1. Em mensagem do dia 3 de Julho de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos este belíssimo texto a propósito do centenário de seus pais que ocorre este ano.
O CENTENÁRIO DOS NOSSOS PAIS
Para recordar e homenagear os nossos pais, no ano do centenário do seu nascimento, estamos aqui os filhos, os netos e os bisnetos, está toda a sua descendência.
Ele chamou-se Emídio António Baptista. Ela chamou-se Maria das Dores Magalhães. Nasceram na Rua dos Paus, em Brunhoso, em casas que distavam entre si cerca de cem metros. Nesse convívio próximo, que marcou o seu crescimento de meninos e adolescentes, aprenderam a conhecer-se, a estimar-se e a admirar-se.
Ele, sendo o filho varão mais velho da família, com a morte do pai, que aconteceu quando tinha apenas 16 anos, teve uma adolescência difícil pois teve que trabalhar duramente na lavoura e ajudar a mãe a dirigir a casa agrícola. Muitas vezes a nossa mãe, na varanda ou atrás das janelas, terá visto esse seu vizinho passar com carros de vacas, carregados ou vazios, para as hortas, para as sementeiras, para as colheitas do trigo e do centeio ou para a cortiça.
Fisicamente era bastante alto, forte, atlético e ágil. Sem nunca se vangloriar disso foi durante muitos anos campeão do lançamento da relha e do ferro, jogos tradicionais muito praticados pelos jovens e homens desse tempo. Nas feiras de Mogadouro vinham por vezes lançadores doutros concelhos a desafiá-lo para a prática desses jogos.
Ela era uma jovem inteligente, bonita, duma vaidade austera, humilde na sua relação com todos mas orgulhosa dos pais que tinha. Gostaria de ter sido professora primária mas não a deixaram estudar. Nesse tempo o dinheiro não abundava e aos filhos de pequenos lavradores nunca lhes era dada essa possibilidade.
Aprendeu a costurar, arte que lhe foi muito útil para vestir filhas e filhos durante muitos anos, aprendeu a tratar do linho, da lã, a tecer e a fazer outros trabalhos domésticos.
Já numa fase tardia da adolescência, frequentando esporadicamente a casa dele, na companhia da Adelaide, sua irmã mais velha, de quem era amiga, duma forma discreta, como ambos gostavam, sem palavras, com um olhar claro e transparente, terá respondido ao olhar dele, que sim, que o amava.
O arquivo secreto da nossa mãe, onde guardava as cartas do namorado, depois marido, e dos filhos, era numa arca de madeira, no meio de lençóis de linho. Foi lá que uma filha, adolescente e curiosa, encontrou um dia algumas cartas que o namorado lhe terá escrito durante a vida militar. Cartas que começavam sempre por “Minha Maria”. Mas a nossa mãe encontrou-a nesse delito de inconfidência, quando ainda só tinha lido uma carta. Foi uma pena para a história da família, pois essas cartas nunca mais foram encontradas e perdemos a possibilidade de conhecer melhor o lado mais meigo e gentil do nosso pai que sendo educado na sociedade paternalista transmontana, procurou sempre esconder debaixo duma capa mais dura.
Do que escreveu, restam apenas três livros de deve e haver, de uma escrita simples de contabilidade dum lavrador e negociante de cortiça, com algumas observações ocasionais sobre a sua vida pessoal e familiar, que os filhos tiveram o cuidado de guardar.
Casaram com a idade de 24 anos e foram viver para uma casa pequena, próxima da casa da mãe dele, que tinha sido duma parenta conhecida por Maria Pequena. Só com cozinha e um quarto, foi a casa onde tiveram os primeiros filhos, dois ou três. Mais tarde foram viver para casa dos pais dela, enquanto iam construindo a casa deles, que encheram de filhos. Foram dez os filhos, três morreram ainda meninos. Somente recordamos, alguns de nós, o Zézinho, um menino calmo e meigo, de tez clara, era o mais novo de todos, um menino muito lindo, dizia toda a gente, segundo a nossa mãe. Era muito lindo, eu conheci-o.
Dos sete que se criaram falta aqui um, infelizmente morreu cedo, o Tomás, que hoje recordamos igualmente com muita emoção. Foi um grande trabalhador, tanto na casa dos pais como na casa dele, quando constituiu família. Eu, muito próximo dele na idade, nalguns
trabalhos e noutras vivências, senti muito a sua falta. Todos os irmãos a sentem, cada qual à sua maneira, os filhos muito mais.
