sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2195: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (6): Hoje perdi o meu braço direito, o Casanova

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) > Edifício do comando > "Até sinto as botas a calcar este saibro incendiado pela laterite...Por aquela porta terei entrado centenas e centenas de vezes, à procura de um duche, dormida, mesa, repouso. Entrei por ali em todos os segundos que faz um dia. Contornando à squerda ,vendo a linha de janelas, tínhamos o gabinete do Major de Operações, cheio de mapas e sigilo, depois o gabinete do 1º Comandante e depois do 2º. Ao fundo, o universo do cripto, ali o Calado [, o Alf Mil Trms,] não deixava entrar ninguém. Em frente a este corpo do edifício, estendia-se a estrada que, trezentos metros à frente, bifurcava para o Xime e Mansambo. Passei por ali a última vez em 1991, vindo de Aldeia Formosa. Depois do que vi à ida, preferi virar a cara, no regresso" (Beja Santos, 13 de Julho de 2007).


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Texto enviado, em 3 de Setembro último, pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70).



Luís, vim hoje de férias e reenvio-te o episódio nº6, na sua versão revista. Como estamos a acabar o período de Missirá, peço-te que vejas as fotografias que ainda não foram editadas a elas referentes.

Peço-te igualmente que me digas se queres entrar em contacto com o Coronel Coutinho Lima, o oficial superior que foi punido por ter abandonado o Guileje. Espero tenhas tido uma boas férias. Amanhã telefono-te. Um abraço, Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte (6) > Hoje perdi o meu braço direito (1)

por Beja santos

Nova conversa esotérica com Lânsana Soncó

Caminhamos para o fim de Setembro, começo a desinteressar-me em responder às cartas incendiadas que chegam dos entes queridos. Limito-me a agradecer as notícias, comunico que há portadores que levam artesanato, bebidas alcoólicas e tabaco, a minha Mãe está cada vez mais doente, registo novas recusas dos papéis de Bafatá que enviei para o casamento por procuração, volto a escrever à Cristina:

“Desce à Feira da Ladra, se quiseres aproveita a visita ao meu tio Luís Sardo, no Laboratório Medicamenta, em frente a Stª. Engrácia, vais por uma rua íngreme, a descair para Stª. Apolónia, é aí a conservatória onde te entregam a minha certidão. Em Bafatá voltaram-me a pedir a data de nascimento do teu pai. Continuo a receber cartas cheia de arrufos, pedradas e acusações. Há momentos em que nem apetece pegar neste correio. Estou cada vez mais preocupado com o Casanova: agreste, emagreceu muito, não fala praticamente connosco. Aguardo que David Payne venha de férias, sinto que o meu mais directo colaborador caminha para um abismo. Passámos hoje uma dia em domesticidade, com limpeza de arrecadações, pinturas, lavagens de morteiros, arranjos na estacaria e no arame farpado. Amanhã vou a Bambadinca, encontraram algumas alternativas para nos ajudar com esta crónica falta de pessoal. Estamos a ir a Mato de Cão com quinze homens, visto que continuamos a ser obrigados às emboscadas nocturnas e não quero desleixar os trabalhos em Finete. Reflectindo melhor, sugiro que alteremos os nossos projectos para casar em Fevereiro”.

Exausto e melancólico, volto a lanchar com Lânsana, sempre com o caderninho preto à mão e com o apoio do Benjamim e do Cherno como tradutores. A pequenada da escola onde Lânsana ensina a religião islâmica assiste curiosa e ganha a batalha a Jobo Baldé, levando uma pratada de pão quente e Umaru Baldé fica autorizado a fornecer-lhes umas boas fatias de marmelada.

Hoje a conversa centra-se na época seca, nas suas fainas. O padre Lânsana fala na colheita do amendoim, na pesca no rio Gambiel, no cultivo da batata doce nas bolanhas. Aí o Cherno intervém, trocam comentários, fala-se a seguir no pequeno comércio onde se comercializa mandioca por batata doce, em que o amendoim é vendido nas lojas da Casa Gouveia em Bambadinca, bem como o coconote das palmeiras. Depois, Lânsana, Benjamim e Cherno voltam a conversar entre si, põem-se de acordo que a época seca se inicia em Novembro, quando começam os frios que nos obrigam a dormir com camisa e com lençol, é um tempo que vai até aos fins de Abril, há menos mosquitos.

