quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25936: Humor de caserna (74): " O "Biró-lista", atirador de... morteiro (Alberto, Branquinho, "Cambança final", 2013, pp. 105-107)




Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos.  Lisboa,Vírgula,  2013, 224 pp.  

Sinopse:

«Cambança Final» foi, para muitos que fizeram a guerra na Guiné, a passagem desta margem de vida para a outra: essa que é definitiva.

«Cambança Final» foi, para a maioria, o regresso, dois anos depois, ao outro lado de onde tinham partido. Regressavam endurecidos, feitos homens em movimento sofrido e acelerado. (Entrementes, muitos iam regressando, mutilados no corpo ou na alma.)

Este livro é composto de pequenas histórias que abordam não só aspectos dramáticos da guerra, mas também situações pícaras ou bizarras e encontros/desencontros de culturas que foram obrigadas a conviver no mesmo espaço geográfico em tempo de guerra. 

(Fonte: Sítio do Livro)




Alberto Branquinho (n. 1944, Vila Foz Coa),
advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970,
ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913,
Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69),
tem 140 referências no nosso blogue:
é autor das notáveis séries "Contraponto"
e "Não venho falar de mim,,, nem do meu umbigo".



1. Reli, recordei, e voltei  a achar um piadão a mais este microconto do Branquinho: é uma  das joia de humor de caserna do seu livro "Cambança final", de que eu selecionei uns tantos em mais de 6 dezenas.  

Merece ser destacado, nesta série, até por que me fez lembrar a figura popular da minha terra e da minha infância, que era um cauteleiro,que vinha de um concelho vizinho (talvez Bombarral) e a quem toda a gente  chamava... o "biró-lista" (à moda do Porto!): "Oh, biró-lista, anda cá, p'ra ver se foi desta que eu largo a porca miséria do ofício", dizia-lhe o meu velhote, que todas as semanas comprava uma cautela... ("Só calha a quem joga!", justificava-se ele; claro que nunca teve a "sorte grande" em vida)...

Não sei se o "biró-lista" do meu tempo chegou a fazer algum "milionário excêntrico". Na maior parte das vezes, calhava apenas a terminação aos mais afortunados. Mas este "biró-lista" da tropa do Branquinho é um humaníssimo retrato do nossos "soldados básicos", alguns de facto sofrendo de "deficiência intelectual... Mas, "em tempo de guerra, não se limpa(va)m armas" e o exército tinha que aproveitar "todo o peixe que vinha à rede".

É um microconto escrito com muita ternura e compaixão humana, sempre com  aquele humor fino, não desbragado, do Branquinho que, além de um duro e bravo combatente da CART 1689, não alienou a sua condição de "primus inter pares". Além do mais, é uma prosa castiça: quem é que se iria lembrar de expressões como esta,  uma "taleiga cheia de notas, amarrada à cintura" ?! ("Taleiga", do árabe árabe ta'līqa, "saco").



Humor de caserna > Biró-lista, atirador de... morteiro 

por Alberto Branquinho


No Porto, chamavam “Ver-a-lista” aos homens e rapazes, habitualmente aleijados ou diminuídos mentais, que andavam pelas ruas vendendo lotaria. Por exemplo, alguém que estivesse sentado numa esplanada, ao avistar um vendedor de jogo, chamava:

− Ó Ver-a-lista!

O homem aproximava-se, exibindo a lista da última extracção e, também, o jogo que tinha para vender.

Apresentou-se na Companhia, ainda em formação e antes do embarque, um rapaz cuja cara parecia uma caricatura. Olhos esbugalhados e assustados, nariz estreito, anguloso e projectado para a frente, quase ausência de malares, queixo pontiagudo e com a bochecha direita perfurada por uma fístula. Verificou-se mais tarde que era provocada pela infecção de um dente, que foi tratada. Parecia ter sido arrancado de um quadro de Hieronymus Bosch.

Pois este rapaz, depois da observação sagaz e agressiva, que era habitual no meio militar, passou a ser chamado de “Ver-a-lista”.

Assustado, olhando em volta, chegou-se à porta do espaço onde funcionava a secretaria, parou e grunhiu qualquer coisa. O sargento, que não era propriamente uma pessoa suave e de trato fácil, berrou-lhe:

 Que é que queres, ó rapaz?

Ele estendeu a mão, mostrando os papéis de apresentação. O sargento agarrou neles, olhou-o
 atentamente e fez-lhe algumas perguntas. Pela postura e pelo aspeto, constatou que devia ter um atraso mental.

− Qual é a tua especialidade?

− Atirador… de… de… morteiro.

− Espera aí.

O sargento bateu na porta ao lado.

 Meu capitão, dá licença?

Entrou. Pouco depois chamou o rapaz, que entrou no gabinete do capitão.

− Então não cumprimentas o nosso capitão?

Ele tropeçou bota contra bota, desequilibrou-se. O sargento amparou-o. O rapaz estendeu a mão para cumprimentar o capitão e o sargento berrou-lhe:

− Cumprimento militar!

− Deixe lá, nosso sargento. Então, ouve lá,  rapaz. Disseste ao nosso sargento que és atirador de morteiro. É verdade?

O rapaz olhou o sargento com olhos assustados, olhou o capitão, olhou para as botas e, passado algum tempo, voltou a olhar o capitão e respondeu:

−  Então como é que fazes fogo com o morteiro?

Ele levantou ambas as mãos à altura do ombro direito, como quem segura uma arma e respondeu:

 Tá… ta…rá…tá…tá. PUM!!!

