no céu,
parecem as noites de Mansoa, lá na Guiné, só que aqui,
não é cenário de guerra, não existe humidade nem
aqueles malditos mosquitos. Ouço um pequeno barulho,
anda um esquilo no telhado, vejo a sua silhueta, a mexer
com a cauda, procura o fruto daquela árvore, ele até tem
razão, já aqui vivia, antes de eu vir para aqui, roubar-lhes
o espaço, além deste pequeno pormenor, não se houve
viva alma. Voltei para dentro, fiz um chá, bom, bastante
forte, que um familiar me costuma trazer da Inglaterra,
apalpei a caneca, quente, bebo uns goles, fico calmo,
sento-me, penso, mil coisas me vêm ao pensamento,
começo a contar o tempo, portanto já não sou eu, sou um
relógio, que neste momento marca “quatro da
madrugada”.
É normal nesta idade, creio que já dormi o suficiente, pois
foram tantas “quatro da madrugada” que por mim
passaram, algumas quentes, outras geladas, outras
assim-assim, foram na Europa, na guerra em África ou
aqui neste continente, mas as “quatro da madrugada” no
verão do Alasca, eram um pouco diferentes, pois era
quase sempre dia, e às “quatro da madrugada”, já tinha
feito muita coisa, entre outras, tinha ido à pesca.
As “quatro da madrugada”, quando se é jovem, são tal
como fossem “quatro da tarde”, estamos sempre prontos,
não existem problemas de movimentação, de
alimentação, cuidados médicos, pode fazer frio, chuva,
calor ou vento, o movimento ambiental não nos importa,
pois sabemos que às “quatro da madrugada” vai nascer o
dia, com luz, vamos ver o mundo, as pessoas, conviver,
caminhar, ocupar o tempo, às vezes até fazendo uma
coisa para alguns rara, que é trabalhar. Isto é só
pensamentos, pois não tenho a certeza se os mais novos
vão perder tempo a ler estes escritos, ou se vão
envelhecer, se tal acontecer ainda bem para eles.
Continuando, apalpando a caneca deste chá bem quente,
dou uns passos, sento-me na frente do computador,
pensando que nunca trocaria a minha vida maravilhosa
de pessoa idosa, a minha amada família ou os meus
amigos, por mais cabelo, ainda que seja branco, ou por
uma barriga mais lisa. À medida que fui envelhecendo,
tornei-me mais amável, menos crítico, se estou sentado e
preciso desta caneca, a minha preferida, que até está
quebrada na asa, mas me tem dado de beber por
décadas, vou eu mesmo buscá-la, não incomodo a
esposa e companheira, que nesse momento anda de pé,
atarefada, da mesa para o fogão, fogão esse que ainda
vai cozinhando pelo menos uma vez ao dia.
Às vezes penso que me tornei o meu próprio amigo, não
gosto de incomodar ninguém, e claro, não me censuro por
comer todas aquelas comidas que dizem que nos fazem
muito mal, mas que são adoráveis, ou por entre outras
coisas, não fazer a cama, não ajudar nas tarefas da casa,
andar por aí a brincar com o meu helicóptero brinquedo,
que quando está vento mais forte, vai parar à propriedade
do vizinho, que vieram lá do norte, de Nova Iorque e,
quando a amável senhora me traz o brinquedo de volta,
diz-me, com um ar entre a censura e o feliz,
“então os
netinhos estão por cá, tenha cuidado com eles, não os
deixe brincar com estes brinquedos, pois são muito
perigosos, podem partir as janelas ou mesmo ferir as
pessoas, pois eu vi na televisão...”, e lá vem a história
toda, contada com pormenores, pois o que ela quer é
conversa, passar o tempo, tal como nós, não sabendo
que eu fui o causador de todo esse “desastre”, pois os
meus netos estão lá no norte.
Eu tenho o direito de ser desarrumado, de ser livre, pois já
vi muitos amigos queridos e familiares deixarem este
mundo cedo demais, antes de compreenderem a grande
liberdade que vem com o envelhecimento. Quem me vai
censurar por fazer aquela viajem estúpida ao estado do
Alaska, com muita aventura, dormindo na caravana, ou
atravessar a ponte Golden Gate, na cidade de San
Francisco, a pé, com todo aquele vento e nevoeiro por
momentos e logo a seguir céu azul e sol radiante, por
andar por aí na minha bicicleta, armado em campeão de
ciclo-cross, atravessando praias e riachos com alligators
ou cobras, caindo aqui, levantando-me ali, por comprar
algo supérfluo que não precisava, ou mesmo se resolvo
ficar a ler, ou a procurar novos horizontes no computador
até tarde, se às “quatro da madrugada” já não durmo, e
depois, talvez vá dormir até meio-dia.