Hoje, Lânsana bebe um chá feito de ervas naturais, que ele próprio trouxe. Está farto de erva cidreira e do chá Li-Cungo, os únicos que consigo encontrar em Bafatá, a próxima vez que for a Bissau tenho que descobrir chá de Ceilão ou da Índia. Falamos depois dos doces e sobremesas dos mandingas. Lânsana, às vezes interrompido por Cherno, fala dos bolinhos de massa de amendoim feitos com farinha de arroz, e onde se põe açúcar ou mel, que aliás também se põe na farinha de mandioca. Aqui a conversa inflecte para o mel, ardo de curiosidade, para mim as abelhas eram assassinas, o mel impensável. Lânsana explica-me que não é bem assim. Acontece que se anda à procura das colmeias, à noite as abelhas são afugentadas pelas tochas acesas, são trazidas as placas onde se aproveita o mel, muito usado pelos pobres que não têm dinheiro para o açúcar.

Escrevo no caderninho: “Confirmo que as frutas que aqui se comem são a papaia, as mangas, as laranjas e o abacaxi”. É nisto que chega o furriel Pires e que me lembra que temos de falar com urgência da folha de vencimentos. Aqui se suspendeu o inquérito, continuará em breve pois temos que falar das madeiras do Cuor, preciso de saber mais sobre esse Mato de Cão que era uma ponta povoada por mandingas no planalto e balantas junto ao rio. O último proprietário de Mato de Cão parece ter sido Mamadu Tubabó (tubabó significa branco em mandinga, disse-me o Cherno). A ver se o Lânsana me ajuda a esclarecer tudo. Tenho igualmente que ir a Santa Helena falar com os irmãos Brandão (António e Manuel) por causa das indústrias de madeira que existiam antes da guerra.

Nova conversa com o Comando em Bambadinca

Volto ao comando de Bambadinca para analisar o nosso plano operacional, escrevi uma carta alertando para a situação insustentável em que vivemos. Estão inicialmente presentes Jovelino Corte Real e Herberto Sampaio. Entreguei o memorando (mais um) onde se expõe a actual situação de meios. Se é verdade que Bafatá pretende retirar a última secção da milícia de Missirá, observei que perderemos a total capacidade de movimento até Mato de Cão, não se pode deixar Missirá entregue à população civil e aos militares doentes.

Fiz questão de informar que revi alguns dos meus pontos de vista e era para mim agora claro que a gente de Madina estava bem informada da minha perda de capacidade ofensiva. Insistia na necessidade de envolver as forças de intervenção disponíveis em Bambadinca (explicitei: a CCaç 12 e o Pel Caç Nat 54) para me apoiarem nas idas diárias a Mato de Cão, no sentido de continuar a ser possível garantir as emboscadas nocturnas, poder continuar a patrulhar nos 5 Km mais próximos e viabilizar a segurança necessária nas viagens do Sintex.

A primeira boa notícia foi a de que a partir do início de Outubro a CCAÇ 12 passará a ir regularmente a Mato de Cão (assim foi, logo nos primeiros dias de Outubro os sucessivos pelotões começaram a participar nas vigilâncias, isto quando a gente de Madina atacou um barco em S. Belchior). A segunda boa notícia foi a de que o Pel Caç Nat 54 iria brevemente render o Pel Caç Nat 52 e que o comando de Bafatá tomara a decisão de manter dois pelotões de milícias completos em Missirá e Finete, pois estaria em preparação uma nova quadrícula entre o Cuor e Enxalé (parecia que finalmente estavam a ver os perigos de um inimigo com crescente capacidade ofensiva junto do Geba). A terceira notícia pareceu-me extemporânea: o novo comando desejava preparar uma operação que redimisse o desaire da Anda Cá e pretendia a minha opinião. Terei respondido que não havia presentemente condições, eu estava com a tropa desfalcada, preparava-se o reordenamento dos Nhabijões, propunha que se esperasse por Novembro, quando se aproximasse a época seca.

