Post do João Tunes, publicado em 7 de Abril de 2004, no seu blogue de então, o Bota Acima, e aqui reproduzido com a devida vénia (diga-se, entre parêntesis, que é uma peça de fino humor de caserna que eu, blogador-fora-nada, quero compartilhar com os meus queridos tertulianos; espero que o João Tunes, aliás, ex-tenente miliciano Tunes, já tenha sido perdoado, ao fim destes anos todos, por quem tem a competência de perdoar as ofensas feitas às mulheres, em geral, e às senhoras, em particular):
Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional [Feminino] por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados.
Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta.
A certo momento, avançam as senhoras do MNF [Movimento Nacional Feminino], todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins.
A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente “parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria”. Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos sobre o punho da arma.
Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: “meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!”. A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.
A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos?
Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores.
Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos “Oh Supico, mete-os na cona!”. Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias.
Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália.
Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças. Só que, às vezes, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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