sábado, 2 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23133: Documentos (36): Psico e propaganda: por uma "Guiné Feliz": um desdobrável com postais a cores, tipo Banda Desenhada, doado à Tabanca Grande pelo Joaquim Sequeira, o "Sintra", ex-1º cabo carpinteiro, BENG 447 (Brá, 1965/67)


Postal  nº 2


Postal  nº 3
Postal  nº 4

Postal  nº 5
Postal  nº 6


Postal  n 8

Postal  nº 9


Postal  nº 8


Postal   nº 1 > Guiné Portuguesa, Guiné Feliz... O nosso caamrada Joaquim Sequeira, o "Sintra, que foi 1º cabio carpimnterio, BENG 447 (Brá, 1965/67) assinalou os nomes dos aquartelametos e destacamentos por onde passou em serviço: no sector de Bissau, Brá, Santa Luzia, Bissalanca e Safim; na região de Quínara, Enxudé, Tite, Jabadá e São Joao; no arquipélago dos Bijagós, ilha das Galinhas e Bolama; na região do Gabu, Nova Lamego e Canjambari: no região do Oio,  Cuntima, Jumbembem, Farim, K3, Mansabá,Mansoa, Cutia, Bissorã, Olossato; na região do Cacheu, Binta...

Fotos (e legendas): © Joaquim Sequeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Joaquim Sequeira, o "Sintra",
Tabanca da Linha (2016)


1. Já aqui falámos, mais do que uma vez, dos "cartazes de propaganda que deixávamos no mato, nas clareiras, nos trilhos, nas bolanhas, nas regiões fora do nosso controlo, na esperança de que os guerrileiros do PAIGC, as suas milícias e a sua população se entregassem em massa às nossas autoridades, administrativas e militares" (*).

Pessoalmente, "nunca cheguei a observar os efeitos práticos e objectivos deste tipo de propaganda. Os 'homens do mato' que conheci foram os que fizemos prisioneiros; a população do mato (mulheres, velhos e crianças) que recuperámos, foi a que arrancámos, à força, das zonas controladas pela guerrilha".

O A. Marques Lopes, logo no início do nosso blogue (Poste P81) (*), mandou-nos uma coleção de cartazes, ou melhor, de postais, que voltamos a publicar mas desta vez com melhor qualidade de inagem: a coleção foi-nos dada, para publicação no blogue, pelo Joaquim Nunes Sequeira,  mais conhecido na Tabanca da Linha pela alcunha "O Sintra". Ex-1º cabo carpinteiro, BENG 447, Bissau, 1965/67, é um camarada sempre sorridente, afável, voluntarioso, que exerce (ou exercia antes da pandemia, em 2019)  as funções de vogal da direção e porta-estandarte do Núcleo de Sintra da Liga dos Combatentes.  

Os postais foram por nós digitalizados. É um material produzido no âmbito da Acção Psicológica (mais congecida por Psico) e remonta ao tempo do com-chefe e governador-geral gen Arnaldo Schulz (1964-1968). Já aqui o dissemos: é um material "muito interessante,se bem que revele alguma ingenuidade e uma estética de duvidosa eficácia". Mas trata-se de um documenatação valiosa, com interesse iconográfico e historiográfico. Não a encontro, por exemplo, no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril.

Já tínhamos pedido ao  A. Marques Lopes, para ver se descobria a origem e o ano ("Quem os produzia, quando, para usar onde"...).

O Marques Lopes respondeu-me, na altura,  que "esses folhetos que enviei tínhamo-los quer em Geba quer em Barro, portanto em 1967 e 1968, para espalhar pelas matas. Nenhum deles tem indicação de autor ou de origem, mas é certo que apareciam em pacotes vindos do Comando Chefe de Bissau". 

Uma coisa é certa: eram cartazes destinados especificamente ao teatro de operações da Guiné. E deviam ser produzidos no QG/CCFAG, Rep ACAP- Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, cujas instalações se situavam na Fortaleza da Amura. Um dos nossos camaradas que lá trabalhou, na segunda parte da sua comissão, foi o Ernestino Caniço.

2. Julgo que também me passaram pelas mãos alguns desses cartazes, mas não fiquei com nenhum. Alguns foram deixados atabalhiadamente no terreno, depois de uma violenta embioscada dos "homens do mato". Não tive a preocupaçao de guardar nenhum documento desse tipo, de um lado ou do outro. Na altura o que eu queria mesmo era esquecer a Guiné... para sempre.  

A colecção (no fundo, é uma sequência de banda desenhada, sob a forma de um folheto desdobrábvel com uma meia dúzia de postais, impressos de um lado e do outro) começa com uma imagem do mapa da Guiné ("Guiné Portuguesa, Guiné Feliz") (Postal nº 1) (**)

A numeração é da minha única responsabilidade: tem a ver a lógica da sua sequência para efeitos de leitura.

O segundo postal mostra um grupo de guerrilheiros, no mato, feridos e/ou desmoralizados (vd. i,magem no topo deste poste). Os combatentes do PAIGC nunca são tratados como tal, mas simplesmente como "homens do mato" (leia-se: bandidos, indivíduos que estão fora da lei e da ordem). Aliás, no nosso tempo, "ir no mato" era, no falar das gentes da Guiné, juntar-se à guerrilha, fugir das zonas sob administração portuguesa. Portugal, de resto, nunca reconheceu o PAIGC como inimigo, no sentido militar e legal do termo,  nem a luta contra o "terrorismo" (ou a "subversão) como uma situação de guerra, face à Convenção de Genebra. (Postal nº 2)

O título do cartaz é : "No mato, há doença, fome e morte", A legenda, por sua vez, diz o seguinte: "O Chefe do Grupo do mato julga que vai morrer. Foi gravemente ferido"

No Postal nº 3 vemos o mesmo grupo de "homens do mato" a entregar-se às autoridades militares portuguesas da zona. Depois do Chefe do mato ter ido falar com o "homem grande da tabanca" (que veste à maneira fula, o que está longe de ser inocente, já que os fulas eram os nossos grandes aliados).

Legenda: "O Homem Grande diz à tropa que estes homens foram enganados, estão arrependidos e fartos da guerra".

No Postal nº 4 vemos os "homens do mato, arrependidos" serem bem tratados pelas autoridades portuguesas: (i) são tratados pelos enfermeiros da tropa, (ii) bebem cerveja com soldados africanos; (iii) recebem alimentos (pão) da tropa.

No Postal nº 5 vemos uma tabanca, sob a bandeira portugesa (e, parece-me, ao canto superior direito, descortinar uma inverosímil antena de televisão ou takvez antes de rádio. Legenda: "A família e os amigos abraçam a gente do mato que estava enganada e não vivia na tabanca há muito tempo". a 

Por fim, "a tropa e os civis ajudam aqueles que se apresentam a reconstruir a sua tabanca" (clara referência aos famosos "reordenamentos" (o equivalente às "aldeias estratégicas" na Argélia e no Vietname) que, no tempo do Spínola, tiveram um grande incremento (Postalnº 6).