Chegou depois o major Cunha Ribeiro que informou estar previsto para fins de Outubro a substituição de viaturas, era inaceitável não dispormos de nenhuma mobilidade. Com efeito, independentemente da época das chuvas, o Augusto e as sucessivas equipas de desempanagem da CCS de Bambadinca já tinham perdido as ilusões sobre os nossos Unimog: não havia milagres para as duas viaturas precocemente envelhecidas. No momento presente, estávamos a viver os atoleiros com pneus estoirados, imprevistas substituições de câmaras de ar, uma secção a montar segurança na bolanha de Finete a um burrinho doente.

À saída da reunião, o major Sampaio pede-me que o acompanhe ao seu gabinete. É aí que me informa que vamos muito em breve fazer um RVIS sobre o Geba, possuem-se informações seguras de que há várias canoas que atravessam regularmente o Geba até aos Nhabijões, há que as localizar e destruí-las.

É com estas promessas que cambo o Geba, é uma viagem serena até Caranquecunda onde vamos assistir, seriam cinco da tarde, a um bombardeamento aéreo sobre Madina: ouve-se o zunir dos T-6, as sacudidelas do solo, são estremeções que ressoam por toda a mata. Durante meia hora, deverá ter sido o inferno entre Madina e Belel. Em silêncio, ficámos todos a pensar no próximo ajuste de contas de Madina connosco.


O colapso do Casanova

A 27 de Setembro [de 1969], fui completamente surpreendido pela violência da crise de nervos em que se abateu o Casanova. Sabíamos que ele estava muito doente, cometi a imprudência de o incumbir diariamente de responsabilidades que excediam a sua capacidade física e psicológica. Tive a oportunidade de conversar com ele e com o Pires sobre o que se passou nessa tarde tão sombria para nós, e ainda recentemente voltei a recapitular os acontecimentos, as versões não coincidem quanto às causas e ao decorrer dos acontecimentos.

Tínhamos almoçado pela uma da tarde, nada previa o desfecho trágico que ocorreu duas horas depois. Estava no meu abrigo a conferir os documentos enviados pelo BENG 447 (tratava-se de mais chapa, sacos de cimento e portas pré-fabricadas), e subitamente o Alcino entrou de repelão aos gritos:
- Ó meu alferes, o nosso furriel Casanova está em fúria, grita com todos, está armado, ameaça matar gente se não lhe obedecerem!

Do limiar da porta, presenciei o impensável: o Casanova gesticulava, vociferava, os soldados batiam as palmas, como se estivessem a divertir-se. O meu braço direito parecia tresloucado, mandava-os calar, sob ameaça. Começava a meia hora mais dolorosa da minha vida, ia avançando, procurava persuadi-lo a não usar a violência, dava pequenos passos, ia confirmando que ele me ouvia e respondia até ao momento em que cheguei junto dele e lhe retirei bruscamente a G3 pelo tapa chamas. É exactamente nesse momento que ele cai pelos joelhos e se enrodilha no solo.

Só a 2 de Outubro é que consigo escrever à Cristina:

“Desculpa este tempo de silêncio, vivemos um acontecimento que nos magoou muito. A 27, o Casanova sucumbiu a uma crise violenta de nervos que o deixou na semidemência. Viveu uma hora em delírio e espasmos, pedi um helicóptero que o levou para o hospital de Bissau. Admito que ele será evacuado para Lisboa, o neuropsiquiatra local não pode dar vazão a um número tão elevado de doentes. Não podes imaginar o abalo que tudo isto nos provocou, as tentativas falhadas para o serenar, vê-lo partir uma maca a delirar, irreconhecível. Já escrevi à irmã a relatar os acontecimentos, escrevi igualmente ao Pedro Abranches para me informar sobre a evolução deste caso. Sei muito bem que nada ficará como dantes, acabo de perder o meu braço direito. Tenho o problema de consciência de não ter agido a tempo e horas”.

Infelizmente, foi tudo ainda mais doloroso para o Casanova, a sua recuperação será muito lenta. No meu abrigo, vezes sem conta, vou gritar comigo, protestarei com as paredes, incriminando-me por não sermos capazes de ver um amigo querido definhar, procedendo correctamente.

Estou a sofrer muito. Na próxima quinzena, ainda irei sofrer mais, quando explodir uma mina anti-carro, em Canturé. Ainda hoje vivo em silêncio o dia 16 de Outubro, sabendo que irei prestar contas diante de Deus.

