Capa do livro de Avelino de Sousa (1880-1946), "Bairro Alto: romance de costumes populares". Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco, Lisboa, 1944, 290 pp.
1. Já não é do nosso tempo de meninos e moços...Mas se fosse, não nos deixavam lá ir, sozinhos... Nem já é do tempo dos nossos pais, nascidos por volta dos anos 20... Estamos a falar de 1896/97/98, e de um dos guetos de Lisboa... o mal afamado Bairro Alto.
Irreconhecível hoje, ou talvez não: as suas ruas, o seu casario, são os mesmos... Ainda existem casas com aventais de pau (meias-portas, nos pisos térreos), e persianas de tabuinhas nos andares de cima. Mas já ninguém sabe hoje o significado da expressão, "estar de avental de pau" (estar debruçada, a mulher, sobre as meias-portas, oferecer-se, prostituir-se).
A toponímia pode ter mudado num caso ou noutro. As tascas dos galegos desapareceram. Tal como os candeeiros a gás, de iluminação pública. E a redação dos jornais e as tipografias, que começaram a concentrar-se nesta zona histórica, logo desde meados do séc. XIX. Já não há cheiro a peixe frito nem se servem entaladas, candas, iscas com elas, etc., nem se bebe um meio-curto (copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar)... Ou uns tintos.... cortados (vinho com soda).
A fauna humana também mudou... Todos/as tinham alcunhas, "nomes de guerra", das rascoas aos faias, dos artistas aos amigos do alheio: Pinoia, Enjeitada, Pantera, Micas, Camélia, Pinta-Monos, Pé de Chumbo, Zé-Bode, Garrafão, Fininho, Janota... O fadista ou faia, com o seu traje característico e o seu calão, perdeu-se na voragem do tempo...As modas são outras,,, A fadista de faca na liga, também.
Grosso modo, há o antes e o depois de Amália Rodrigues, que ajudou a branquear o passado "lumpen", proletário, rasca, ordinário, popular, do fado...O mesmo é dizer: nobilitou o fado, arrancando-o da rua, da viela, do vicio, da taberna...
E já não há Adelaides Pinóias a cantar ou a gemer: "Quem nasceu no Bairro Alto / há de sofrer e chorar / ao ouvir uma guitarra / docemente a soluçar" (pág. 289). Nem o Bairro Alto é mais o dos "amores tão delicados": se o foi, foi no bom tempo do palácios e conventos do séc. XVI... Degradando-se, foi apropriado pelas "classes laboriosas" e pelos grupos socialmente marginalizados. O "acantonamento" das prostitutas em certas zonas da cidade, bairros populares, ribeirinhos degradados, imposto por postura municipal de 1833, por razões de "saúde pública" e de salvaguarda da "moral pública", de acordo com o discurso liberal então dominante, acabou por estigmatizar o Bairro Alto (e outros; Mouraria, Alfama, Madragoa, etc.) durante mais de um século... Mas foi também um dos "laboratórios sociais" do fado, "canção popular urbana de Lisboa"... hoje "património imaterial da humanidade", tal como o "cante" (que nasceu nos campos, na rua, na taberna...).
Perderam-se "bons e maus costumes"... Ganharam-se outros. Em 2013, o antigo bairro aristocrático quinhentista fez 500 anos. O antigo Carnaval de Lisboa. com as suas cegadas, também não existe mais, "muito bruto, por vezes malcriado, mas ao mesmo tempo divertido e com graça" (pág. 159). Em 1963, o Estado Novo hipocritamente fechou as "casas de passe" (nome eufemístico para os prostíbulos, em que as prostitutas tinham número de matrícula e inspecção médica periódica)... Já o tinha feito, de resto, no Ultramar (em 1954).
Vinte anos depois, em 1983, Portugal legalizou a prostituição, mas não resolveu o problema das suas suas causas e consequências.
Vale a pena, todavia, dar aos nossos leitores uma "ideia" e um "cheirinho" do que foi o Bairro Alto das últimas décadas do século dezanove, social e espacialmenteĺ segregado, mal afamado tantos anos (até mesmo para lá do 25 de Abril de 1974)...
Alguns de nós ainda o conhecemos nos anos 60/70, ao tempo da tropa e da guerra colonial ... Mesmo para aqueles que nunca lá foram, ficou no seu imaginário, tal como o Pilão, em Bissau...