Por fim, surgem os homens grandes de Bissau (o gen Arnaldo Schulz e a sua equipa) para observar (e regozijar.se com)  os progressos: "Agora sim! Aqueles que regressaram arrependidos  vivem contentes na tabanca nova..." concluindo.se que "há paz e alegria e nunca mais faltará Felicidade" (um conceito abstracto, para a generalidade dos guineenses daquela época). (Postal nº 7)

O postal seguinte  tem uma lógica implacável, a da deserção e da rendiçao: "Apresenta-te à tropa, levanta os braços"... Mostra dois "homens do mato", de braços levantados, segurando a sua espingarda semi-automática (Simonov ?) por cima da cabeça (Postal nº 8)... O último postal  é o da bandeira verde-rubra, que se repete nas costas dos postais anteriores.

3. Veja-se o que diz o Centro de Documentação 25 de Abril sobre a propaganda, usada durante a guerra colonial, por um lado e outro:

(...) "A acção psicológica destina-se a influenciar as atitudes e o comportamento dos indivíduos. Na guerra subversiva é utilizada para obter o apoio da população, desmoralizar e captar o inimigo e fortalecer o moral das próprias forças, assumindo três aspectos diferentes, embora intimamente relacionados: acção psicológica, acção social, acção de presença.

"Quer as forças portuguesas, quer os movimentos de libertação, usaram intensamente a acção psicológica como arma, integrando-a na panóplia de meios disponíveis para a conquista dos seus objectivos, dentro da ideia que as palavras são os canhões do séc. XX e que, como se ensinava aos futuros chefes da guerrilha na escola de estado-maior da China, na guerra revolucionária deve atacar-se com 70 por cento de propaganda e 30 por cento de esforço militar.

"A acção psicológica exercida sobre a população, o inimigo e as próprias forças foi conduzida através da propaganda, da contrapropaganda e da informação, de acordo com as finalidades de cada uma destas áreas: a primeira, pretendendo impor à opinião pública certas ideias e doutrinas; a segunda, tendo como finalidade neutralizar a propaganda adversa; por último, a informação, fornecendo bases para alicerçar opiniões. Mas, para serem eficazes, os meios de condicionamento psicológico necessitam de encontrar ambiente favorável.

"Quanto às populações, procurou-se criar esse ambiente propício com a acção social, que visava a elevação do seu nível de vida, para as cativar, conquistando-lhes os corações e originando condições mais receptivas à acção psicológica. Esta acção foi desenvolvida sob a forma de assistência sanitária, religiosa, educativa e económica.

"Relativamente ao adversário, a acção psicológica das forças portuguesas era isolar os guerrilheiros das populações, desmoralizá-los e conduzi-los ao descrédito quer na acção, quer na dos seus chefes. Para o efeito utilizaram-se panfletos e cartazes lançados de aviões ou colocados nos trilhos de acesso e nas povoações, emissões de rádio, propaganda sonora directamente a partir de meios aéreos, apelando à sua rendição e entrega às forças militares ou administrativas, garantindo-lhes e explicando-lhes que a participação na guerrilha constituía um logro". (...) (Negritos nossos)
___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 20 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22923: Documentos (35): Comunicações e Ordens enviadas pelo Estado-Maior do Exército e do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné - Anexo à Circular N.º 1703/NP da 2.ª Repartição do Estado-Maior do Exército (2) (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23132: Manuscrito(s) (Luís Graça) (209): O (futuro) museu nacional da guerra colonial...


Típico grafito dos "bunkers" da Guiné... Imagem (e legenda): LG (2019)


1. O museu nacional da guerra colonial

por Luís Graça

Um dia até as pombas da paz do Picasso repousarão
no museu da guerra,
em relicários, de aço,
mais as moscas, regressadas dos campos de batalha,
das  bolanhas, das chanas, das savanas, das florestas-galeria
de além-mar em África.
As moscas, e os mosquitos,  espetados em alfinetes lá ficarão  
nos respetivos mo(n)struários.

No museu nacional  da guerra colonial 
só haverá mo(n)struários.

Agora elevadas à categoria de artefacto cultural,
as moscas, exangues. cobertas de terra verde-rubra,
mais a merda das moscas, liofilizada,
como os grelos e o bacalhau que comias na noite de Natal.

No Norte do teu pais,  onde há gente decente, 
diz-se: "Com a sua licença, a merda".

Um dia ouviste o senhor comandante do teu batalhão,
veterano da guerra da Guiné
e especialista em águas minerais,
dizer, enquanto beberricava o seu uísque com água de Perrier,
"Chiça!, sempre mais vale uma mosca na sopa
do que um míssil na messe de oficiais".

A tua não foi uma guerra tamanha, foi tacanha,
de baixa intensidade, 
escreveu o escriba do jornal
agora promovido a historiador oficial.

Eh!, pá, não viste mísseis hipersónicos a cruzar o Geba ou o Corubal,
o Cacheu, o Mansoa,o rio Grande de Buba, o Cumbijã, o Cacine,
mas milhões de insetos caíam-te na sopa.

Salgada, a sopa, da água da bolanha, fria, 
desconsolada, a saber a ferro, 
boa para  a anemia.

A responder-lhe, ao veterano,
seria com a célebre frase de um general prussiano
(um general das guerras napoleónicas,
ainda por cima prussiano,
sempre é mais ovoestrelado
do que um tenente coronel do exército colonial):
"A guerra não é mais do que a continuação da política de Estado
por outros meios".
Fim de citação, ponto final,
... e siga a Marinha até ao Terreiro do Paço.

Dizia-se que era o mais longe onde se podia ir,
para não haver derrapagens no orçamento militar.

De megafone em punho,  à laia de baioneta,
ouvirás o guia-mor do museu,
herói, deficiente, maneta, 
o olhar baço, o peito ainda ardente,
a falar-te da arte e da ciência da guerra.
E da importância que era devida aos detalhes de barba do combatente 
mesmo nos felizes e alegres dias da paz.

Lá estava o aviso exposto na tua camarata:
"Mais vale perder um minuto na vida,
do que a vida num minuto".

Nunca chegaste a perceber
por que razão é que o soldado tinha que ser tosquiado,
como o cordeiro da Páscoa.
Dizia o cronista-mor do reino,
que fez a cobertura mediática do desastre de Alcácer Quibir,
que era para ir ao encontro da deusa da morte, 
devidamente ataviado.

Rebobinando o filme da história desta guerra 
(e afinal de todas as guerras),
vê-se que  faltou sempre a visão do todo
ao marechal de campo,
visão que só podia ser major do que a soma dos detalhes.

A única filosofia de vida que tu, soldado, ouviste na tropa,
for ao teu tenente de instrução de especialidade,
era simples e prática, e não rimava com liberdade:
que a merda era o adubo... da vida, blá-blá;
que era fazendo merda, que tu aprendias, blá-blá.

E sobretudo nunca te devias esquecer
que era com a merda dos grandes, cá,
que os pequenos se afogavam, lá.

À quinta feira (seria ?, que importa o dia!),
depois da feira do gado bovino,
fazia-te, a ti e à malta do pelotão, rastejar na bosta,
enquanto ele namorava com a sopeira do capitão,
debaixo da janela, bem aparadas as patilhas
e perfumadas as virilhas.