 Está bem. Podes ir embora.

Saiu.

− Nosso sargento, vamos aproveitar o rapaz nos trabalhos de limpezas e outros afins.

(Nesses tempos aconteciam situações semelhantes. Havia que aproveitar todos os homens e, em caso de menos cuidado: “Apurado para todo o serviço militar”).

Depois de passar a curiosidade e, até, espanto pela presença daquele militar bizarro (até a marchar era diferente, pois, para além de não conseguir acertar o passo, marchava como se estivesse a pisar uvas), passou a ser protegido, pelo menos por alguns.

Ao receber o pagamento do pré, olhava espantado o sargento que lhe entregava o dinheiro – então, tinha cama, mesa e… (roupa lavada não, porque era ele que a “lavava”) e ainda lhe pagavam?

− Então, Ver-a-lista, disseram-me que fazes fogo de rajada com o morteiro?

− Xim, xenhora!

Na Guiné, com o decorrer do tempo e com o crescer da agressividade entre os homens, criou um instinto de defesa, principalmente com os que não eram da Companhia.

 Ó Ver-a-lista tu sabes escrever?

 Xei calquer coijita.

− Tu não recebes correio. Não escreves à família?

−  Nã, xenhora.

− Queres que eu escreva ou que te ajude?

− Eles xabem munto bem ond’é q’eu estou.

Durante o primeiro ataque ao quartel, alguém lhe berrou:

 
− Corre pr’ó abrigo, Ver-a-lista!!!

− O quê?!

− Os gajos estão a atacar!

− E ós’póis? O qu’é qu’eu fiz de mal p’ra ter que fugir?

Teve que ser empurrado para dentro.

No final da comissão voltou para a aldeia, em Trás-os-Montes. Também ele estava ainda mais duro, como todos os outros, mas não estava marcado pela guerra. Terá, alguma vez, entendido a realidade dentro da qual viveu durante cerca de dois anos? Estava mais esperto e mais risonho, não 
só por voltar a casa, mas também devido à taleiga cheia de notas, amarrada à cintura.

Fonte: Excertos de Alberto Branquinho  - "Fogo de rajada com... morteiro". In: Cambança final: Guiné, guerra colonial:  contos.  Lisboa,Vírgula,  2013, pp- 105-107 pp.  


(Título,  revisão / fixação de texto, itálicos: LG)  (Com a devida vénia ao autor e à editora...)

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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25924: Humor de caserna (73). "Trombas do Lopes" (Jorge Cabral, 1944-2021)

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25935: Historiografia da presença portuguesa em África (441): A Guiné Portuguesa em 1878 - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1880 e 1881 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Peço particular atenção à súmula apresentada seguramente pelas autoridades oficiais sobre a Guiné Portuguesa, em 1878, é explícita quanto à exiguidade da presença portuguesa. Entramos agora em novo Boletim Oficial, já existe a província da Guiné.Como se fez referência aquando da leitura do Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné, um Boletim Official é uma das muitas ferramentas de que se mune o investigador, carece de cruzamentos com outras fontes. No caso vertente, sugiro sem nenhuma hesitação, o levantamento apreciável que Armando Tavares da Silva fez no seu livro monumental "A Presença Portuguesa na Guiné, História política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, logo os dois primeiros capítulos, referentes aos estabelecimentos portugueses no Distrito da Guiné em 1878 e à atividade do primeiro governador da Guiné, Agostinho Coelho, entre 1879 e 1881, revelam-se de grande importância.

Um abraço do
Mário


A Guiné Portuguesa em 1878
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1880 e 1881 (1)


Mário Beja Santos

Preparava-me para começar a leitura do Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa quando dei pela existência de uma brochura onde fazia o ponto da situação das colónias portuguesas numa edição em língua francesa, Imprensa Nacional, 1878. É um texto de síntese, mas que permite ao leitor confirmar o que era a exiguidade da presença portuguesa naquela porção da Senegâmbia. Diz o autor que até perto dos finais do século XVI Portugal possuía ainda todo o território que se estendia do Cabo Verde (ponto continental) até à Serra Leoa, numa extensão de costa de 450 milhas. Durante o domínio filipino Portugal perdera todo o território ocupado a norte do Cabo de Sta. Maria e a sul do Cabo Verga. A Guiné Portuguesa compunha-se de três municipalidades: Cacheu, Bissau e Bolama, esta última compreendendo a Ilha das Galinhas. Todo o Distrito da Guiné é muito insalubre, sobretudo de junho a dezembro; as chuvas começas perto do fim de maio e duram até ao fim de setembro. O ardor do sol e a humidade das noites são bastante danosas para a saúde, sobretudo de quem acaba de desembarcar. Uma doença chamada no país por carneirada pode provocar muitas moléstias, os todos os que resistem a estas situações penosas passaram a gozar de uma excelente saúde. A Guiné Portuguesa contém 1386 fogos e 6154 indivíduos, da metrópole há 37 homens e 3 mulheres, provenientes de outras províncias ultramarinas 419 homens e 217 mulheres, mais 56 estrangeiros e 6 estrangeiras. O autor passa em revista as três municipalidades.

Cacheu compões de Casa Forte e compreende a população dos arredores do rio S. Domingos, do presídio de Bolor, Ziguinchor e Farim. Estas feitorias têm cerca de uma milha quadrada de extensão cada uma. A agricultura reduz-se sobretudo à produção de arroz. Cacheu fornece uma espécie de arroz chamado arroz de Gâmbia, que é muito apreciado na Europa e se pode comparar ao arroz da Carolina. Abundam a cera, o marfim, o óleo de palma ou de dendém; há igualmente algodão branco em abundância e incenso. Os portos de Cacheu, de Bolor e Ziguinchor estão bem abrigados.