As leituras da semana

O que li esta semana foi interessante: Os armários vazios, por Maria Judite de Carvalho e O mistério dos bombons envenenados, por Anthony Berkeley, um policial soberbo. Maria Judite de Carvalho de que eu já lera Tanta Gente, Mariana, dá-nos aqui uma narrativa que retrata o desencanto e uma nova feminilidade urbana dos anos 60. Dora Rosário é a pequena burguesa a quem o marido não deixa trabalhar, vivendo uma pobreza envergonhada. Enviuva, dedica-se ao comércio dos móveis antigos, investe na educação da filha, Lisa. É uma existência morna, com os afectos contidos, relações estudadas com uma sogra déspota e ciente da sua classe. Esta existência acabrunhada parece ganhar um novo fôlego quando surge Ernesto, um advogado de sucesso. Ora o que acontece é que Ernesto se vai apaixonar por Lisa e esta retribui. Tudo acaba em casamento de estadão na Basílica de Estrela, o novo sogro ajuda Dora que regressou à vida resignada, aos seus armário vazios, à sua trágica continuidade melancólica.


Capa do livro de Maria Judite de Carvalho, Os armários vazios. Lisboa: Portugália Editora.1966 (Colecção Contemporânea,; 83). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O que destingue Maria Judite de Carvalho é este poder descritivo do intimismo psicológico onde os seres humanos vão sendo desenhados de uma forma branda, haja o conflito que houver, reservando-se o desfecho surpreendente para o final onde, como é com a maior das naturalidades, os personagens descem às tragédias do quotidiano: “Abri-lhe a porta, fui à janela vê-la, não sei bem porquê. Estava a chover e ela uma mulher cinzenta, um pouco curvada, perdida na cidade deserta depois da peste e do saque. Reparei que o seu caminha era incerto e hesitante, às guinadas, como se estivesse levemente embriagada ou ainda não tivesse acordado totalmente de um longo sono. A chuva continuava, uma chuva mansa e igual, quase lenta, sem interesse em tombar, escorrendo como que passivamente de um céu doente e velho, lacrimejante, fatigado se existir. Era uma dia igual a tantos, agora que eu vivia só”.



Capa do romance policial, de Anthony Berkeley, O mistério dos bombons envenenados. Lisboa: Livros do Brasil. s/d. (Colecção Vamprio, 185). Capa de Lima de Freitas.


Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.


O livro de Berkeley é um assombro. Um grupo de intelectuais e especialistas reúne-se num Círculo Criminal onde procuram, com objectividade e rigor, decifrar homicídios aparentemente sem solução à vista. Uma caixa com bombons envenenados entra num clube, o destinatário oferece a caixa a outra pessoa, esta leva-a para casa, a mulher morre envenenada. Todos os participantes do Círculo vão apresentando as suas versões, umas atrás das outras são derrubadas, tal a sua fragilidade. Como nas Mil e Uma Noites, as versões sucedem-se, uma com mais apoio e verosimilhança, outras rejeitadas por excesso de fragilidade. Até ao momento em que uma versão aproveita depoimentos anteriores e surpreende o auditório: o criminoso, com elegância, sai da cena, dando sinal que a vida do Círculo não poderá ser afectada pela surpreendente revelação. È o momento mais alto da obra de Barkeley, nascera aqui um clássico.

E da literatura passo para a música. Na minha última ida a Bafatá comprei um presente para David Payne: a Sinfonia nº2 Ressurreição, de Mahler. O Payne, sempre que podia ouvia esta versão da Orquestra Philharmonia dirigida por Otto Klemperer. É o grande Mahler, uma sinfonia heterodoxa, com coros vozes, onze momentos distintos em que no final soprano, contralto e coro anunciam ao ouvinte: “Ó sofrimento, tu que em tudo penetras, arrebatas-me! Ó morte, sempre vitoriosa, agora és vencida! Com as asas que eu conquistei, cheio de amor, eu esvoaço para a luz onde nunca ninguém penetrou!”.

O David Payne merece este presente, é o mais querido dos amigos, dentro de dias, o sofrimento e a morte vão ser nossos vizinhos, quando ele me vier ajudar depois da explosão da mina anticarro e da emboscada em Canturé.

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Nota de L.G.

(1) Vd. post anterior > 12 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2174: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (5): Aquela Terceira Semana Prodigiosa de Setembro

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