É por isso que  ainda hoje não gostas... de xarém,
as papas de milho com conquilhas,
muito menos à moda de Tavira.

Na tropa-do-um-dois-três-e-troca-o-passo,
do vira do Minho a Timor,
nunca soubeste onde ficava o Norte.
Nem nunca soubeste pôr ao pescoço o baraço
para te enforcares no pau da bandeira.
Ou saltar o galho com garbo
ou fazer um manguito de bravata,
nem fazer o nó à gravata,
nem onde pôr a mão esquerda,
nem o ombro arma,
a arma no ombro
ou o ombro na arma
e muito menos, porra!,  ajustar o amuleto da sorte, 
ao peito.
Pior: não sabias sequer a letra do hino,
de cor e salteado
 nem tão pouco fazer o pino.

...Mas nem por isso te chumbaram, desgraçado,
que a pátria te chamava  e tinha pressa.

Depois um dia, no meio da guerra,
quiseram mandar-te para a psiquiatria,
o que era estranho, porque o Erre-Dê-Éme
em todo o seu articulado,
não previa a figura do inimputável
nem a do cacimbado
ou do apanhado do clima
"Deem-lhe um valium dez,
metem-no numa camisa de forças",
gritou o comandante das tropas em parada
ao médico, amável,
ao enfermeiro, calado que nem um rato,
ao maqueiro, rapaz cortês,
e merda para todos os três.

"Sempre era mais cómodo e barato
do que embrulhá-lo em papel selado!"

Deficiente das forças armadas,
prometeram-te depois um mundo melhor,
protésico e radioativo, 
com escudo de proteção,
sem armas de arremesso,
seguro contra todos os riscos e outras tretas:
só não te disseram o preço.

"Não, muito obrigado,
mais vale andar neste mundo em muletas
que do no outro em carretas".

Procuravas, além disso, uma mão...
Sim, a direita, com cinco dedos,
disposta a ajudar o teu pobre braço.
Esquerdo, sinistro, decepado.
 
Davam-se alvíssaras 
a quem salvasse o império,
tu deste o braço.

Morrer eras quando tu chegavas um beco sem saída
e não tinhas um kit de salvação.
Morrer em Nhabijões,
em Madina do Boé,
em Gandembel,
em Mampatá,
na Ponta do Inglês,
em Gadamael
ou em Missirá
... ou no Pilão, numa cena canalha,
tanto te fazia.
A morte não tinha SPM como os aerogramas da Cilinha,
e só morria quem não tem estrelinha,
que a sorte protegia os audazes
e quem morria, morria de vez,
e queria mortalha.

O mesmo era dizer: 
que o deixassem finalmente em paz!


A vida com a morte se (a)pagava.
Havia sempre moscas 
à espera do teu cadáver, prometido e adiado,
E jagudis, e formigas bagabaga, e um dia aziago,
E um primeiro sorja da CCS que te punha os pontos nos ii.
E um capelão que te fechava os olhos,
com extrema unção e a devida compaixão, divina,
e missa simples, sem cantorias nem  sermão.
E um coveiro que te pregava as tábuas do caixão.
E como a viagem era longa até casa,
ias hermeticamente fechadom
não fosse o diabo tecê-las!

"Não perturbem, do defunto, o sono eterno!",
podia ser o teu epitáfio.

A prática, diziam-te, levava à perfeição,
exceto no jogo da roleta russa
que jogavas nas picadas da Guiné,
a G3 contra a Kalash,
a pica contra o fornilho,
o pé contra a mina APê, 
o coiro, encardido, contra o Erre-Pê-Gê Sete,
russo ou chinês, do internacionalismo proletário!
Por isso tu vivias cada dia,
como se aquele fosse o único que te restasse
no calendário de parede, no teu abrigo,
grafitado com gajas nuas.
E muitos traços, em conjuntos de sete,
marcando a eternidade de uma semana.

Ah! E os órgãos de Estaline, não te esqueças,
dos órgãos, mesmo que hoje já estejam embalsamados
lá no mausoléu.
 
Cada dia era o primeiro,
o único, o original, o irrepetivel,
no jogo da vida e da morte!
E antes de rezar as matinas,
as mãos erguidas ao céu,
fazias o teste do dedo grande do pé esquerdo,
o do joanete,
o dos calos,
o das bolhas,
o da unha encravada,
o das matacanhas,
o das pisadelas,
o mais azarento,
o rebenta-minas!

Lembras-te, ó Marquês, sem acento circunflexo ?!

Não sabias se o pintor de Guernica
(ou Gernika, que o topónimo era basco
),
gostaria de ter conhecido Adão e Eva no Paraíso, em pelota,
pobres amantes.
Ou a Terra Prometida quando era rica,
e era sempre primavera, nunca inverno,
e nela corria então o leite e o mel,
mais o ouro,  o petróleo e os diamantes.

Afinal, todos os pintores preferem fazer batota,
querendo entrar no céu
e pintando o inferno.


Não, afinal, nunca chegaste  a conhecer, em vida,  
nenhum museu da paz, 
apenas o desta guerra, ao vivo e a cores,
e que não tinha cenários de opereta:
as balas eram de puro aço ,
e as bombas não eram treta.
Também sempre detestastes  as pombas 
que te cagavam a varanda e a janela,
e muito menos eras fã do Picasso.

Camarada: que a terra da tua Pátria, ao menos, te tenha sido  leve!
Sit tibi terra levis!, 
como já diziam os soldados romanos
que te colonizaram.
 

3 out 2012 (*). Revisto, 21 de março de 2022, dia mundial da poesia (**)



Guernica, de Picasso, 1937. Óleo sobre tela, 349 cm × 776 cm. Museu Rainha Sofia, Madrid, Espanha... Imagem do domínio público: Cortesia da Wikipedia.]


2. Comentário do nosso editor:

Já há, no nosso país, um Museu da Guerra Colonial, que eu por acaso ainda não visitei. Fica em Vila Nova de Famalicão, terra de alguns dos nossos grã-tabanqueiros, como a Rosa Serra ou o Joaquim Costa.

Mas é uma museu municipal... Nasceu, segundo se lê no sítio, no ano de 1999, através de uma parceria entre o município de Vila Nova de Famalicão, a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e a AlfaCoop (Externato Infante D. Henrique de Ruilhe). Teve por base um projeto pedagógico intitulado "Guerra Colonial, uma história por contar"-

Oferece ao visitante uma exposição permanente que pretende retratar o itinerário do combatente português na Guerra Colonial (1961-1974), atrvés de áreas temáticas como: O Embarque; O Dia-a-Dia; As Operações Militares; Os Nativos; A Ação Social e Psicológica; A Religiosidade; Os Horrores da Guerra; A Morte; A Correspondência e as Madrinhas de Guerra.

Pormenor importante: todo o acervo museológico foi cedido ou doado por antigos combatentes ou seus familiares, por delegações da ADFA e pelos vários ramos das Forças Armadas Portuguesas.

