Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 18 de abril de 2008
Guiné 63/74 - P2771: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (28): A euforia de comandar cem homens na Op Rinoceronte Temível
A relíquia mais preciosa da Rinoceronte Temível,8 e 9 de Março de 1970. O PAIGC estava moralizado e assenhoreara-se do território à volta do Xime. As operações de Fevereiro foram intimidatórias para as nossas tropas, o capitão Maltez estava ferido, os rebeldes voltaram a atacar embarcações no Geba, a escassos quilómetros do Xime. Era importante uma chicotada psicológica.É este o contexto em que me entregam a concepção e execução da Rinoceronte Temível: o inimigo teria de ser surpreendido,temporariamente rechaçado.Procurei aproveitar o potencial de fogo dos obuses e combinei com os artilheiros este código que seria usado numa emergência:por hipótese, se estivessemos a ser emboscados em D ( entre o Poidom e Ponta Varela)eu pediria pelo rádio, em claro, E,A ou B,consoante a posição do inimigo.Logo avisei os artilheiros que eles tinham de confirmar a letra pedida, para não nos matar...O código resultou às mil maravilhas,como se viu perto de Gundaguê Beafada, no baixio da bolanha do Poindom, quando retirámos para o Xime. Usarei este código dias depois, na Jaqueta Lisa. Esquema primitivo,mas que desorientou a aguerrida força do PAIGC que actuava entre o Buruntoni e a Ponta do Inglês. (BS)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > 1968 > CART 2339 (1968/69) > Espectacular imagem da alma do obus 10,5... A verdade é que as peças de artilharia tinham alma, segundo nos garantiam os artilheiros... Em Março de 1970, havia 3 destes, no Xime, guarnecidos pelo 20º PEL BAC 1, sendo a unidade de quadrícula a CART 2520 (Xime, 1969/71). Havia ainda um esquadrãop de morteiro 81, do Pel Mort 2106. Na zona de acção do Xime, havia ainda uma Companhia de Milícia, a CMIL 14, com o Pel Mil 241, o 242 e o 243, destacados em Amedalai, Taibatá e Dembataco, respectivamente. Eram três aldeias fulas, em autodefesa. Os fulas eram os nossos principais aliados, na região. Aos olhos das autoridades militares de Bambadinca, a lealdade dos mandingas do Xime era posta em dúvida, para não falar já dos balantas de Nhabijões e de Mero... (veja-se a História do BCAÇ 2852, 1968/70). (LG)
Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.
Guiné > Zona Leste > Bambadinca > BCAÇ 2852 (1968/70) > Cópia da 1ª página do relatório«Rinoceronte Temível» , 8 e e 9 de Março de 1970, da minha responsabilidade.
Deu trabalho, pois sabia da responsabilidade de escrever para o futuro: nome dos feridos, material deteriorado, proposta de louvores,munições consumidas,sugestões para procedimentos operacionais ulteriores. As omissões num relatório podiam provocar danos irreparáveis,caso dos acidentados em combate. Forças executantes: Pel Caç Nat 52; CCAÇ 2520, a 3 Gr Comb.
Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 29 e 30 de Janeiro de 2008:
Luís, aqui vai mais um episódio. As ilustrações seguirão ainda esta tarde. Por favor, não te esqueças que tens aí o croquis referente a esta operação. Se desapareceu, é só dizeres que eu reenvio. (...) Vou agora arrumar estes 28 episódios, já que é obrigatório entregar tudo até 30 de Julho. Tenho pelo menos mais 24 a 25 episódios pela frente, é imperioso fazer uma pausa entre Março e Abril para criar distância e evitar a escrita burocrática, risco que quero evitar. O nosso almoço mantém-se de pé. Não excluo entregar-te esta prenda de Natal em Dezembro de 2008... Um abraço do Mário
Operação Macaréu à Vista - Parte II > Episódio n.º XXVIII > VAMOS FAZER COMO EM OS CANHÕES DE NAVARONE (1)
Beja Santos
(i) A discrição (e a descrição) dos preparativos
Cozinho a operação Rinoceronte Temível no mais completo sigilo. O tempo urge, tenho que tomar decisões para a acção e comunicá-las superiormente. Vivo a euforia de, pela primeira vez, me terem dado o comando de uma operação com mais de cem homens. Ainda por cima, uma batida no Poidom, passando pelas margens do Buruntoni. Exijo a mim próprio qualquer coisa de muito especial
Assim, a 4 de Março, no silêncio sepulcral da sala de operações, com o furriel Pinto dos Santos fartinho de aturar as perguntas que vou pondo sobre a região do Xime, olhando atentamente o relevo da mata do Poindom, tomo a decisão e revelo-a em voz alta:
- Pinto dos Santos, a 8 a noite é de negrume total, sairei pelas três da manhã de Ponta Varela, e vou entrar com cem homens dentro da bolanha alagada, se tudo correr bem e ninguém morrer afogado entro directamente no acampamento desses gajos que vivem perto da Ponta do Inglês. Se esta guerra é feita de surpresas e imprevistos, nós vamos surgir dentro das águas, no local mais insuspeito e inesperado. Se a surpresa não for completa, eles não vão acreditar no armamento que levo. Decidi transportar 1 morteiro 81, 3 morteiros 60 e todas as bazucas e dilagramas disponíveis. Vai ser um arraial de fogo como nunca se ouviu nas margens do rio Corubal.