Bissau compõe-se do Forte de S. José e dos presídios de Fá e de Geba no interior, no território dos Mandigas. A extensão de cada uma destas feitorias é semelhante ou aproximada às feitorias de Cacheu bem como os tipos de produção. O Forte de S. José está praticamente envolvido por seis povoações que são governadas por régulos, dependentes do rei de Intim. O porto de Bissau tem em frente o Ilhéu do Rei ou dos Feiticeiros; à semelhança de Farim e Ziguinchor, são os pontos que alimentam o comércio de Cacheu, Geba fornece a Bissau os principais artigos do seu comércio.

Bolama compreende a Ilha das Galinhas, o arquipélago dos Bijagós, na embocadura do Rio Grande. As produções daqui são geralmente as mesmas que as das outras municipalidades da Guiné. No entanto, Bolama produz mancarra de muito boa qualidade; a pesca é muito produtiva e abundam as tartarugas nas águas destas ilhas. A ilha de Bolama foi cedida a Portugal em 1607 pelo rei de Guinala. O autor depois explica a tentativa de apropriação por parte dos ingleses e verte o texto da sentença do presidente dos Estados Unidos Ulisses Grant, versão inglesa.

O autor informa que o Governador Geral de Cabo Verde visita Bolama em 30 de setembro de 1870 e tomou solenemente posse da ilha em 1 de outubro; Bolama está coberta de plantações, tem excelentes madeiras e o seu clima é bastante salubre, goza de um grande movimento comercial e a fertilidade do seu solo assegura-lhe um futuro de prosperidade. A Ilha das Galinhas, dada por Damião, rei de Canhabaque, ao coronel português Joaquim António de Matos que a ofereceu à coroa de Portugal em 1830; é uma ilha bastante fértil, produz excelentes madeiras, possui água em abundância, pescam-se tartarugas de que se recolhe o âmbar; o seu melhor porto não é acessível a não ser a pequenas embarcações.

É este o essencial do que se dizia da Guiné em 1878, a um ano da sua separação de Cabo Verde, passando de distrito a província.

Concluída a leitura do Boletim Official do Governo de Cabo Verde e da Guiné, incluindo os primeiros meses de 1880, começa-se agora a folhear o Boletim Oficial da Província da Guiné Portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Esclarece-se o leitor de que há lacunas, os primeiros números são inexistentes com reduzidos a folhas praticamente elegíveis, entra-se a sério no documento no Boletim N.º 12, com data de 25 de setembro. Há imensas parecenças com as matérias que se encontram no Boletim Oficial de Cabo Verde, informações sobre pessoal que vai em gozo de férias, quais os papéis que devem ser escritos em papel selado, nomeações, transferências, embarcações que vão em socorro de outras, com os respetivos agradecimentos e louvores, arrematações em hasta pública, movimento marítimo, mensagens de gratidão, etc.

No Boletim N.º 13, de 9 de outubro, aparece a constituição de uma comissão permanente de saúde pública, visa-se melhorar as condições de salubridade, “removendo ou modificando as causas mais conhecidas das doenças que se generalizam em épocas determinadas.” É decisão tomada pelo primeiro governador, Agostinho Coelho. Mas o ponto forte deste número do Boletim é dado pelo tratado de paz feito em Buba, em 27 de setembro último, entre Sambel Tombom e Sambá Mané, subchefe dos Fulas-Pretos:
“1.º - Passa a haver paz e concórdia entre os Fulas-Pretos existentes no Forreá e os Fulas-Vermelhos do território de Buba.
2.º - Os Fulas-Vermelhos comprometem-se, para esta paz ser inalterável, a entregar as espingardas e mais armamentos tomados em Sambafim.
3.º - Logo que sejam entregues as armas, os Fulas-Pretos sairão do território de Buba e conservar-se-ão no sítio que neste tratado é convencionado.
4.º - O chefe dos Fulas-Pretos e a sua gente serão passados em embarcações para o território de Bolola, ficando por esta forma proibidos de passarem pelo território de Buba.
5.º - O chefe do Forreá, Sambel Tombom, terá sempre em Buba um filho seu representante da sua autoridade com quem o Governo se entenderá sobre as questões do interior.”


Assina Gabriel Fortes e os dois chefes em litígio, a grande novidade, conforme o leitor pode ver na imagem é o texto do tratado vir em português e na língua árabe.

Estamos agora em 1881, temos o Boletim n.º 2 de 22 de janeiro que faz referência ao estado sanitário de Gorée e dos arredores, dizendo que o estado é bom e que em S. Luiz é excelente, a última morte por febre amarela tinha tido lugar na noite de 25 para 26 de dezembro. Quem assina é o cônsul de Portugal, Jean Guiraud, que também confirma que não se verificou nenhum caso nem na cidade nem no hospital nem nos campos e nem mesmo nos navios de comércio. É uma informação curiosa, como o leitor se recordará está em aberto o contencioso com a França sobre o Casamansa, só ficará resolvido pela Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886. É por isso que a apreciação do cônsul vem assinada pelo chefe de saúde em Bolama, Pereira Leite de Amorim, temos novas informações, paira sempre o espectro do regresso da febre amarela.