Mas, segundo (in)confidências de círculos próximos da senhora ministra da defesa nacional, este museu pode vir a ser "nacionalizado", e passando a ser apenas um polo regional de um projeto museológico muito mais vasto e ambicioso, de âmbito nacional, com várias parcerias: museu do exército, museu da marinha, museu do ar (FAP), arquivo histórico-militar, academia militar, universidades... O projecto integrar-se-ia nas Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril.

Questão delicada e que divide os potenciais promotores é a sua designação: Museu Nacional da Guerra do Ultramar, Museu Nacional da Guerra de África ou Museu Nacional da Guerra Colonial ?


Interessante parece ser a ideia, do ministério da defesa nacional, de tentar salvar e recuperar as páginas e os blogues mantidos por antigos combatentes na Internet. Mas tudo isto ainda está no segredo dos deuses (ou das deusas)...
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 deoutubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10475: Blogpoesia (306): S. T. T. L., Sit tibi terra levis!... Que a terra da tua Pátria, ao menos, te seja leve!.. (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2022:

Queridos amigos,

O primeiro-cabo Martins ambienta-se a Guileje, dá-nos conta de um pequeno Inferno ali ao lado, a vida em Gandembel, já apareceu o brigadeiro Spínola que deixou cair o monóculo num panelão onde cozia o feijão frade, criou amizades na tabanca, não desgosta da comida local, anda por vezes nos patrulhamentos com o rádio às costas, ajuda a escrever cartas a madrinhas de guerra, já enfrenta com mais serenidade as flagelações. 

O que vai surpreender o leitor destas memórias é a cultura clássica do Martins, não lhe escapa Ovídio nem Xenofonte, nem António Ferreira nem Tomás António Gonzaga, e não nos indispõe as suas latinidades, vê-se perfeitamente que foi assim que lhe vieram às memórias as recordações de Guileje e arredores. Mas que é uma invulgaridade é, e uma bonita prova de vida contar-nos o que viveu e os afetos que teceu.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (2):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: 

“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. 

"Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa trabalha nas Transmissões. De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:

“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”.

 Cumprida a visita, o homem grande de Bissau partiu para Gandembel, e Martins da Costa enquadra o que se passa no Corredor da Morte, ali nas fímbrias de Guileje e um suplício das colunas até Gandembel, todas elas a convidar minas e emboscadas. E anota o esforço hercúleo que custou à tropa edificar um aquartelamento naquele lugar inóspito, desmatar, derrubar palmeiras, erguer as instalações do quartel, sempre com os efetivos do PAIGC a não dar tréguas.

E lembra que ali perto está o rio Balana, todas as colunas de reabastecimento se fizeram com sobressalto, havia colunas que partiam de Aldeia Formosa e dá-nos a saber:

“Entre Aldeia e Gandembel há um sítio, ponte Balana que do rio e da ponte que sobre ele está lançada, a tropa o nome lhe tem dado, sítio com fama de fatídico, tanto como do lado de cá o cruzamento de Guileje. Ali, nomeado mês (terá sido maio de 1968), depois de duas colunas terem passado sem serem incomodadas, a terceira foi o Diabo: quatro mortos, ou talvez mais, de uma assentada. Dias depois, também para as bandas de Aldeia, havia de ser um Inferno, com mais alguns militares para sempre tombados, e outros – dois, três? –, não se sabe quantos – apanhados à mão pelo inimigo”.

A 5 de junho, já o Martins contou que foi bem acidentada. E espraia-se demoradamente a falar da islamização e de alguma etnografia Guineense, ele já percorre a tabanca dominada por Futa-Fulas com quem está a estabelecer uma boa relação. 

Chegou a vez de ir em patrulha a alombar com o rádio às costas, metem-se pela picada em direção a Gadamael, um corta-mato em que a milícia à frente vai esfrançando árvores e arbustos, foi uma trabalheira, não houve minas nem emboscadas. Volta à descrição da vida da tabanca, bem surpreendido anda com a meticulosidade das rezas a Alá, e nisto saltamos para um naco de prosa de que o autor terá gostado muito, até o pôs na contracapa:

“A morte anda rondando, que bem na sentiu o Martins; passou-lhe por cima do nariz, cheirou-a. Foi há pouca; a tarde declinava, os colmos das palhotas, como negros capuzes de monges, tinham um aspeto contemplativo, misticamente recolhido; a terra abandonava-se a um grave repouso depois de algumas horas de calor emoliente, um pesado torpor ia deixando os corpos. Saído de turno, caminhava para o abrigo o nosso herói, sozinho, passo lento, pálpebras descidas, no enlevo da doce quietação do fim do dia. Senão quando, vindo de trás, pelo ar, um silvo que não era de cobra fá-lo estacar. Não presumiu que o ouvido o enganava, acreditou sem ver: uma granada fendia o espaço sobre a sua cabeça a pouca altura, iria cair dali não muito adiante – cair, explodir, projetar em todas as direções as mil estilhas assassinas em que havia de fragmentar-se. O abrigo era já ali. Mas quem há de estar à mercê de um mortífero estilhaço, já ali, figura-se-lhe no outro lado do mundo. E arrojou-se do instinto ao duro chão. Deitado de borco, rosto em terra, atrás da árvore que ali há, aguardou a explosão com a suprema agonia do condenado que vê o carrasco erguer o machado que o vai decepar. Instantes de Inferno foram esses; mas, em discrepância com o Inferno, tiveram fim. Rebentou o temeroso engenho mais à frente, lá para o arame farpado; os estilhaços não rasam o solo, assim, ileso, e com o alívio de quem vê comutado a pena de morte, ergue-se de salto, voa que não corre para o abrigo”.

Vê-se à vista desarmada que Martins da Costa aprecia a arquitetura vernacular, compraz-se na fluidez verbal, e nos remete em casos muitos ou poucos para a consulta do dicionário. Maturou muito antes de chegar a estas memórias dadas à estampa de 2021, cita sem sobrançaria em Latim, qualquer propósito lhe serve, até fala em Ovídio a propósito da descrição que faz do aerograma e até das madrinhas de guerra. 

Chegou um comerciante Fula, chama-se djila, não veio nem de avião nem de viatura, há uma vereda só sabida da população, ligando Guileje a Gadamael, e temos mais notas etnográficas, ninguém se assoa a lenços, comprimem com o indicador de uma das mãos a narina do mesmo lado e, inclinando-se um pouco para a frente, sopram pela outra para terra, que tudo absorve e consome. Vai recebendo prendas de quem o estima, é o caso de Mariama que lhe deu um naco de carne de gazela, já lhe tinha sabido bem arroz condimentado com o molho feito de óleo de palmeira, Martins deslumbra-se com a afabilidade desta gente da tabanca.

