domingo, 2 de dezembro de 2007

Guiné 63/74 - P2323: Um insulto aos heróis de Gandembel (Zé Teixeira)

1. Mensagem de Zé Teixeira (ex-1.º Cabo Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, actualmente residente em Matosinhos, bancário, reformado, um homem bem disposto que tem por alcunha, entre os escuteiros, de que é dirigente, o Esquilo Sorridente; é, além disso, um dos nossos antigos e proactivos membros da nossa tertúlia) (1):


Meus caros amigos [editores]:

Agradecia que retirassem ao meu nome da foto humorística em Ponte Balana ano 2000, só porque não se trata da minha pessoa. Apesar de ter voltado à Guiné, foi em 2005 e não tive oportunidade de ir a Balana, muito menos, como é compreensível ir lá de propósito arriar o calhau.

Sobre os comentários do Sr. Manuel Trindade (2), lamento a sua pobre imaginação em reduzir a canção ou hino de Gandembel a uma música pimba, no sentido depreciativo que lhe dá, que eu considero, no mínimo humor de mau gosto, logo desprezível..

Não creio que tenha vivido em situações de guerra, caso contrário entenderia facilmente que a reacção da nossa gente às situações difíceis que lhe apareciam pela frente, passado o sofrimento que tantas vezes era atroz, pelos perigos que tinha de enfrentar, pelos camaradas feridos e em sofrimento, pelos amigos que nos deixavam para sempre; a reacção, no combate ao medo que nos ficava na alma e entorpecia os sentimentos e a mente era cantando quantas vezes (na caserna do Zé Soldado), com uma bazuca [cerveja] a mais, coisas alegres que recordávamos da nossa terra, já existentes ou recriando-se piadelicamente os acontecimentos sofridos.

Não eram hinos a contar a heroicidade, esses ficam para os mais letrados ou doutores chamados Trindade, eram estórias reais. E essas é merecem ser escritas e contadas aos vindouros, não os hinos heróicos que mistificam a realidade.

Eu que não vivi Gandembel, mas visitei em tempo de guerra, integrado nas colunas que lhe levavam uma réstia de esperança do mundo e sentia a poucos quilómetros o horror do seu sofrimento, com ataques de dia e de noite (3). Eu, que ao chegar lá, senti a Parada a ser varrida por uma rajada inimiga em pleno dia e não me limpou o sarampo, porque um conterrâneo meu, ali estacionado, me gritou ao longe, encostado a um abrigo, Foge daí!. Eu entendo bem a linguagem e a mensagem do seu hino, talvez escrito por um jovem com a 4ª classe (linguagem da altura). O hino pretende contar a sua história.

A alimentação, o tal feijão era que muitas vezes havia para comer. Não merece ser reduzido a confundido com situações de flatulência/ canhoadas e morteiradas, porque estas eram reais e traziam a morte. Eu também vivi situações destas. Em Buba, por exemplo e a CCAÇ 2317 também lá estava, uma temporada em que a alimentação era feijão com amostras de chispe ao meio dia e amostras de chispe com feijão à noite, ou então arroz com marmelada.

Os abrigos de madeiras eram reais, construídos com suor, perigos, lágrimas de saudade, lágrimas de medo. O cimento foi amassado com sangue dos camaradas que deixaram lá a vida

Reduzir isto a música pimba, é um insulto aos camaradas de Gandembel.

J.Teixeira
Esquilo Sorridente

2. Comentário de L.G.:

(i) As minhas sinceras desculpas pelo lapso, em relação à legenda da fotografia em causa. Os neurónios do meu PC já andam a ficar baralhados. De facto, em Novembro de 2000, em Ponte Balana, não podias ser tu, porque não tens o dom da ubiquidade. Tratava-se de um dos camaradas do grupo do Albano Costa. Já rectifiquei a legenda...

(ii) Quanto à tua indignação... entendo-a, compreendo-a e aceito-a... Mas, como sabes, no nosso blogue não há tabus nem censura (editorial): a intenção do Manuel Trindade (que eu não conheço pessoalmente) não era de insultar os nossos camaradas de Gandembel/Ponte Balana, nem de menosprezar o seu hino...

A tua reacção é saudável e ajuda a compreender melhor o nosso comportamento quotidiano nos buracos onde vivíamos (!)...

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2321: Humor de caserna (3): Hino de Gandembel: hino de guerra ou música pimba ? (Manuel Trindade)

(3) Vd. post de 25 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2129: Quero depositar um ramo de flores em Gandembel (José Teixeira)

2 comentários:

Anónimo disse...

Contrariamente à opinião do Zé Teixeira, que respeito, confesso que até me diverti bastante a ler o apontamento de Manuel Trindade sobre o Hino de Gandembel, pois estou convencido que se tratou duma paródia e apenas se destinava ao Beja Santos. Um pouco de humor de vez em quando também nos faz bem. Henrique Matos

Luís Graça disse...

Leiam o que escrevi no post 2205, de 23 de Outubro último:

A bianda, o tacho, a comes-e-bebes, o rancho, além do álcool, era talvez a principal preocupação do tuga na Guiné... O supremo luxo era um bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo, em Bissau, Bafatá, Nova Lamego, regado com vinho verde ou com umas bazucas...

Veja-se, nos nossos cancioneiros, como o fantasma da fome, a pulsão da comida (e da bebida), inspirava os nossos poetas e humoristas de caserna. É apenas uma amostra... Também deveria fazer parte de qualquer filme-documentário sobre o quotidiano das NT, nos buracos (aquartelamentos e destacamentos) em que vivia... Esta também é outra face da guerra. Talvez um dia alguém a consiga passar para o grande écrã. Como diz o Jorge Cabral, a 'nossa' guerra não teve apenas duas faces, era um verdadeiro caleidoscópio...

Eu acrescentaria mais o seguinte: aguentámos tudo o que havia a aguentar - para além do razoável e às vezes até do humano - com estoicismo, com valentia, com galhardia, com 'sangue, suor e lágrimas', sem dúvida, mas também com muito humor (negro, às vezes)...