As boas árvores conhecem-se pelos frutos que produzem e o Tomás deixou três filhos e uma filha, todos bem educados, honrados e trabalhadores.
Os nossos pais, de início com poucos meios para criar a família que crescia quase todos os anos, foram cultivando terras emprestadas pela mãe dele ou pelos pais dela. Por outro lado, ele começou a negociar em cortiça, um negócio que já fora do pai dele e dum seu avô. Já conhecia alguns produtores do concelho e alguns fabricantes de Lourosa. Tinha uma grande convivência e amor, aos sobreiros que algum avô ou bisavô dele tinha semeado ou plantado nos montes da Lagariça, Ferreiros, Ortelã, Ribeira, Relva e Azinhal. Conhecia bem a cortiça.
Negociar é uma arte de que somente alguns conseguem conhecer os segredos e sabem praticá-la com êxito. Para além da seriedade e da fidelidade à palavra dada, com o seu feitio reservado mas sempre cordial, sabia usar as palavras certas para conquistar a confiança e a simpatia dos outros, o que transformava as suas relações comerciais em relações de verdadeira amizade.
A nossa mãe trabalhava muito. Andava sempre cansada, dizia-se que sofria do coração, mas nunca parava. Gostava de ter meninos, adorava-os. E os meninos cresciam, ficavam grandes e continuavam a dar muito trabalho. Mas ela continuava com um amor imenso a esses meninos que iam crescendo e se faziam homens e mulheres.
Ajudava algumas pessoas mais pobres. Com muita discrição uma vizinha, boa pessoa, com poucos recursos, de quem o homem até não gostava muito por a achar muito intrometida. Dava esmolas às ciganas que lhe batiam à porta a pedir pão, batatas e o azeite para o fiolho. Todas essas mulheres tinham muitos filhos, ela também mãe de muitos filhos imaginava a dor das outras mães por não terem pão para lhes matar a fome. Uma delas, uma cigana gorda, mal encarada, pedinchona, batia-lhe à porta quase diariamente e a nossa mãe dava-lhe sempre esmola, contra a vontade de alguns dos filhos, que não gostavam dela. É que essa cigana além de ter muitos filhos era viúva. Ajudava muito, também, as famílias de triteiros - faziam pequenas acrobacias, eles e os filhos e outros pequenos números de circo – que por vezes lhe pediam a curralada, em frente à casa, para se albergarem e darem espectáculos.
O nosso pai, tenho pensado que sem dar esmolas, dava uma boa ajuda aos seus trabalhadores, da seguinte forma:
Depois das ceifas, das colheitas do trigo e do centeio e da tiragem da cortiça, os meses de Setembro, Outubro e Novembro agravavam muito a pobreza dos trabalhadores, pois a colheita da azeitona só começava a 8 de Dezembro. Lembro-me que nalgum desse tempo parado, que podia ser de fome para algumas casas, contratava quinze a vinte homens, dos mais habituais ao serviço da sua casa agrícola, para trabalhar na Lagariça a fazer desmatagem dos sobreiros. Mas essa desmatagem profunda, feita com o arranque manual dos arbustos feita com pás e picaretas, durante cerca de um mês, nunca chegava a atingir meio hectare, o que não era significativo face aos vários hectares de área de sobreiros que ele lá tinha. Durante muito tempo intrigou-me esse facto, mas depois, conhecendo o carácter discreto do nosso pai e o respeito que tinha pelos trabalhadores, acabei por me convencer de que ele fazia essa desmatagem para benefício dos sobreiros mas sobretudo para benefício dos homens, que eram dignos chefes de família como ele e que precisavam de dinheiro para a alimentar, mas que também, sabia-o ele bem, nunca aceitariam esmolas de ninguém.
Era simpático com os jovens, comprava-lhes sacos de cavacos de cortiça, a bom preço. Alguns dos nossos primos e outros desse tempo ainda hoje me falam nisso. Aos filhos não nos comprava nada, talvez com receio de irmos encher os sacos às rimas de cortiça dele. Eu, de garoto, só me lembro dos trocos dos responsos que me dava o padre Zé na Igreja, e alguma coroa que encontrava quando andava ao rebusco lá em casa.