Estamos na época das chuvas, não é possível andar-se em colunas, fazem-se patrulhas, Martins fica no quartel, mais questionamentos etnográficos. E resolve apresentar-nos o Pel Caç Nat 51, diz quem é tropa metropolitana, os primeiros-cabos são todos nortenhos, de Entre Douro e Minho e conta-nos o que separa estes homens quanto a nomes de objetos, um diz tacho outro sertã, houve para ali discussão séria, ficamos igualmente a saber como é a vida dentro do abrigo, a prosa vai saltitando sobre questões da Guerra Fria, fala-se mesmo de Mário Pinto de Andrade, volta a haver patrulhamentos e desta vez o Martins alomba com o rádio, temos novos apontamentos etnográficos que metem a hierarquia dos homens grandes, a prática de justiça, a educação das raparigas, ficamos cientes que no abrigo dos brancos do Pel Caç Nat 51, à mesa tosca há bastante elevação das conversas e até se apura que o Martins ajuda um soldado da Companhia local a escrever cartas à madrinha de guerra, nova flagelação, que não correu bem ao PAIGC, há para ali um extenso rasto de sangue, escoados três dias e três noites, que perdura na mata. E assim se chegou ao fim da estação das chuvas.

(continua)


Corredor de Guileje, 1972. © Fotografia de Fernando Monteiro (1º Cabo Enfermeiro), na imagem com a respetiva mala de primeiros socorros, com a devida vénia
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Notas do editor:

Poste anterior de 28 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23121: Notas de leitura (1431): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...

Guiné 61/74 - P23130: Fotos à procura de... uma legenda (164): Bindoro, fevereiro de 1970: Unimog 404, em movimento, com militares e civis (balantas) à mistura, tirada pelo capelão Neves, da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)


Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Fevereiro de 1970 > Destacamento de Bindoro > Coluna, com elementos civis, de etnia balanta. (*)

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Esta foto, do álbum do nosso camarada José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), merece uma "melhor legenda", mesmo em dia de mentiras (como é tradicionalmente o 1 de abril).

Fica aqui o desafio aos nossos leitores, que são bons observadores (**). Acrescentamos apenas que:  

(i) foi tirada em andamento (e até está ligeiramente tremida); 

(ii) aquando de uma coluna para Bindoro (ou vinda de Bindoro, não podemos precisar), no sector de Mansoa;

(iii) em fevereiro de 1970;

(iv) vendo-se  que, no Unimog 404, se misturam,  num equilíbro difícil, civis (balantas, homens e mulheres) com militares que fazem a segurança...
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de maeço de  2022 > Guiné 61/74 - P23125: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte I: Destacamento de Bindoro fevereiro de 1970, guarnecido por forças da CCAÇ 2588


Podia também ser publicada na série "Passatempos de verão" (embora ainda estejamos na primavera):

quinta-feira, 31 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23129: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (2): Carta à Luizinha

Empada - José Teixeira escrevendo

Em mensagem do dia 30 de Março de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos esta Carta à Luizinha para a série Cartas de amor e paz em tempo de guerra:


Cartas de amor e paz em tempo de guerra (2)


3 - Carta à Luizinha

Chamarra, 6 de fevereiro de 1969

Minha querida Luisinha

A noite de ontem foi vivida no seio da mata. Chegou-nos uma informação de que íamos ser atacados, pelo que decidi partir a meio da tarde com parte dos meus homens, e internar-me na floresta, perto do local de onde costumamos ser atingidos. De vez em quando aparecem ao cair da noite, e raras vezes, de manhã cedinho. Prevenir é sempre o melhor remédio… lá fomos nós dormir ao relento, o que por estas bandas até se torna agradável se não houver mosquitos a apoquentar-nos.

Deitado na terra húmida deixei-me envolver pela noite estrelada e um sentimento de autoconfiança veio substituir a confusão e o medo que antes sentia ao caminhar por entre lianas entrelaçadas pendentes de altas árvores com copas gigantescas talvez centenárias. O negro da noite estendeu-se sobre a terra como um abismo insondável, envolvendo-me. Quanto mais profundas são as trevas mais sombria se torna a minha vida e a minha alma. Porém, a escuridão da noite estrelada, sem a luz da lua por perto, assemelhava-se a um tecido negro e transparente onde miríades de pequeninas luzinhas bailavam no cosmos. O negro da noite ganhou vida e me convidou a retornar ao presente. Por vezes, o céu cobria-se de nuvens e o mundo ficava envolvido num negro tão negro que os nossos olhos como que cegavam. Nessas ocasiões vemos com os olhos da alma que nos convida a sermos persistentes e a mantermo-nos ainda mais atentos ao que nos rodeia.

Na alta madrugada, tempo em que o perigo tinha passado, deixei-me passar por um leve sono.

O dia preparava-se para sair do ventre da noite quando acordei. No cosmos, os astros já tinham perdido o seu inebriante brilho. As estrelas perdiam os seus raios de luz e ganhavam uma cor prateada que o sol nascente, a pouco e pouco fez desaparecer. Apenas uma a mais brilhante atraiu a minha atenção. Um fino raio da sua luz penetrou através dos olhos do meu coração. Deixei-me embalar por esta estrela que me ousara fitar de tão longe, rompendo a densa ramagem da floresta. A lesta imaginação, de uma mente perdida de saudade, leva-me, num ápice, até à minha terra, até junto de ti. Talvez tu, meu amor, te tivesses levantado cedo, como é teu costume, para te dedicares aos livros, e ao veres a estrela da manhã te lembrasses de mim e me encomendasses nas tuas orações a Nossa Senhora.

O sol renascido vertia mil raios de luz e calor, sobre a verdura da copa das árvores que nos protegiam, enquanto a límpida e fresca água do rio murmurava suavemente, espreguiçando-se nas margens do tarrafe em tempo de maré vazante, onde milhares de coloridos caranguejos se passeiam lentamente em busca do pequeno-almoço, tornando as margens num tapete natural de inimaginável beleza. Uma brisa leve e suave bateu-me na face amenizando o extremo calor matinal que o sol teima em projetar. Assim, mal dormidos e mal acordados levantamos a emboscada e seguimos alegres e confiantes o caminho de regresso a casa.

A receber-me, com um monte de roupa lavada e passada a ferro com todo o esmero, estava a minha lavadeira, a Binta. Os seus olhos escuros e penetrantes refletem tranquilidade. A paz em tempo de guerra. Os seus lábios parecem talhados em pedra púrpura, tão precisos são os seus contornos, assim como a fina linha dos seus grandes olhos, debaixo de umas sobrancelhas naturais e bem delineadas, pregadas numa face de tal forma bem desenhada pelo artificie divino que a tornam na mais bela mulher africana que conheci até hoje. As maçãs do seu rosto, de um preto rosado vivo e macio, dão-lhe um toque especial, que aliado ao seu aberto e transparente sorriso a tornam divinal.

Não tenhas ciúmes, minha querida Luisinha. A Binta vai casar brevemente com o Braima, filho do chefe de uma tabanca, não muito longe daqui, que está sob a minha proteção, com quem gosto de jogar às cartas enquanto conversamos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo aqui, é muito pequeno, está fechado dentro de duas fiadas de arame farpado. Não fora a guerra que nos atormenta e estaríamos no paraíso, onde toda a gente se conhece e se dá bem, partilha alegrias e tristezas e o pão vai chegando para matar a fome.