A partir dos anos 80, o Bairro Alto "aperaltou-se", lavou a cara, passou a ser uma zona turística, sítio obrigatório da noite de Lisboa, e hoje cada vez mais "gentrificado"... Novas formas e lugares de prostituição apareceram, a começar pela prostituição de luxo (a que as elites do Estado Novo, de resto, já recorriam: veja-se o "escàndalo" do Balet Rose, em 1967).
Reproduzimos a seguir alguns excertos deste pitoresco "romance de costumes", do Avelino de Sousa, publicado em 1944, mas que começou por ser uma opereta, com o mesmo nome, e do mesmo autor. (Terá tido bastante sucesso no ano de 1927, já em plena Ditadura Militar...)
O Bairro Alto de antigamente
(...) Bairro Alto – bairro de gente honesta, bairro de artistas e de operários, bairro da Imprensa, de boémios e de fadistas e também – na época em que decorre a ação deste romance – bairro de rascoas que se estendiam como que em alas de ambos os lados da maioria das artérias, debruçadas sobre os aventais de pau [nome dado vulgarmente às meias portas], por todas as ruas, da Atalaia, dos Calafates, da Barroca, das Salgadeiras, do Norte, das Gáveas, Travessas da Cara, da Boa-Hora, da Água da Flor, dos Fiéis de Deus, das Mercês, da Espera, do Poço da Cidade. (…) (pág. 58).
(...) A velha casa das iscas do Bairro Alto na rua da Atalaia, à esquina da Travessa da Água da Flor, era a mais antiga de Lisboa, depois da que ainda existia na rua do Arsenal, à esquina da Travessa do Cotovelo. Os seus proprietários, dois irmãos galegos, Manuel e José, usavam matacões [suiças],(...) (pág. 76).
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(…) Havia no Bairro Alto um fadista − ajudante de cortador no talho do Augusto, na rua da Rosa, esquina dos Inglesinhos − rapaz alto, desempenado, aloirado, de pequeno bigode e nariz saliente, vestindo rigorosamente à fadista: jaquetão e colete de astracã preta, camisa de cordões de seda em substituição da gravata, calça de boca de sino, até ao bico do sapato, em fantasia às riscas, num tom acastanhado, algibeiras ao alto, larga pestana a guarnecer a perna, cinto de seda vermelha, chapéu de aba de tela. Usava uma grande melena, em caracol como que colada à testa, bamboleava muito o corpo, quando andava, e fumava charutos cortados de dez cada um.
Bons tempos!
Chamava-se Augusto César de Carvalho, mas era conhecido pelo Augusto Bombinhas. (…) (pp. 116/117)
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(...) − Ora, graças!... A velha, foi amiga!... Doze mal reis!...Ena pai!... 24 c’roas!... É melhor do que nada e eu estava sem vintém! (…)
E metendo o dinheiro no bolso do colete, abandonou o saquito num canto, desceu a escada, saiu pela rua Formosa, meteu-se à calçada do Combro, entrou na Adega do Estucador ao lado do quartel dos Paulistas, e, ao mesmo tempo que tirava do prato, que estava em cima do balcão, um ovo cozido pintado de encarnado à força de anilina,molhando-o no sal grosso, depois de rebolar a casca sobre o balcão para a partir, pediu:
− Dê cá três celitros, ó patrão!... – e deu uma dentada no ovo.
Mas, nisto, uma voz, por detrás dele, dizia-lhe ao ouvido:
− Não pagas nada, ó Cambalhotas ?...
Era o Pé
de Chumbo – gatuno como ele.
− Estás teso ?...
− Palavra de honra que estou! Não tenho chapeca, e o raio da Micas, hoje, ainda não se estreou!
− Andas com azar!... Olha, come um ovo cozido, que estão bons!...Vá anda, e bebe um copo! O cofre, está aberto! Queres duas c’roas emprestadas?...
− Estás armado ?...
− E bem armado! Tive um belo gancho!,
camarada.
− Não percebo!
− Contos largos! Toma lá as duas c’roas,
não se fala mais nisso!
− Viste o Garrafão ?...
− Hoje, não. Ontem à noite,estive com ele no João da Arruda na rua da Atalaia. Estava danado com a dor!
− Está no pinho?... [não ter
amante]
− Pois, tá!... A Pantera
correu com ele, e passou-se para o Zi-Zi!
− E o gajo não lhe deu um flàquibaque na
tabuleta [ bofetada na cara] ?
− Não, porque tem medo do Zi-Zi. Tu sabes que o Garrafão não é mau rapaz, mas é fracalhote. Aquele corpo, todo é balofo!