Se, como alguém já disse, me apetecer dançar ao som
daqueles sucessos maravilhosos dos anos 60 e 70, e se,
ao mesmo tempo, quiser chorar por um amor perdido, lá
na minha aldeia da montanha, danço e choro, às vezes
com baba e ranho. Se me apetecer ir à pesca, andar na
praia com uns calções não muito apropriados, sobre um
corpo decadente, mergulhar nas ondas com abandono,
apesar dos olhares penalizados dos outros, que me há-de
importar, eles também vão envelhecer.
Eu sou um abençoado por ter vivido o suficiente para já
não ter muitos cabelos na cabeça, não ter o riso da
juventude, pois muitos nunca riram, muitos dos meus
amigos, e lembro os meus companheiros de guerra, lá na
Guiné, que morreram jovens, muito antes de perder o
cabelo. Eu, com os anos a passarem por mim, tenho o
direito de estar errado, gosto de ser idoso, a idade
libertou-me e gosto da pessoa em que me tornei, embora
sabendo que não vou viver para sempre, o meu futuro
pode ser daqui a um minuto, talvez segundos.
Mas voltando às “quatro da madrugada”, fazem-se
milhares de coisas diferentes, em milhares de lugares
diferentes, mas o mais normal é dormir, mas também há
pessoas que a esta hora viajam, outras trabalham, outras
fazem amor, outras tomam a primeira refeição do dia,
outras vão única e simplesmente à pesca, como é o caso
do outro meu vizinho, que mesmo agora por aqui passou,
fazendo sinal com a luz do carro, talvez convidando-me,
enfim, milhares de coisas diferentes que as pessoas
fazem, mas para mim, o importante é que são “quatro da
madrugada”, estou acordado e não durmo.
Saio do computador, caminho até à televisão, lá vem o
sinal, em letras grandes, com música de fundo, uma
música irritante, anunciando algum desastre, é o
“Five
o’clock news”, pois já são cinco da manhã, vem logo um chorrilho de novidades, que já não são novidades
nenhumas, pois infelizmente são as notícias normais,
deste mundo normal, “que cada vez, está mais cada vez”,
e o noticiário é só desgraças, sendo raro dizerem que nasceu
uma criança, mostrarem um jardim com flores ou aquela
pessoa, com bons recursos financeiros, deu um beijo e
acariciou, dando comida e roupa, àquela criança com o tal
“ranho no nariz”.
Não me importo nada de ter vivido no tempo em que as
pessoas atendiam o telefone, pois agora, quando
queremos falar ao telefone, tirando qualquer dúvida, de
uma despesa que fizemos e, não está de acordo com o
nosso parecer, depois de ouvir por muito tempo aquelas lengalengas da mensagem, “para saber isto, carregue
um, carregue dois, carregue três”, há sempre uma
mensagem que diz “estamos abertos, em dias úteis, no
horário da zona leste, das oito às quatro”, lá está, às
“quatro”, só que desta vez não é às “quatro da
madrugada”.
Neste momento já passa das “quatro da madrugada”, por
aqui, uma região com um clima sub-tropical, existem
muitas festas de final de dia, a que chamam,
“It’s 5 o’clock
somewhere”, que quer dizer mais ou menos, “são 5 horas,
em qualquer lugar”, tanto faz ser às cinco da manhã ou
às cinco da tarde, onde as pessoas se divertem, dançam,
bebem, comem, namoram, encontram-se, conhecem-se,
confraternizam, procuram tudo para se esquecerem da
vida dura do dia a dia, o que no meu entender está muito
bem, mas continuo a pensar que isto não tem mesmo
nada a ver com as “quatro da madrugada”, mas já são
cinco da manhã e continuo acordado quando devia de
estar a dormir.
Só mais uma “achega” a este pensamento, há um povo
na Europa, mais propriamente em Portugal, na região do
Alentejo, povo culto e sabedor, que os mal intencionados
contam histórias, às vezes não muito abonatórias, que
têm uma canção que eu menciono muitas vezes, que é
quase um hino à sua região, que começa assim,
“`às
quatro da madrugada…, o passarinho cantou…”,
querendo isto dizer que o passarinho acordou aquela
gente às quatro da madrugada, portanto talvez também
me tivesse acordado a mim, talvez tivesse acordado as
minhas raízes da Europa distante, que não me saem do
pensamento e de que muito me orgulho.
Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 5 de abril de 2015 >
Guiné 63/74 - P14435: Libertando-me (Tony Borié) (11): Tabanca de Luanda, Mansoa, o nosso terreiro