O Pinto dos Santos olhava-me aturdido, supus mesmo que se interrogava se eu não estava alucinado. Com os bons modos que eram o seu timbre, engoliu em seco, ganhou coragem e disparou:
- O meu alferes leu certamente que há muita população a viver nesta mata, atacam quando querem em Ponta Varela as embarcações, se vocês forem pela bolanha serão rapidamente detectados ao amanhecer. Pode imaginar os perigos de uma flagelação com as tropas dentro de água, sem puderem reagir com morteiros. Acredito no factor surpresa mas se esta falhar poderão cair na pior das armadilhas, não há aviação que vos salve.
Agradeci os comentários ao Pinto dos Santos e antes de sair da sala de operações escrevi no meu caderninho viajante: no Xime, explicar cuidadosamente a progressão até Ponta Varela e a responsabilidade dos guias em levarem-nos dentro da bolanha pelos locais menos alagados; conversar com os guias e com os meus soldados que conhecem a região na presença dos oficiais e sargentos; mandar mensagem para que o Bacari Soncó se apresente aqui a 7, ao amanhecer, com pelo menos dez homens; pedir autorização para levar dez carregadores, recrutáveis em cima da hora, em Amedalai; mandar chamar amanhã o comandante das milícias de Amedalai; falar com o Calado sobre o material de transmissões, incluindo as colecções de telas; combinar com o Augusto as viaturas que nos vão levar ao Xime, não esquecendo o grupo de combate de Mansambo que vai ficar a reforçar a vigilância do Xime; encontrar solução para o fogo de artilharia que nos deverá proteger logo que começarem as emboscadas ou flagelações no Baio, Buruntoni, Ponta Varela ou Madina Colhido; todos os homens vão levar obrigatoriamente dois cantis, se possível haverá cinco ou mais jerricãs pesados, transportados pelos carregadores, o calor agora é intenso; deixar obrigatoriamente a comida salgada das rações de combate no Xime e tentar arranjar fruta em grandes quantidades, em Amedalai e no Xime.
A 5 [de Março de 1970], com o ar mais natural do mundo, anunciei aos meus que iríamos para a ponte dois dias e a seguir para os Nhabijões. Nessa manhã, conversei pela última vez com o major Sampaio sobre os efectivos e a articulação com o apoio aéreo reservado para 8 e 9. Quando ele me perguntou se eu ia pela estrada para a Ponta do Inglês e quando lhe respondi que esperava entrar ao amanhecer na barraca do Poindom pela bolanha, ele disparatou:
- Beja, essa é o cúmulo, prevê-se uma noite sem lua e você vai por terreno alagado. Só me falta dizer que pretende apoio das lanchas da marinha!.
Eu já estava preparado para estes remoques, e disse-lhe sem pestanejar:
- Por andarmos em terra firme durante o mês de Fevereiro é que fomos descobertos e retirámos com mortos e feridos. Vou fazer como em Os Canhões de Navarone, vou aparecer por onde não sou esperado. Como em tudo na vida, também preciso de sorte. Farei tudo para que ela esteja do meu lado!.
(ii) De Bambadinca para o Xime
Regressámos da ponte a 7, ao anoitecer, informei os furriéis que em princípio teríamos uma coluna de reabastecimento ao Xitole, na manhã seguinte. Não terei sido muito convicto quando fomos interrompidos pelo Queirós que me perguntou se era verdade que existia uma requisição para granadas de grande potência para o morteiro 81, perguntou-me mesmo se ele ia levar o morteiro, coisa que até agora não tinha acontecido nas colunas para o Xitole.
Lá atamanquei uma resposta, mas vi perplexidade no olhar cruzado do Cascalheira e do Ocante, os meus directos colaboradores. Por portas e travessas, e sem alardes, ao amanhecer de 8 apareceram munições, transmissões, viaturas, rações de combate, quem vinha para partir para o Xitole ficou a saber que tinha de levar mosquiteiros e bornais, e se dúvidas ainda havia que íamos para uma operação elas dissiparam-se com a chegada de Bacari Soncó que apareceu empertigado à frente de onze milícias impecavelmente fardados e armados. Minutos depois, chegava a coluna de Mansambo com um grupo de combate da CCaç 2404 que iria ficar a defender o Xime.