Mas este Boletim introduz uma novidade, a administração do concelho de Bolama publica o movimento dos presos, neste caso o referente ao mês de dezembro do ano anterior. Poderá ser ruma mera curiosidade, faz-se referência. Como o leitor poderá ver na imagem, há de tudo: embriaguez, desordens, pancadaria com ferimentos, roubos. A administração do concelho de Bolama irá repetir mensalmente o movimento dos presos.

No Boletim N.º 5, de 26 de fevereiro, a repartição de saúde informa que a Junta de Saúde recebeu tubos de linfa vacínica, e que se procede à sua inoculação todos os domingos, das 7h às 9h. No Boletim N.º 7, de 19 de março, o presídio de Geba imite o relatório referente ao mês de janeiro, nestes termos:
Sossego público – não foi alterado em todo o mês.
Estado sanitário – foi regular. O número de óbitos verificados em todo o presídio foi de quatro, sendo dois maiores de 60 ano e dois menores, um de quatro anos e outro de um, sendo a morte deste último produzida por desastre.
Agricultura – quase nula, limitando-se à cultura da cebola.
Indústria – tecidos de algodão e sabão para consumo do presídio, esteiras e cestos.
Instrução pública – tem funcionado a escola com regularidade, frequentada por 20 alunos.
Estado alimentício – bastante escasso, devido talvez à continuação das guerras.

(continua)


Bolama em 1912
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
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Nota do editor

Último post da série de 10 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25926: Historiografia da presença portuguesa em África (440): em 1934 já se temia e discutia a transferência da capital, de Bolama para Bissau...

Guiné 61/74 - P25934: Verão de 2024: Nós por cá todos bem (11): Na Tabanca de Candoz, que em setembro tem sempre mais encanto (Luís Graça)

 















Marco de Canavezes > União das Freguesias de  Paredes de Viadores e Manuncelos > Candoz > Quinta de Candoz > 10 e 11 de setembro de 2024 >  

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (Imagens HDR - High Dynamic Range, tiradas sem tripé)


1. Candoz, em setembro, no fim do verão tem outro encanto... A nossa Quinta de Candoz... As vindimas ainda estão atrasadas... E este ano haverá talvez uma quebra de 15% na colheita... Há menos uva...Mas a qualidade parece ser excelente, o que é ótimo, vamos fazer, no segundo ano, uma seleção do vinho verde branco DOC "Nita"...

Na melhor das hipóteses, ainda posso apanhar a primeira vindima daqui a duas semanas... Depois tenho que regressar ao Sul. Vamos esperando o sol, que aqui é mais forte do que  na minha costa atlântica, nos ajude ainda a amadurecer melhor os chachos de perdernã, azal, loureiro, avesso, alvarinho... (O grosso é pedernã e azal.)

Aqui ficam algumas imagens da Tabanca de Candoz, aonde gostamos todos anos de vir para carregar baterias, matar saudades, cultivar os afetos, falar com as árvores, com as videiras... Na altura das vindimas é obrigatório vir cá...E não vimos mais por que estamos a 400 km de Lisboa...
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Guiné 61/74 - P25933: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte X: Seria um homem violento ?... Mais um processo na Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Indígenas, em que desta vez os arguidos são os sócios da firma Brandão & Figueiredo...

 


Guiné > Administração da 12ª Circunscrição Civil > Região de Quínara > Auto de inquirição de testemunhas > Data: 23 de outubro de 1926 | Queixosos: Augusto Pinto e Antigo Primeiro | Arguida: a firma Brandão & Figueiredo


Fonte: Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares |Instituição: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau | Pasta: 10418.121 | Título: Administração da 12.ª Circunscrição Civil (Quinará), auto de inquirição de testemunhas | Assunto: Auto de inquirição de testemunhas, elaborado pela Administração da 12.ª Circunscrição Civil (Quinará), em processo de justiça indígena que tem como queixoso Augusto Pinto e Antigo Primeiro e por arguido a empresa Brandão e Figueiredo. Acusam os sócios da referida empresa de não pagarem o salário devido e de agressões. | Data: Sábado, 23 de Outubro de 1926 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas  

(Com a devida vénia...)

Citação: (1926), "Administração da 12.ª Circunscrição Civil (Quinara), auto de inquirição de testemunhas", Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10418.121 (2024-9-10)





Folha 3  > Auto de queixa (Resumo): a 6/10/1926, em Bolama, na Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Índigenas, e estando presente o Curador, Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, compareceram "os indígenas da tribo mancanha" (sic), Augusto Pinto e Antigo Primeiro, apresentando queixa da firma Brandão & Figueiredo. (O Jorge Frederico Vellez Caroço foi governador da Guiné, de 1921 a 1926) (**). 

 O primeiro queixoso, Augusto Pinto,tinha entrado há tempos ao serviço da referida firma, com um salário mensal de 115$00 e alimentação, apenas por um mês (por ter de se ausentar para a sua terra, afim de tratar de assuntos pessoais). Em Bolama, ficou apenas alguns dias, sendo depois mandado pelos patrões para prestar serviço na propriedade denominada Ossadu, onde ficou mais uns dias... Dirigiu-se ao sócio da firma, de nome Figueiredo, pedindo-lhe que lhe pagasse o salário correspondente...





