(...) Depois desta operação, comecei a pensar se não era melhor propor ao Mendonça que me mandasse para um destacamento, um qualquer, em substituição do Castro ou do Aprígio.
Tinha chegado à Guiné no fim de Abril, estava a meio de Julho, e já tinha gramado oito operações. Não era propriamente cansaço, descansara sempre entre elas. O que estava era farto, era isso. Sempre a ver tabancas destruídas ou a ser destruídas, a ver matar e a saber que matavam. Até eu tinha matado também. Outra como a Jigajoga, então, nem pensar. Não queria voltar a isso.
– Estou farto disto. Vou pedir ao Mendonça para me mandar para um destacamento – abri-me com o Zé Pedro.
– Estás parvo, pá.
– Parvo, porquê?
– Os gajos estão lá isolados, cercados de arame farpado. Têm de amochar sem poder sair. Vá lá que o Aprígio tem alguma sorte porque tem uma tabanca ao pé e pode ver algumas bajudas.
– Quero lá saber. O isolamento não me perturba nada. Estava mais sossegado, podia ler uns livrinhos e escrever. Não me importava nada. Aliás, é o que mais desejo agora.
- Ias estar sossegado? Não penses nisso. Depois destas movimentações todas em que estão a ser apertados não há-de tardar muito que os comecem a atacar.
– Isso também não me importa. Prefiro ser atacado estando dentro de um abrigo e com arame farpado entre mim e eles. É melhor do que levar com morteiradas na cabeça a céu aberto e sem saber, a maior parte das vezes, se os gajos estão ou não já em cima de mim.
– Não sei se é melhor: Poder sair quando se quiser, andar por aqui à volta, ir até ao batalhão e ao Agrupamento, e mesmo andar no meio do mato, dá um sentimento de liberdade que não se tem quando amarrado sempre num só local.
Nesse mês de Julho o Mendonça ainda me mandou para mais três operações.
A primeira foi lixada, só porque o meu grupo de combate é que teve de fazer toda a picagem do itinerário em direcção ao destacamento do Castro. Os milícias tinham sido avisados, na véspera, para fazerem a picagem duas horas antes da coluna móvel iniciar a marcha. Mas a tabanca deles fora atacada nessa noite, sendo quase totalmente destruída, e eles não picaram. Foram várias horas a passo de caracol sob grandes chuvadas, com as ATM e GMC atrás em para e arranca. O Mendonça ainda tentara via PRC10 dizer ao Castro para ele fazer uma picagem a partir do destacamento dele até se encontrarem. Mas as comunicações não funcionaram. Foi estafante.
– É uma merda, mas não temos condições – acabou por dizer-me com ar agastado, depois de chegarem. – Era para irmos pelo mesmo percurso, aquele em que rebentou a armadilha, mas desta vez você ia mesmo até à base deles. Foram os gajos, de certeza, que atacaram a tabanca. Mas levaria várias horas e teria de regressar à noite
De arma a tiracolo, soergui os braços, cruzei os dedos das mãos e disse interiormente "Ótimo, haja Deus"
– O meu capitão sabe, claro, das dificuldades da primeira operação do capitão Lindolfo, não é? E não era só um grupo de combate, o meu, era uma companhia reforçada, portanto. A segunda, com mais contingente, o dobro, e com manobra bem planeada, já teve sucesso, mesmo assim com vários feridos. Por isso, meu capitão, não entendo como é que o Agrupamento insiste assim nisto com um grupo tão pequeno. Ainda por cima sem qualquer tipo de apoio. De helicóptero, por exemplo. Estou-me a lembrar dos feridos desta última vez.
– Ó Lopes, não confunda as coisas. O papel das companhias como a do Lindolfo e do Guilhermino é intervir, por isso lhes chamam de intervenção, isto é, realizar grandes operações em áreas onde as companhias que lá estão não podem fazer, para isso têm os apoios necessários. E essas companhias não o podem fazer porque têm que estar repartidas para a ocupação dessas áreas, como é o nosso caso. Temos uma área que não é pequena, são cerca de mil e seiscentos quilómetros quadrados.
Fiquei espantado com a área da quadrícula, nunca tinha pensado nisso. Veio-me logo à cabeça que aquilo só podia ser de e para gajos com paranóia. Ainda por cima naquela mata. Estava para manifestar o meu espanto mas o Castro, que estava ao pé, antecipou-se. Aproveitara o Mendonça estar com a garrafa de cerveja na boca, desta vez não trouxera whisky.
– Ó meu capitão, ocupar – abanou cabeça ceticamente – quer-se dizer... Eu ocupo este lugarzito aqui, o que está dentro do arame farpado, a quarenta quilómetros da sede da companhia, o Aprígio ocupa outro lugarzito da mesma maneira e também a quarenta quilómetros. Vocês, quando vêm aqui ou vão ao Aprígio vêm sempre com muitas cautelas e interrogações, pois sabem que podem apanhar com minas e emboscadas. Quer dizer que daqui e do sítio do Aprígio até à sede não se ocupa nada. Que raio de ocupação é esta, meu capitão?