Organizada a coluna com duas GMC, um Unimog 404 e um Unimog 411, a que se juntaram as viaturas de Mansambo, partimos para Amedalai. Por essa altura, já havia rumores de que as gentes do Buruntoni e de Galo Corubal iriam passar a minar a estrada Bambadinca-Amedalai e, à cautela, um grupo de combate da CCaç 12 (2) partiu à nossa frente com picadores.
Em Amedalai, juntaram-se as milícias de Bobo Seidi, um notável operacional, sensato e dotado de qualidades de comando. Foi aqui que fretei vários carregadores para o transporte de munições e jerricans de água. Um pelotão do Xime esperava-nos em Ponta Coli, daqui até Taliuará voltámos a picar, pela hora do almoço estávamos no Xime. Pedi aos meus camaradas da Cart 2520 para irmos ver o obus. É enquanto estou a conversar com os artilheiros sobre a reacção habitual ao fogo inimigo que me ocorreu a solução de combinar com eles a improvisação de um croquis em duplicado (eu passava a ter um exemplar, outro ficava em poder dos artilheiros) em que referenciávamos por letras diferentes locais em Ponta Varela, Poindom, Madina Colhido, Gundaguê Beafada, Baio e Burutoni, e assim, por exemplo, se estivéssemos a ser atacados em A eu pedia fogo para C, em E eu pedia fogo para G, em F eu pedia fogo para H ou I, ou seja, seria possível desconcertar a força atacante, silenciando-os e retirando-lhes a possibilidade de reincidirem no potencial de fogo e desorientá-los acerca da nossa posição no terreno. Mas não deixei de os advertir:
- Falarei em claro pela rádio, repetirei a letra duas vezes. Do outro lado, vocês vão confirmar que ouviram aquela letra. Não se esqueçam que uma troca de letras pode significar dezenas de mortos!.
Enquanto um dos alferes elaborava os croquis, a comer num espaço simpático com caravanas que me disseram ter pertencido às actividades topográficas de Amílcar Cabral, fui apresentando aos oficiais e sargentos os planos para a acção. Assim, logo a seguir à refeição sairíamos do Xime em direcção à bolanha de Ponta Varela, seria um patrulhamento minucioso para detectar sinais da presença do inimigo, quer para conhecer as culturas como os pontos utilizados para atacar as embarcações, que sabíamos ser na entrada do Geba estreito.
Em Ponta Varela ficaríamos emboscados até de madrugada, e começaríamos a progredir pela bolanha do Poidom. Só em Ponta Varela falaríamos com os guias e os meus soldados conhecedores do terreno. Aí pelas 4h30 da manhã, haveria fogo de obus para a região do Baio, um pouco à semelhança do que estava a acontecer nas semanas anteriores, para convencer o inimigo de que se mantinham os procedimentos normais. Mais adiantei que se tivéssemos a sorte do nosso lado iríamos surpreender a população do Poindom e as tropas que os defendiam, a responsabilidade do ataque era da minha inteira competência, o Pel Caç Nat 52 seguiria à frente com as milícias de Finete e de Amedalai. Numa folha de papel, organizámos a disposição da coluna, incluindo os carregadores. Pelas 4h da tarde, despedi-me de quem ficava, mostrei ao Cascalheira o local onde colocara o croquis na camisa, dando-lhe a saber que no caso de eu ficar fora de combate seria ele o responsável pelos contactos com os artilheiros do Xime. E deixámos o arame farpado.
(iii) OP Rinoceronte Temível: O desenrolar da acção
Tudo se iniciou com um mau presságio. Numa carta que escrevi à Cristina em 10 de Março, refiro o pequeno desastre que afectou o 1º cabo José Remédio Pereira que à saída do quartel se acidentou, disparando um tiro que lhe despedaçou um dedo.
Entregue o ferido na enfermaria, para evacuação, recomeçámos a operação com o reconhecimento da região da extinta tabanca de Ponta Varela, aqui emboscamos e houve tempo para conversar com os guias mais os soldados Queta Baldé e Mamadu Djau, explicando-lhes detalhadamente que escolhessem itinerários na bolanha que, de acordo com as informações disponíveis, iriam dar ao acampamento das populações controladas pelo PAIGC. E mergulhámos no silêncio, na escuridão, na vigilância.