Folha 4 > Auto de queixa > ...vinte e seis dias de serviço, correspondente a 74$60, depois de deduzida a importância de um adiantamento, no valor dee 25$00. O Figueiredo recusou-se a pagar a importância que era devida e, para mais, agrediu-o. O queixoso dirigiu-se então a Bolama e foi ter  com o outro sócio, de nome Brandão.  Foi agredido por este com um cacete, e também pelo Figueiredo, acabado de regressar da "ponta" (propriedade). Em face disso, o queixoso teve de fugir... 

O segundo queixoso, de nome Antigo Primeiro, conta uma história em tudo semelhante: tinha entrado ao serviço da mesma firma, com um salário mensal de 115$00 e alimentação. Ficou alguns dias em Bolama e depois foi mandado para a "ponta" cortar cibes. Não querendo ficar mais tempo, pediu ao patrão, o sócio Figueiredo,  o salário a que tinha direito...






Folha 5 > Auto de queixa > ...vinte e seis dias de serviço, correspondente a 74$60, depois de deduzida a importância de um adiantamento, no valor de 25$00.... Deu-se a mesma cena, tanto um sócio (o Figueiredo)  como o outro (o Brandão) não só se recusaram a pagar o salário do queixoso, como o agrediram. 

Em face do exposto, ambos os queixosos pediam ao Curador, "na qualidade de seu legítimo protetor" (sic), para lhes ser feita justiça. "... E  mais não disseram.  Sendo-lhes lidas as suas queixas,  "as acharam conformes, não assinam por não saberem, pondo contudo as impressões digitais"... 

Assinam o Curador, o intérprete e o escrivão, Manuel Silva Miranda. Curadoria Geral dos Serviçais e Colonos Indígenas, Bolama, 19/10/1926.






Folhas 10 e 11 >  Auto de inquirição de testemunhas > Fulacunda > 6/11/1926  > Perante o administrador Pedro José Duarte compareceu a testemunha Pedro Borges Fernandes, de 31 anos, solteiro, natural de Cabo Verde, agricultor, residente em Nassocolom (?), circunscrição de Fulacunda, "e prometeu pela sua honra dizer a verdade, e aos costumes disse nada" (sic). 

Sobre a matéria dos factos disse: o Figueiredo foi à povoação de Nassocolom, proceder ao corte de cibes, juntamente com os queixosos; estes ficaram em sua casa pelo espaço de um mês; não viu o referido Figueiredo maltratar os serviçais... E quanto aos salários, não sabia se lhos tinham sido pagos. E mais não disse. Juntamente com o administrador e o escrivão, assinou o auto (sinal de que sabia escrever).



Folha 12 > Auto de queixa > A 26/11/1926, o auto é dado como concluído. Foi ouvida apenas uma testemunha,  a outra não compareceu, por não poder andar, e também não foi ouvida no local de residência, por ausência do chefe de posto de Cubisseque .



Folha 13 (e última) > O processo é remetido, pelo escrivão, para os devidos efeitos, ao Curador Geral. Não sabemos o que este decidiu.


1. Mais um curioso processo de "justiça indígena", no âmbito da Curadoria Geral dos Serviços e Colonos Indígenas (isic), designação bem  republicana e colonialista para a rebatizada (logo com a Ditadura Militar e o Estado Novo), Direção de Serviços e Negócios Indígenas (sic).  

Desta vez os queixosos são dois "serviçais" (sic) e os arguidos são os sócios de uma firma comercial, a Brandão & Figueiredo... 

Não sabemos, em boa verdade, se este Brandão é o nosso já conhecido Manuel de Pinho Brandão (*), mas é muito provável que o seja ... 

Não encontrámos até agora referência ao irmão, Afonso Pinho Brandão, estabelecido em Catió, em data que não podemos precisar- (Segundo a sua filha, Gilda Pinho Brandão, terá sido assassinado por balantas em Catió, em 1962; terá tido sete filhos, todos de mães diferentes; a mãe da Gilda, fula, era de Chugué).

Com este apelido Brandão, só encontrámos referência, no fundo  INEP  (C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas), além do Manuel Brandão ou Manuel de Pinho Brandão, a mais quatro indivíduos: 
  • Dr. Francisco Brandão Pereira, médico, capitão, chefe interino da Repartição dos Serviços de Saúde e Higiene (Bissau, 1935; a sede  desta repartição fora transferida de Bolama para Bissau, em 1932):
  • Saúl Mário Brandão Rodrigues, subintendente (1931) e depois administrador (Bijagós, 1931)
  • João Brandão, indígena (1932)
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Nota do editor:

(**) Jorge Frederico Velez Caroço [Portalegre, 1870 - Lisboa?, 1966]

"Oficial do Exército. Participou no grupo que implantou a República em Portalegre em 5 de Outubro de 1910, tendo, de seguida, sido eleito deputado às Constituintes. Em 1914 foi nomeado governador civil de Portalegre. Durante a I Grande Guerra serviu como expedicionário em Angola e depois em Moçambique. Em 1919 foi eleito senador e, de 1921 a 1926, foi governador da Guiné. Passou à reforma em 1929, incompatibilizado com o novo regime ditactorial. Em 1931 encontrava-se exilado em Madrid") (Fonte: Centro de Documentação de Autores Portugueses, 08/2010)

Guiné 61/74 - P25932: Parabéns a você (2310): Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1970/72)

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Nota do editor

Último post da série de 5 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25911: Parabéns a você (2309): José Martins, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70)

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25931: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: Não sei explicar o que nos prende a esta gente...