Fico-me por aqui, contigo no coração. Sinto tanta necessidade dos teus abraços, do teu sorriso, de te poder dizer olhos nos olhos – amo-te.

E para que não fiques preocupada, os “nossos amigos” devem ter mudado de ideias ou passaram ao largo sem nos incomodar.

Um terno beijinho do teu
Zeca.
Algures no Sul da Guiné

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Nota do editor

Poste anterior de 4 DE JULHO DE 2017 > Guiné 61/74 - P17544: Cartas de amor e paz em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381) (1): Navio Niassa, 5 de Maio e Bissau/navio Niassa, 7 de Maio de 1968

Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...


Capa do livro do nosso camarada António José Pereira da Costa, cor art ref, "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 2020, 184 pp.)



Feira do Livro de Lisboa > Lisboa > Feira do Livro > 6 de Setembro de 2020 > O autor, António José Pereira da Costa, e a representante da editora Alfarroba, na apresentação do livro "Os Velhotes" (*).

Na altura, o autor comentoum no poste P21133, de 7/9/2020 (*):

Olá Camaradas. Efectivamente, se não fossem os ex-combatentes tudo teria sido um fracasso. O Armando Pereira e a esposa são meus colegas na "Associação dos Velhos" onde eu milito e até já aprendi como se encaderna um livro.

O livro é perigoso. Falar de erotismo na 3.ª idade não é fácil e é extremamente difícil penetrar nas atitudes farisaicas e hipócritas de quem varre para baixo do tapete e consequência da nossa educação judaico-cristã. Mas isso já são outros mitos, outras lendas e futuros assuntos para debate para que para tal tiver coragem..



Foto (e legenda): © Carlos Silva (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. C
omentário do autor, inserido no poste P23117 (**)


Olá, Camaradas: Pelo rumo dos "debates", parece que estou entre os meus.

Quem quer comprar o meu livro badalhoco "Os Velhotes", sexo na 3.ª Idade ?!

Na impossibilidade de o exibir aqui (capa e foto do lançamento da obra, na Feira do Livro de Lisboa, em 6 de setebro de 2020),  peço aos editores autorização para fazer um anúncio nos posts do blog.
Dado o tema,  não me atrevi a tentar divulgá-lo. Aqui vai um "método de ataque":

1. Começar pelo prefácio. Ler atentamente. É a parte séria do livro e ela permitirá desembaraçarmo-nos de ideias a que teremos de chamar preconcebidas, à falta de um termo melhor. Na nossa idade, não temos contas a prestar a ninguém. Podemos ser "amorais" à nossa vontade. Se calhar nem a nós mesmos teremos de as prestar. Com os mais novos será diferente? Talvez...

2. Ler devagar. Um conto de cada vez e, depois... uma pausa, para o analisar e pensar. É um rico exercício mental. Nada de exploração do sucesso, a menos que… se proporcione.

3. Poderá haver alguns contos que firam a sensibilidade, dadas as situações pouco ortodoxas que descrevo. Se tal suceder, é abrir a mentalidade e a tolerância e ler com mais cuidado, mas não deixar de os ler.

4. No início de cada conto, está desenhada uma combinação dos símbolos, masculino e feminino, que permite ter uma ideia do teor do conto que se segue. Assim, o leitor não corre o risco de ser surpreendido.

5. Como se vê, não há violência no livro e nas situações que imaginei.

6. Só os personagens – às vezes – usam linguagem desbragada, mas o leitor não ouve o que eles dizem... e, além disso, é/são sempre a/as senhora(s) que toma/m a iniciativa e controlam as situações mais embaraçosas. E assim é que deve ser. São mais sensíveis, digo eu, claro.

7. Chamo a especial atenção para os contos que mais me marcaram: "Os Velhotes" (inspirado num casal com quem nunca falei, mas que decorre numa praia que bem conheço), "Velhos e Libertinos" (dois velhotes suburbanos reservados q. b. mas...) e "Aqueles Dois" (um acto de resistência num sítio onde, como se vai vendo, é cada vez mais necessário resistir). Parece-me o mais bem conseguido, embora com poucas possibilidade de acontecer. Não conheço nenhum conto deste tipo em que um dos personagens morra e o outro o chore, com saudades dos tempos passados juntos. Claro que há "A Viúva" que escrevi de um fôlego e à medida que as ideias surgiam. Só o reli, depois de "pronto". Creio que será um dos mais realistas.

8. Todas as personagens derivam de um trabalho de colagem de características físicas e pessoais(?) de pessoas que conheço. As situações provêm, como não poderia deixar de ser, da experiência da vida, da imaginação à solta e de "histórias" que ouvi contar. Falsas, normalmente ou nem tanto…

9. Está autorizado o açambarcamento para revenda. É possível dizer bem ou mal e eu agradeço uma coisa ou outra. A crítica, mesmo destrutiva é bem-vinda!...

10. Depois, é divulgar no Facebook, Twitter, Instagram, e entre o pessoal cujos e-mails, eu não tenho, mas tu tens.

Um Ab.
António J. P. Costa 

29 de março de 2022 às 23:13

II. Sinopse do livro (***):


Dália é viúva. Casada durante quase cinquenta anos, a perda do marido foi um golpe […] que a vida lhe vibrou. Há umas noites sucedeu o inevitável: sentiu vontade de sexo. Já tinha sentido umas sensações, mas recusara, esmagando a necessidade e reprimindo o desejo. Porém, ontem, ao fim da tarde, aconteceu…

Maria ganhou coragem e foi procurar a bancada de carpinteiro. O coração bateu‑lhe fortemente quando a encontrou. Passou as mãos pelo tampo bem liso [...]. Então, não pôde conter‑se e chorou, chorou muito. Soluçou mesmo. Era ali que se possuíam num abraço violentamente delicioso. Num exercício de forças combinadas, Adriano sentava‑a na bancada e […] penetrava‑a com aquela gentileza que ela sempre tinha apreciado. Depois, vinha o abraço, bem apertado, e o beijo terno e constante…

Ao acordar, olharam‑se bem nos olhos e Pikenina não se conteve e beijou os lábios da amiga, ao de leve, mas de modo a senti‑los bem. Fofa pegou‑lhe nas faces e retribuiu. Não, não eram nenhuns devassos.

Eram um vulgar casal de sexagenários.

(Fonte: Alfarroba editora)


O livro pode ser adquiro diretamente através de pedido ao autor:

email: toze.pereiradacosta@gmail.com

Preço de capa  (inclindo portes do correio):
12,78 €

O leitor interessado terá de indicar a morada para onde enviar a obra. O autor, por sua vez,  comunicará depois a conta bancária para efeitos do pagamento.



III. Sobre o Autor 
(foto à direita, cortesia da editora

(i) é natural da Amadora (1947);

(ii) cor art ref; terminou  a sua carreira activa como Director da Biblioteca do Exército, em Dezembro de 2011;

(iii) ex-alf art, na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-cap art e cmd das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74); 

(iv) é um histórico do nosso blogue, tem 175 referências;

(v)  é membro da Tabanca Grande  desde 13/12/2007; 

(vi) é autor da série "A minha guerra a petróleo"(, depois transformada em livro, editado pela Chiado Books, Lisboa, 2019, 192 pp.) tem um belíssima e valiosa colecão de arte e artesanato guineenses (fula, mandinda, bijagó...) e tem-na partilhado connosco (*): base para copos, bases para copos, pratos e terrina, cachimbos, "cirans", "cafalas", chapéu fula, cinto fula, garrafas forradas a couro, tabuinha com caracteres árabes...