− Ora, meu amigo, tu também quando a pregas é à carunfa [à traição] ! – disse o Cambalhotas.
− É como calha! Também não és tu quem dá os bons dias [ser o mais valente, ou o mais cotado em qualquer manifestação da vida].
O Cambalhotas engoliu em seco,
e disse, fugindo à discussão:
− Também o Garrafão não perdeu
nada! A gaja era um estojo horrível!
−Tá bem, ela é atanado, é feia que nem um pente de pau do ar, mas governa-se bem a vender os trapos às outras! Olha que o Garrafão talvez não arranje outra assim!
− Não sei… Ele andava a fazer-se [a atirar-se, a fazer o cerco] todo com a Beatriz Gorda, e também com a Augusta do Campos! Mas esta não deixa o João da Isabel [Também cantava o fado e era irmão do Zé-Bode e do Júlio Martelo].
− Pelo lado do interesse, nenhuma
delas vale a Pantera! Agora como mulheres…
Enquanto estes dois patifes conversavam, comendo ovos cozidos e bebendo a sua pinga, na Adega do Estucador, outras cenas de roubo se desenrolavam em todas as casas de penhores do Bairro Alto (…) (pp. 129-131).
***
(...) Pendurados junto às ombreiras das portas de um lado e outro da Travessa do Poço da Cidade, no renque de luz indecisa, os candeeiros de petróleo difundiam uma claridade bruxuleante, mal eliminando as caras pintadas das infelizes rascoas, encostadas às tradicionais meias portas. Nos primeiros andares, de tabuinhas, a mesma luz soturna lucilava, mal se distinguindo da rua.
A cada esquina , um candeeiro de iluminação pública, espalhava aquela luz amarelada e mortiça do gás da Companhia. Lá em cima, na esquina da rua da Rosa, um polícia, de palestra com o guarda noturno, chupava um magro cigarro.
No Bairro Alto, pelo menos na época que estamos descrevendo. a maioria das raparigas da vida, como era de uso chamar-lhes, eram comedidas de linguagem e de atitudes, raro sofrendo uma admoestação policial, e até se dava o caso interessante de cumprimentarem e serem cumprimentadas, cortesmente, por pessoas honestas da vizinhança. (…) Acarinhavam e beijavam a petizada da vizinhança, tornando-se assim simpáticas aos pais e às mães das crianças.
E não se pegava nada, como diz o povo judiciosamente, ou – quem sabe ? − talvez houvesse menos maldade naquele tempo! (...) (pp. 137/138)
***
(…) A Enjeitada afastou um pouco a cortina de ramagem, sentou-se no canapé, de guitarra em punho, e a Adelaide, sem sair da porta, pegou no papel dos versos.
− Dá-me entrada, sim?...
A Enjeitada começou a tanger a guitarra, tirando uns acordes à maneira de introdução.
− Entra agora!
E a Adelaide começou:
Este livro é a grilhetaÉ o nó que à perdição
A Pinoia interrompeu-se:
− Vou bem ?
− Muito bem ! Segue, anda!
A Adelaide prosseguiu:
É ferro em brasa,Um passaporte p’ra viver no lodaçal:
− Que tal, ó Enjeitada ?
− Muito bem, Adelaide! E os versos ? Cheios
de verdade!... (pp. 184/185) (**)
***
(...) E a Adelaide senta-se no canapé. O Pinta-Monos toma lugar a seu lado e observa:
− Ah!, Adelaide se tivesses sido a minha, já não estavas aqui!
Ela solta uma gargalhada, e contrapõe;
− Tu estás doido, rapaz ?! Deixar esta vida, eu ?! Aqui, é que eu sou gente! Fora disto, seria uma mulher corriqueira, uma senhora honesta, como outra qualquer!
− Mas...
− Já te disse: aqui, sou eu Rainha! (...) (pág. 198) (**)
(Seleção / revisão e fixação de texto / adaptação: LG. As notas dentro dos parênteses retos são notas de rodapé, da responsabilidade do autor, Avelino de Sousa)____________
Notas do editor:
(*) Último poste da série de 5 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24824: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (18): a taberna em meio rural (António Eduardo Ferreira, 1950-2023, Moleanos, Alcobaça)
Alcouce - Bordel, prostíbulo (etimologia duvidosa)
Alcoveta -Mulher intermediária no comércio do sexo (do árabe, al-qawwâd, intermediário.)
Belfe - Calote
Meio-curto - Copo mal cheio, com café, vinho, canela e açucar.