Timor Leste > Liquicá > Manatti > Boebau > Escola São Francisco de Assiz (ESFA)


Foto:  © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Estamos a chegar ao fim... No dia 16 de junho de 2018 o Rui Chamusco empreenderá a viagem de regresso a Portugal... Desta vez, na sua segunda viagem a Timor, ele partiu em 25 de janeiro de 2018. Foram cinco meses de estadia. 

E foi seu companheiro de viagem o amigo luso-timorense Gaspar Sobral, que vive em Coimbra. Ambos são cofundadores e dirigentes da ASTIL (Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste), criada em 2015, com sede em Coimbra.

De Timor Leste o Rui mandou-nos na altura as crónicas dessa viagem (a segunda, de cinco já feitas, de 2016 a 2024).  Decidimos reproduzir uma seleção dessas crónicas, na medida em que elas nos ajudam  a conhecer melhor  a história recente e passada deste povo a que nos ligam laços linguísticos, culturais e afetivos. Laços que o própripo resume nestes termos: "Não sei explicar o que nos prende a esta gente"...

O Rui é membro da nossa Tabanca Grande desde 10 de maio último. Natural da Malcata, Sabugal, vive na Lourinhã onde durante cerca de 4 décadas foi professor de música no ensino secundário. Em Timor, o Rui tem-se dedicado de alma e coração aos projetos que a ASTIL tem lá desenvolvido, nas montanhas de Liquiçá, e nomeadamente a Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em Manati / Boebau, no município de Liquiçá.

Em Dili ele costuma ficar em Ailok Laran, bairro dos arredores, na casa do Eustáquio (alcunha do João Moniz) , irmão (mais novo) do Gaspar Sobral,

(Por coincidência, ontem, segunda feira, o Papa Francisco chegou a Timor Leste para uma visita histórica de 3 dias.)





O "malaio" (estrangeiro) Rui Chamusco
e o seu companheiro de vaigem, o luso-timorense
 Gaspar Sobral.

Foto: LG (2017)



II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL)


Parte XII -   Não sei explicar o que nos prende a esta gente.




(...) Dia 01.062018, sexta feira - Dia Mundial da Criança


Neste dia todos temos de ser criança. Porque é um dia especial, não há desculpa para nos alhearmos desta celebração. As redes sociais inundam-nos com publicações sobre o evento. Por todo o lado se ouvem os vivas e as palmas como sinal de festa. Pois que seja uma grande festa!

Sem esquecermos as crianças que, devido à guerra, aos maus tratos, às separações, à fome, à falta de escolas, às dificuldades económicas e tantas outras carências são
privadas dos festejos deste dia.

Cada um, à sua maneira, faça o que pode e deve fazer para que o mundo das crianças seja cada vez melhor. E, quem tiver oportunidade, ao menos neste dia pegue ao colo uma criança, para sentir bem junto a si o dom da vida a nascer e a crescer. 

Ou então como diz a canção francesa: “prend un enfant par la main; pour l’amèner vers demain; pour lui donner la confiance en ses pas; prend un enfant dans tes bras.” [Pega uma criança pela mão; para a levar para o amanhã; para lhe dar confianças nos seus passos; toma uma criança nos teus braços" (LG)].

Hoje tive esta sorte: O Zé (uma criança de um ano de idade,o filho mais novo do Anô) foi trazido para o meu colo onde esteve brincando durante mais ou menos meia hora.

Entre mimos e mais mimos, o Zé ganhou tal gosto e descontração que não resistiu a
deixar-me de presente uma boa mijatada. Com certeza que não o irei esquecer
facilmente.

Dia 02.06.2018. sábado - Por esta 
não esperava eu

Como há dias combinámos amanhã dia 4 de junho regressaremos às montanhas de
Liquiçá, mais propriamente a Boebau, onde espero dar um reforço na aprendizagem do português e da música. Então não é que a minha perna esquerda voltou a estar emperrada nos movimentos! Bem temos tudo feito para que as dores me deixem em paz: massagens, massagens e mais massagens... mas, não sei não. 

Vamos lá a ver se me aguento em cima da mota. Alguma apreensão, mas nada que me tire a boa disposição e a vontade de viajar. Só se for de todo impossível. Prometi que voltaria antes de ir para Portugal e tenho de cumprir custe o que custar. Como se diz, a esperança é a última coisa a morrer...

Dia 03.06.2018, domingo - Tenho que voltar a Boebau antes de partir...

Quando prometo e não cumpro sinto-me interiormente revoltado. Pelos vistos já não foi hoje, nem amanhã, e eu sei lá se conseguirei mesmo ir a Boebau. O raio do joelho está a incomodar-me em demasia. Costuma dizer-se que “Deus escreve direito por linhas tortas”. Será algum aviso? Mas se não forem oito dias, que seja ao menos dois ou três.

Tenho que ir a Boebau antes de partir... E se não for? Ficarei mesmo desconsolado..
Tenho que dizer aquela gente, aquelas crianças que em breve voltarei, que não as
abandonarei, que a escola de São Francisco tem que funcionar, para o bem delas e para o bem destas povoações. 

Que Deus me dê forças para vencer qualquer desânimo ou tentação de abandono. Quando a cabeça e o coração se entendem também o resto do corpo tem que colaborar. Por isso tenho fé que esta peça que agora faz gazeta depressa se recomponha. E “se o coração não engana, havemos de ir a Viana”.