Se me encontrava na rua à luta com outros rapazes chamava-me e dava-me umas bofetadas com a mão dura dele, que magoava mesmo. Eu achava-o injusto porque pensava que o culpado da luta era o outro e o meu pai nem razões queria saber. Era assim, bastante duro com os rapazes, filhos dele, a quem procurava educar através duma educação espartana. Queria fazer de nós guerreiros destemidos. Recordo-me que, quando mobilizado para a Guiné, fui passar três dias a Brunhoso com ele, ele que nunca tinha cozinhado, fazia umas sopas muito boas. Estava sozinho, a mulher estava com os mais novos, que estudavam em Vila Real. Quando parti, foi comigo a Mogadouro, a despedida foi perto da estátua do Trindade Coelho, ele comoveu-se e deixou cair umas lágrimas, eu fiquei emocionado. Enfim, as lágrimas de um duro comovem qualquer guerreiro.
Com as filhas era mais meigo e tolerante e se tinha alguma censura a fazer-lhes encomendava-a à mulher. Quando veio a moda da mini-saia muitos recados ouviu a nossa mãe por causa de uma filha, que habilidosa, subia sempre as saias que a mãe lhe fazia abaixo do joelho.
O nosso pai morreu cedo, aos 59 anos, depois duma doença grave que o atormentou durante três anos. A nossa mãe, viúva, com a mesma idade, sofreu muito com a partida do seu companheiro de sempre. Para agravar o enorme desgosto pela sua morte sofreu muito pela solidão em que ficou na sua casa vazia. Os filhos, alguns estavam casados, outros trabalhavam longe e outros ainda estudavam. Enquanto a saúde lho permitiu nunca quis deixar a casa dela, apesar de solicitada por filhas e filhos. Algum tempo mais tarde, a Lurdes, já casada e com meninas, alegou que precisava da ajuda dela e conseguiu levá-la para junto de si alguns anos.
Estava presa à terra dela com raízes fortes. Lá estavam todas as suas melhores recordações, dos seus queridos pais, do seu marido e dos filhos nas suas várias fases de crescimento. Na Igreja, essa casa grande e sagrada que a transportava para junto de Deus, todos os Santos lhe eram familiares.
Gostava de ir à horta de Lamas, esse chão para ela sagrado, que herdara dos seus pais, que ajudara a cultivar e tratar ainda menina, com os pais, e já adulta, com o seu homem e os filhos. A burra dela, muito dócil, foi o seu transporte e boa companhia de muitos anos, no caminho para lá, que os netos e netas adoravam, sobretudo quando subiam nela para a beira da avó. Gostava de encher a despensa com todo o género de hortaliças para dar aos filhos quando iam estar com ela ou somente visitá-la.
Porque lhe sobrava o tempo e porque não gostava de estar parada fazia também colchas de renda para os filhos.
O quarto dos nossos pais conserva ainda na parede da cabeceira da cama um quadro com a imagem do Sagrado Coração de Jesus, um grande rosário de cortiça numa outra parede e algumas imagens e estatuetas de santos pousados sobre uma cómoda, onde também se encontra um retrato de um soldado garboso, fardado com elegância, dos finais da década de trinta do século passado. Quando o seu Emídio morreu, a nossa mãe foi buscar essa fotografia do seu namorado, à arca onde a tinha guardado, e colocou-a nesse altar junto dos santos. Tinha-lhe sido enviada por ele de Mafra onde esteve na tropa, com uma linda dedicatória e era a única que tinha da sua juventude. A fotografia torna o nosso pai mais presente, a nossa mãe está presente em toda a decoração que ela fez, que as filhas e netas mantêm, com santos, santas e o amor da sua vida.
No silêncio do dia, da aldeia quase deserta, há uma nostalgia que se espalha pela casa vazia que parece trazê-los à vida. Eles continuam vivos, vivos no sangue que nos corre nas veias, vivos no amor, no trabalho, na dedicação, vivos nos ensinamentos e nos exemplos de vida, que foram muitos. Vivos na raça, na coragem, no génio, os nossos pais, vossos avós e bisavós, foram uns heróis e como os heróis eles são imortais!
Tiveram muitas qualidades, que sempre gostámos de ver projectadas em filhos e netos. Legaram-nos uma herança imaterial imensa, muito mais valiosa do que as terras ou sobreiros que nos deixaram, que todas as gerações de Magalhães Baptistas têm que preservar
Francisco Maria Magalhães Baptista
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Nota do editor
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