(vii) é autor de vários livros sobre história e arquitetura militares, de um modo geral, indisponíveis no mercado:  A cidadela de Cascais (2003); O Palacete do Camarista Real (2011); Castro Marim: Dos Forets não reza a história (2012)... Os dois primeiros são edições do Estado Maior do Exército.



Guiné 61/74 - P23127: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte II: Bindoro, Natal de 1970: visita do gen Spínola

Foto nº 1 >  Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola e do capelão José Torres Neves: vieram de Bissá para Bindoro, de helicóptero.


 Foto nº 2A > Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (1)

Foto nº 2B > Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (2)


Foto nº 2C > Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (4)


 Foto nº 2D > Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (4)


 Foto nº 2 > Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita no gen Spínola (5)

Fotos (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)-

Organização e a seleção feitas pelo seu amigo e nosso camarada Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa) e  Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971) (médico, foi diretor do Hospital de Tomar, 6 anos, de 1990 a 1996, e diretor clínico cumulativamente 3 anos, de 1994 a 1996, vivendo então em Abrantes; hoje vive em Tomar).

O José Torres Neves é missionário da Consolara, ainda no ativo. Vai fazer 86 anos.
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quarta-feira, 30 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Ao longo de um processo de qualquer pesquisa somos confrontados, por vezes repentinamente, com títulos desconhecidos que aparentam interesse, alguns deles nem são constantes das bibliografias mais utilizadas. Foi o que aconteceu um livro do capitão Gerardo Pery, que encerra não passa de generalidades, para seu bem curioso o que se vendeu na feira da Exposição Universal de Sevilha proveniente da Guiné, folheou-se o livro de um médico inglês, George Tams, que ainda na primeira metade do século XIX veio apurar se ainda se praticava a escravatura e, coisa surpreendente, andou por Cabo Verde mas não viu utilidade em pôr os pés na Senegâmbia Portuguesa. E assim se chegou a um dos mais relevantes trabalhos de António Carreira sobre as companhias pombalinas de navegação, aqui se dá notícia de uma importante resenha oriunda da Universidade de São Paulo e espera-se continuar com o propósito de oferecer bibliografia pertinente ao leitor mais interessado.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Primeiro, a Geografia e Estatística Geral de Portugal e Colónias, obra de um Capitão do Exército, Gerardo A. Pery, edição da Imprensa Nacional, 1875. Registo um parágrafo que me parece a todos os títulos elucidativo:
“O senhorio português na região impropriamente denominada Guiné, isto é, na Senegâmbia, estendia-se, ainda nos fins do século XVI, desde o Cabo Verde até à Serra Leoa. Descoberto o rio Casamansa e a costa entre o Cabo Roxo, ao sul deste rio, e o Cabo de Sagres, ao norte da Serra Leoa, foram estas regiões a princípio avidamente exploradas. Mas a descoberta da denominada Costa do Ouro, a verdadeira Guiné, e, mais tarde, os descobrimentos da Índia e do Brasil, fizeram esquecer esta parte dos vastos domínios portugueses, deixando-se que outras nações ali se estabelecessem e se apoderassem dos principais ramos de comércio daquelas feracíssimas regiões”.
Daí se reduziu a extensão do domínio na Senegâmbia, referindo que a superfície aproximada é de 8400 quilómetros quadrados. O Capitão Pery refere os rios (Casamansa, São Domingos, Geba, Bolola, Quinala ou de Nalu, até ao rio Nuno). Comenta que as margens destes rios são muito férteis, orladas de densas florestas de mangues, pau-carvão e árvore da borracha; as principais produções eram arroz, milho e mancarra. A Guiné deste tempo estava dividida em três concelhos com cinco freguesias.

Assim que vi a referência da Guiné no Catálogo Português da Exposição Mundial de Sevilha, 1929, fui à procura de algo original. Para quem redigiu o texto, a população ao tempo seria de 400 mil habitantes, refere que existem duas estações e que as principais culturas seriam: mancarra e arroz, milho e café, cana-sacarina e tabaco, cola e mandioca, dizendo adiante que a colónia possuía muita fruta: bananeira, laranjeira, mangueira, mamoeiro, cajueiro e goiabeira. Aspeto muito curioso era o mostruário de cereais e legumes, frutas e sementes oleaginosas, madeira e cortiça (?) e apresentava um extenso elenco de produtos de artesanato. No descritor da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamou-me a atenção o seguinte título: Visita às Possessões Portuguesas da Costa Ocidental de África, por George Tams, doutor em Medicina, dois volumes, Edição Portuguesa do Porto, 1850. O Dr. Tams é bem explicito sobre o que o move nesta viagem: vem fiscalizar se ainda há mão-de-obra escrava nas colónias portuguesas. Visita as ilhas adjacentes, percorre Cabo Verde e segue diretamente para S. Tomé em Angola, nem uma palavra sobre a Guiné. Mas recomenda-se a sua leitura para quem investiga a análise da escravidão após a abolição decretada pela Grã-Bretanha, reputo de muito interesse o que ele escreve sobre Cabo Verde, Angola e São Tomé.

Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos, narrando que tudo começara quando os descobridores andavam a filhar gente ao acaso com o objetivo de obter informações sobre as terras e as gentes, mercadorias, tais como o ouro. A esse período seguiu-se a chamada Companhia de Lagos, dirigida por Lançarote, destinava-se à captura de escravos. A etapa seguinte foi o arrendamento da Coroa a Fernão Gomes (1469) por cinco anos. Está documentado que Fernão Gomes navegou costa abaixo, cumprindo o contrato. Noutro período, houve tratos e resgates efetivados diretamente por decisão régia através de arrendatários ou possuidores de licenças temporárias. É o tempo dos assientos, correspondia a um contrato ou a um conjunto de contratos pelos quais um particular se substituía ao rei.

No século XVII a política passou a ser diferente pois constituíram-se companhias de navegação e comércio protegidas pelo monopólio do escambo (comércio de escravos). A primeira companhia constituída foi a Companhia da Costa da Guiné, organizada pelos irmãos Lourenço Pestana Martins e Manuel da Costa Martins a quem foi concedido o exclusivo do comércio de Arguim por oito anos. Anos depois, surgiu a Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné (1666). Tinha obrigações assumidas, caso da reedificação da Praça de Cacheu, o fornecimento de armas e munições, o pagamento de vencimentos ao clero e a militares. Durante seis anos tiveram o exclusivo da navegação de Cabo Verde para a Guiné. Findo o prazo da concessão, os sócios deste empreendimento transferiram os seus direitos para a Companhia do Estanco do Maranhão e Pará (1682), o exclusivo de escravos abrangia também a costa de Angola. A contestação foi enorme e a Coroa viu-se obrigada a cancelar o contrato. A Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné veio a ser substituída pela Companhia de Cacheu e Cabo Verde. É nesta fase, no final do século XVII, que a Coroa pretende incentivar o desenvolvimento agropecuário do Pará e Maranhão, o recurso ao índio era manifestamente insuficiente. As doenças grassavam no Brasil, as crises de mão-de-obra eram consecutivas, foi nesse contexto, e após muitas vicissitudes, que se fundou (1755) a Companhia Geral do Grã Pará e Maranhão, que não teve uma vida pacífica nem gloriosa, não faltaram acusações de desmandos e mais tarde virá a rutura financeira.