 Observar e contemplar

Esta tarde, a falta da luz elétrica obrigou-nos a pôr de lado o computador e a sair para o exterior tentando ocupar o tempo. Sentados como habitualmente no hall de entrada, dou comigo a observar uma cena que dá que pensar. Sem que ninguém esperasse, começam a chegar apressados galináceos de todas as idades. Pelos vistos, era a hora da sua refeição. O Eustáquio levantou-se e foi procurar uns punhados de arroz que projetou no chão em frente. Verifiquei então que havia uma hierarquia no acesso ao alimento, e ai de quem ousasse contra. 

Primeiro os maiores, os mais fortes, que penicavam os grãos com sofreguidão, afastando para longe com ataques de picadas os atrevidos invasores. Depois, vinham os de porte médio, os franganitos saciar a sua fome. Os mais pequenos, os pintaínhos, nem sequer ousavam aproximar-se; entretinham-se a esgravatar ao lado o redondel duma pequena planta. Somente os mais pequeninos de todos, os pardais, conseguiam infiltrar-se por entre os grandes. Esses sim. De tão pequeninos, passavam quase despercebidos dos maiores e assim fizeram em conjunto o festim.

Onde é que eu já vi isto? Será que entre os humanos não acontece algo idêntico? Que significado têm as minorias? O caminho é duro, é difícil mas possível, pois não há sistema, sociedade ou grupo totalmente hermético, que não tenha alguns locais de fuga e de infiltração. E daí o provérbio “ os primeiros serão os últimos e os últimos os primeiros”. O que hoje é grande poderá amanhã ser pequeno; o que hoje manda amanhã terá de obedecer; o que hoje é rico amanhã poderá ser pobre. Todas as “torres de Babel” ao longo da história têm conhecido desmoronamentos; todos os “bezerros de oiro” idolatrados têm passado ao esquecimento.

Entretanto, logo aqui em frente, as crianças brincam alegres e indiferentes às nossas cogitações. Parecem “ bandos de pardais à solta”, os putos...os putos”.


Dia 06.06.2018. quarta feira - Moonlight,  Sonata de Beethowen

Acabo de ver e ouvir no Youtube, interpretada na guitarra clássica pelo artista Michael Lucarelli a Sonata Moonlight de Bethoven, já ouvida várias vezes interpretada sobretudo ao piano.

Por coincidência ou não, a luz da lua cheia faz-se presente, e vêm -me à ideia uma série de imagens e sons que a lua e o luar suscitam: “Andar com a lua”, “lunático”, “aluado” são expressões que utilizamos frequentemente e que revelam a influência que este astro tem nas nossas vidas. 

Até os pescadores e os agricultores se deixam orientar por ela, escolhendo as melhores marés para a faina, as melhores luas para plantar, enxertar, podar, etc. Os poetas e trovadores tecem-lhe “loas”, os amantes projeções, os compositores sonatas. Os homens sempre tiveram grande atração por ela. Enviam saudações, naves, astronautas, e até dizem que já lá estiveram. Já a casaram com o sol, ainda que raramente se encontrem. 

Em jeito de anedota conta-se, que um dia o sol foi pedir o divórcio a Deus, que lhe perguntou porque lhe fazia tal pedido. Ao que o sol respondeu: ”Anda só de quarto em quarto e, de vez em quando, aparece cheia”.

Seja como seja, o seu luar é encantador. É algo que muito se aprecia e usufrui. Recordo-me do refrão de uma canção do norte do Brasil “ Não há, ó gente, ó não - não há luar como este do sertão”. 

Recordo-me do luar de Boebau, nas montanhas de Liquiçá, aqui em Timor Leste. E recordo-me das noites de luar em Malcata, terra aonde a conheci pela primeira vez na minha vida, em que durante a infância, à noite, jogávamos à “Espada Lua”. Há dias foram publicadas pela Joela no Facebbok imagens deslumbrantes dos últimos luares de Malcata.

Por isso, e em atitude de contemplação, utilizo as palavras de São Francisco de Assis para rematar este relato: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas, que no céu formaste claras, preciosas e belas”. (Cântico das Criaturas
 -1224)

Dia 07.06.2018, quinta feira  - Indo eu, indo eu...a caminho de Boebau!


As coisas acontecem, muitas vezes sem muito pensar ou programar. Tendo eu prometido às gentes de Boebau de que não regressaria a Portugal sem que voltasse a esta terra, e estando eu ansioso por cumprir a promessa pois via o tempo a passar, eis que, de um dia para o outro, se toma a decisão de partir.

Assim, neste dia sete de junho, depois dos preparativos necessários, pusemo-nos a
caminho, em carreta alugada, do nosso destino. Eu, o Eustáquio, o Aipeu (dono do
veículo), o chofer e mais dois moçoilos.

Primeira surpresa do percurso: saídos de Dili, mais ou menos a cinco quilómetros de distância, uma roda traseira esvaziou devido a um parafuso intruso. Paragem obrigatória para a mudança do pneu, mas impossível de realizar pois não havia macaco na carrinha..

Mais de meia hora à espera que alguém passasse e quisesse ajudar, até que, finalmente, um cireneu se decidiu parar para resolver a carência.

Depois, até Boebau, foram quatro horas de saltos e sobressaltos, algumas paragens de motor, buracos e mais buracos a decorar o caminho. Compensáva-nos a maravilhosa paisagem que nos era oferecida pelos cafeeiros abrigados pelas soberbas madrecacau em flor  
[ Gliricidia sepium]
 ; as crianças que saindo da escola nos brindavam com o “Boa tardi”; os adultos que nos acenavam e, que bem me soube, a criança que, ainda longe da Escola São Francisco de Assis, me reconheceu e atónito exclamou: “avô Rui!!!”