Eu não estava a conhecer o Castro todo prafrentex, todo decidido a cumprir sem dúvidas a sua missão de guerra. Esta não parecia dele. Apesar do isolamento e daquela floresta toda à volta parecia estar a ver melhor. Ou era capaz de ser isso mesmo que o obrigava a ter que ver mais longe, para além da cortina de ideias feitas que lhe ensombrava a cabeça. Mas o Mendonça pareceu não gostar.
– Não esteja com essas merdas porque você não percebe nada disto – e remexeu na pasta onde levava o mapa.
– Olha mais outro ignorante, afinal não sou só eu – pensei e ri-me.
O Castro olhou-me a pensar que estava a rir-me dele. Abanei a mão direita em sinal de não enquanto o Mendonça tinha os olhos na pasta.
– Até lhe vou ler isto para você saber o que é ocupação.
O Mendonça tinha já um papel na mão que, pela forma do que tinha escrito, parecia uma mensagem.
– Assegurar a ocupação territorial do Sector. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.
– Está a perceber? – continuou depois de ler. –É assim que fazemos a ocupação, é esta a nossa missão. E não só na zona da sede da companhia mas também aqui onde você está e onde está o Aprígio. Os locais onde estão servem-nos precisamente para apoio na execução dessa missão nas zonas onde estão. Foi, por exemplo, o que eu e o Lopes fizemos outro dia e devíamos fazer hoje.
O Castro ficara embatucado e não disse nada. Eu já tinha bebido três cervejas e estava naquele estado em que me dava vontade de falar. O que o capitão lera era a conversa estereotipada, o ram-ram que vinha em todas as ordens de operação que já lera. Não lhe ia dizer que eram tretas. Era o que achava mas não lhe ia dizer assim senão ele chamava-lhe também de ignorante e continuava com aquele tipo de conversa. Mas tinha que o entalar, tinha de lhe fazer ver que não era parvo.
– Pois é isso, meu capitão, acho que é isso. É a ideia que nos transmitiam lá na metrópole, o Salazar e o Governo, as tais acções de policiamento em que andávamos envolvidos. Apanhar os gajos que pensamos que são turras, dar-lhes umas tareias se for preciso para eles arrepiarem caminho, e até limpar o sebo aos mais renitentes. Também pegar fogo às casas deles, destruir as suas culturas, os tais meios de subsistência. Tudo isso para que os gajos amochem e não ajudem a subversão. Isso acho que podemos fazer. O problema é quando eles estão armados, e até acho que estão bem armados, já pude constatar isso.
O Mendonça estava calado e de olhar draconiano. O Castro estava estupefacto e pensei que devia ser pela crueza da minha descrição. Mas decidi continuar a apertar com o capitão.
– Se calhar é por isso que nunca ouvi falar em acções de policiamento lá em Mafra, só diziam que nos preparavam para a guerra. E, olhe meu capitão, até acho que foi bom porque eu pelo menos já andei metido nela e, naquela vez que sabe, quase me ia lixando. E outra coisa, meu capitão: andar por aí à cata deles, para baixo e para cima, sem conseguir nada porque eles só se mostram quando querem e vêem que nos podem lixar, o que é que adianta? Ou mesmo quando, outro dia, fomos lá acima queimar umas tabancas e destruir instalações deles. Nunca mais lá vamos voltar, se calhar, os gajos vão reconstruir tudo e continuar. Não me parece que é assim que estejamos a ocupar território, nem a restabelecer a autoridade e a ordem, como diz essa mensagem do Agrupamento.
Os olhos do Mendonça chispavam brasa e estava vermelho. Agarrava a garrafa com força parecendo querer parti-la.
– Isso é conversa dos comunistas! Acabou! – disse de forma imperativa.
– Comunistas?! Sei lá o que é isso de comunistas, meu capitão. Estávamos aqui a conversar e eu só estava a dizer o que penso.
Sabia bem de que eram acusados os comunistas, mas estava apenas a dizer o que me parecia que era. O Capitão levantou-se de modo abrupto, quase fazendo cair a garrafa ainda meia de cerveja, e apontou-me o indicador da mão direita.
– Daqui para a frente ponha-se a pau comigo porque eu vou estar atento a esse tipo de conversas.
Virou-me as costas e foi para onde estava o meu grupo de combate. O Castro ficara mudo, parecia aturdido. Ouvi o Mendonça dar ordem para subirem para as viaturas e levantei-me.
– Aguenta-te – disse em tom de despedida ao Castro– passa bem que eu tenho de ir andando. (...)
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
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