Aqui se interrompe para juntar um comentário do historiador e antropólogo brasileiro Luiz Mott na Revista de História da Universidade de São Paulo (1972), acerca da importância do trabalho de António Carreira:
“Dentre os inúmeros Arquivos Históricos existentes em Lisboa, um deles é particularmente rico em material relativo ao comércio exterior do Brasil durante o século XVIII: o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças. Mais do que em qualquer outra instituição do Brasil ou de Portugal, é aí neste Arquivo que estão reunidos o maior número e os principais documentos referentes às célebres Companhias de Comércio do período Pombalino: dezenas de enormes livros manuscritos onde foram registrados todos os decretos e avisos régios relativos às Companhias, outro tanto de livros onde estão copiadas todas as cartas que a administração das Companhias mandava e recebia, diários de contabilidade, sem falar nos milhares de papéis avulsos dos muitos maços de correspondência. Material abundantíssimo e muito rico, apenas parcialmente explorado, que espera pesquisadores que o sistematize".

António Carreira, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, professor do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, do Instituto de Alta Cultura (Lisboa), pesquisador arguto e sério, com uma paciência verdadeiramente beneditina, frequentou assiduamente e por um longo período os manuscritos deste Arquivo: o resultado de suas pesquisas (o presente livro), é altamente satisfatório, e digno dos maiores elogios. Além da referida instituição, o Autor fez pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), e no Arquivo Público da Baía.

Profundo conhecedor da história das tecelagens de Cabo Verde e da Guiné, as implicações resultantes da utilização destes panos de algodão no tráfico de escravos, (Cf. o livro de sua autoria, A Panaria Cabo-Verdiana-Guineense - Aspetos Históricos e socioeconómicos, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa), António Carreira oferece-nos com o presente livro um estudo bastante original a respeito das duas Companhias Pombalinas de Navegação, comércio e tráfico de escravos: a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba.

O 1.º Capítulo serve como introdução: o Autor apresenta informações gerais, ou generalidades, sobre as Companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos anteriores à época Pombalina. O 2.º Capítulo é dedicado à Companhia do Grão-Pará e Maranhão: a sua formação, a frota utilizada, os agentes, o seu comportamento, a concorrência estrangeira, o contrabando. Uma das partes mais interessantes é a análise estatística dos escravos transportados pelos navios desta Companhia, tomando como base os registos efetuados entre 1755 e 1788. Nesta parte são apresentados os seguintes elementos:
- Número de escravos embarcados e chegados vivos aos destinos
a). - Especificação por sexos e grau de desenvolvimento físico;
b). - Número de escravos segundo as regiões de procedência e de destino;
c). - Etnias levadas para o Brasil;
d). - Tratamento e mortalidade no trajeto;
e). - Marcas de propriedades nos escravos;
f). - Preços médios de custo na origem, por anos e regiões.

Completam tal capítulo a descrição de 2 temas: - algumas das mercadorias utilizadas nos "tratos e resgates dos escravos"; - géneros e manufaturas africanas compradas e exportadas.

O estudo da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba é feito no 3.º Capítulo. Aí o autor aborda os seguintes assuntos: a frota utilizada, alguns problemas do tráfico, proveniência dos escravos levados para Pernambuco, mortalidade dos escravos durante a viagem, preços médios de compra de escravos por anos e áreas.

Acompanham tais reflexões a transcrição de 27 documentos (entre alvarás, representações, cartas, pareceres, petições, etc.), relacionados com as Companhias e o tráfico de escravos. Muitos destes documentos são inéditos. O último deles, embora tendo sido anteriormente publicado, dada a raridade e dificuldade de ser encontrado, é com júbilo que o encontramos aí divulgado. Trata-se do Discurso Académico ao Programa, de autoria de Luís António de Oliveira Mendes, proferido em 12 de maio de 1793, somente publicado em 1812 nas Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, no tomo IV. Tal Memória teve como objetivo "determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas e crónicas, que mais frequentemente acometem os pretos recém tirados da África: examinando as causas da mortandade depois da sua chegada ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para tanto estrago: e finalmente indicar os métodos apropriados para evitá-lo, prevenindo-o e curando-o: tudo isto deduzido da experiência mais sisuda e fiel" (p. 495). Tal Discurso constitui documento muito rico de informações para a história da escravidão no Brasil. Embora o seu escopo tenha sido, conforme foi dito, primordialmente em termos de sugerir uma nova política sanitária a fim de se evitar a mortandade dos escravos transportados para a América Portuguesa, o certo é que o autor, improvisando-se em etnógrafo, descreveu com muita riqueza e detalhes, os costumes, ocupações e demais aspetos da cultura material dos africanos, "esta porção mais desgraçada da espécie humana" ... (p. 494).

Tal académico não contente em apresentar de maneira "mais sisuda e fiel" a situação destes escravos, transforma as suas linhas em discurso engagé, dizendo que "as diversas crueldades experimentadas pelos pretos escravos em todas as idades, fazem gelar o sangue nas veias do fiel e experimentado escritor", daí sugerir a criação de uma Lei Municipal (6 artigos), que inibisse a desumanidade dos Senhores em favor de uma existência menos desgraçada para os escravos, lei esta que levaria à extinção do tráfico, e à abolição final do trabalho servil:
... "Que na África por hora venha a menor porção dela, que puder vir (escravos), e que para o futuro dilatando-se pela observação o mesmo sistema, se levantem as mãos aos céus, louvando a omnipotência de Deus, que por um destino feliz fez desterrar, e desaparecer par sempre a escravidão dos pretos a todos odiosa." (p. 55).

Lastimamos informar que tal obra, edição do. Autor, dado o pequeno número de exemplares publicados, é dificilmente encontrada nas bibliotecas e livrarias do Brasil.
Todos os exemplares foram enviados de Lisboa ao Rio de Janeiro, onde foram rapidamente distribuídos. Há, entretanto, uma outra possibilidade para quantos não tenham tido a felicidade de obter um exemplar deste importante trabalho: tal estudo foi igualmente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nos 89-90 e 91-92 de 1968, n.ºs 93-94 de 1969. Em tal publicação, de acesso relativamente fácil, poderá o leitor comprovar o grande valor e interesse desta pesquisa, e como eu, agradecer a António Carreira a trabalheira que nos poupou, sistematizando tão bem esta importante parte dos manuscritos do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças de Lisboa.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23102: Historiografia da presença portuguesa em África (309): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (13) (Mário Beja Santos)