Já chegados à escola, e depois das saudações calorosas dos amigos presentes, fomos almoçar a casa do Bôzé, onde o arroz com feijão foré, a papaia e o café alimentaram os nossos corpos.

Logo a seguir, mãos à obra, pois o tempo urge. A carreta não tinha faróis em condições para viajar de noite. Colocamos então no lugar certo os acrílicos identificadores da escola, e que dizem “Escola de São Francisco de Assis” em horizontal; e “Paz e Bem”, em vertical. O característico Tau com o qual Francisco de Assis assinava, por ser a última letra do alfabeto grego, e como tal queria ser o último, o mais humilde de todos..

A noite foi compensadora, com um sono repousante. E, como diz uma canção “ O dia chegou ao fim; silêncio... a noite desceu. Boa noite! Paz em Deus...”

Dia 08.06.2018, sexta feira - Acordar 
em harmonia

Se há coisas que a montanha proporciona, é esta sintonia com a natureza o que mais aprecio. Então logo de manhã, antes que qualquer outro ser dê o alarme ou antes que qualquer objeto mecânico se arme em despertador, começa a sinfonia galinácea. Um senhor galo, que bate três vezes as asas e enche o peito de ar, dá o mote com a sua voz potente e bem sonante: “Có-co-ró-có-cóóóó!!!” 

Seguem-se respostas diversas de outros executantes, vindas de todos os lados, a querer fazer lembrar um concerto em estereofonia. Por fim, há um cantante que, talvez por pensar que eu ainda estivesse a dormir, mesmo em frente do local que me destinaram, bate as asas, respira fundo e canta: “Acorda velhote que já são horas!” Ok! Já estava bem acordado, de modo que foi levantar da cama e começar este novo dia com alegria. À socapa para não incomodar ninguém, fomos saindo do habitáculo: eu, o galo e uma galinha com os seus pintainhos.

E toca a andar, que há muito para fazer.

Não sei explicar o que nos prende 
a esta gente
 

Não, nãp sei explicar o que nos prende a esta gente. Cada vez que aqui vimos novos laços são criados, novas razões aparecem para gostarmos cada vez mais do que estamos fazendo. 

Hoje, a professora Rita e o seu marido Julito disseram-me que da última vez que parti daqui, as crianças ficaram muito tristes. A nossa presença é motivo de muita alegria, de confiança e de esperança. Ainda bem que assim é.

Como já sabem que no dia dezasseis regressamos a Portugal, querem saber quando
voltamos a Timor. Sem darmos certezas informamos que, se Deus quiser, talvez na
segunda quinzena de Dezembro regressemos, porque queremos estar presentes no início do novo ano letivo, que será a partir do dia sete de Janeiro.

Quase sem querer, deixei escapar o desejo de pedir a nacionalidade timorense, sobretudo para evitar o pedido de renovação de visto ou de estadia. A alegria do Julito foi notória, dizendo que para o suco de Leotalá e para a gente de Boebau/Manati será uma grande honra. 

E conta como, através do projeto de solidariedade “Uma Escola em Boebau/Manati", esta região saíram do anonimato e do esquecimento. Têm a esperança de que muitas coisas boas poderão ainda acontecer, e que por isso acarinham fervorosamente este meu desejo.

Timorense ou não, continuaremos a prestar o nosso apoio a esta gente, a estas crianças. “ O que fizerdes a estes pequeninos é a mim que o fazeis”. E assim este mundo ficará um pouquinho melhor.


Pronto!... E aí vamos nós de “motor”para a reunião de pais

Sem que ninguém esperasse, logo de manhã, a professora Rita e o seu marido Julito
apareceram de “motor” para me fazerem um convite:participar na reunião de pais e
encarregados de educação que daí a instantes se iria realizar na escola primária de
Bantur/Kelor, a escola mais próxima daqui, a fim de esclarecer a situação da sua
colaboração na escola São Francisco de Assis. Há pais e encarregados de educação que não compreendem a sua colaboração connosco e reclamam a sua exclusividade para a escola dos seus filhos.

Pronto!, disse eu. E aí vamos nós de “motor”para a reunião. Muito bem recebido pelo professor coordenador e pelos presentes, tive a ocasião de explicar o porquê da Escola de São Francisco de Assis, como funciona, porque a professora Rita trabalha na nossa escola e, sobretudo, a vontade que temos de uma colaboração mútua.

Não houve questões, pelo que sou levado a concluir que o assunto está esclarecido.

Mais uma vez me dou conta de que, quando as coisas são bem explicadas, as pessoas são compreensivas e colaboradoras. Espero bem que, com esta ação, estas escolas se entendam e colaborem, para bem de todas as crianças que as frequentam.


(Continua)

(Seleção, alguns dos subtítulos, revisão / fixação de texto, parênteses retos, negritos: LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25872: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte XI: um futuro promissor, com mais de 60% da população abaixo dos 30 anos

Guiné 61/74 - P25930: Louvores e condecorações (17): Atribuição da Medalha de Participação no 25 de Abril de 1974, divulgação do Decreto Regulamentar 2/2024 de 26 de Janeiro (José Martins, ex-Fur Mil TRMS)

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Notas do editor

Ver aqui o Decreto Regulamentar 2/2024 de 26 de Janeiro

Último post da série de 3 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25710: Louvores e condecorações (16): Aurélio Trindade, ten gen ref (1933-2024), ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): Cruz de guerra de 2ª classe e Medalha de Valor Militar, Prata com palma