Depois do mau presságio à saída do Xime, tivemos o primeiro sinal de sorte. No alto da madrugada, ouvimos a progressão cadenciada das embarcações que se deslocavam no Geba, com lentidão e barulho, aproveitámos todo este ruído inusitado e graças à perícia dos guias entrámos em caminhos acima da água, entre o tarrafe e os campos de arroz. Foi uma caminhada muito penosa, tinha pedido a todos para não haver sinal de vida mas as leis da gravidade foram mais fortes que o meu desejo, manifestando-se por tombos aparatosos, banhos lamacentos imprevistos, um momento houve em que se julgava ter desaparecido um prato de morteiro dentro do lodo.
Cerca das 4h da madrugada, o obus fez fogo sobre a região do Baio, como previsto. Passava das 5h da manhã quando o guia Mankaman Biai me veio dizer que tinham sido descobertas duas picadas muito batidas, uma na direcção da foz do Corubal, outra a apontar para o tarrafe do Geba. Não hesitei na resposta:
- Mankaman, vamos em direcção ao Corubal, estamos muito perto da barraca.
(iv) O ataque, a batida e a retirada
E estávamos. Minutos depois, fomos surpreendidos pelos disparos das costureirinhas, pelas granadas de mão e pelo fogo do RGP 2. Tal como estava combinado, o Pel Caç Nat 52 inflectiu à esquerda, um grupo de combate da CART 2520 guinou à direita, eu dirigia o fogo dos morteiros e das bazucas para a periferia da mata. O importante naquele momento era silenciar o inimigo, dividi-lo, inquietá-lo com o potencial de fogo.
O inimigo retirou depois daqueles escassos minutos de resistência e entrámos no primeiro acampamento constituído por casas de mato, cerca de dez, com dotação de mais de uma dúzia de leitos, cada. Era seguramente a residência dos cultivadores da bolanha, como comprovava igualmente o vestuário e o equipamento abandonados.
Enquanto incendiávamos as casas de mato, o solo à nossa volta foi sacudido por várias morteiradas, dei ordem para prosseguirmos enquanto que o Queirós, Cherno e Mamadu Djau, entre outros, aliviavam as cargas dos carregadores em munições. Novo silêncio e nova investida, minutos depois alcançávamos mais casas de mato, já no baixio da bolanha e pela primeira vez na minha vida vejo toneladas de arroz em depósitos rudimentares.
Pelo telefone peço fogo da artilharia para a região da Ponta do Inglês e avançamos para a foz do Corubal. Aqui a natureza é assombrosa: ramificam-se as picadas, disseminam-se na direcção da Ponta do Inglês, outras apontam para o Buruntoni, mas a nossa prioridade, agora, é detectar o arroz e inutilizá-lo, saber a extensão dos acampamentos, averiguar com exactidão possível a presença militar e civil do PAIGC na região.
É junto à foz do rio Corubal que descobrimos a picada (bem simulada, por sinal) que leva directamente a Ponta Varela, seguramente para os actos de cultivo, patrulhamentos e ataques às embarcações. Convoco de urgência os dois alferes do Xime e o Cascalheira, bem como Bobo Seidi e Bacari Soncó informando-os da minha decisão:
- O factor surpresa esteve do nosso lado, ou avançamos para o Buruntoni ou retiramos aproveitando a desorientação do inimigo. Recebi ordens para que a operação não ultrapassasse a batida do Poidom, o que está feito. Confesso-vos que estou preocupado com a quantidade de militares e civis que aqui devem viver, isto é quase uma ocupação ao pé do Xime. Não temos meios para continuar, agora a surpresa está do lado deles, se quisermos avançar para o Baio ou o Boruntoni. Vamos retirar imediatamente, flanqueando a estrada, indo sempre por esta margem, dentro da floresta, eles devem já ter mandado gente para nos emboscar entre Gundaguê Beafada e Madina Colhido. Os primeiros quilómetros vamos retirar quase a correr, depois iremos mais devagar, e vamos usar o baixio da bolanha, para nossa protecção. Eu parto já com o meu pelotão, seguem-se as milícias e depois a malta do Xime. Espero só vos falar quando entramos no quartel.
(v) A emboscada e o fogo de artilharia
Seriam 9h da manhã quando nos embrenhámos numa mata junto à estrada do Xime-Ponta do Inglês, muito acima de Ponta Varela, e bastante distante de Gundaguê Beafada. Lá em cima ouvia-se o ronco da DO a avançar para o Poidom, guiando-se certamente pelos rolos de fumo que subiam por cima dos depósitos de arroz.
Progredíamos em marcha acelerada quando se desencadeou a emboscada, uma emboscada precipitada, o inimigo guiava-se pelo restolhar do nosso movimento, os nossos vultos não eram nitidamente visíveis, mas estávamos referenciados, era uma chuva desencontrada de morteiros e de bazucadas que destruíam a folhagem à nossa volta.
Tirei novamente o croquis do bolso e falei em directo para o Xime, pedindo urgentemente fogo sobre a posição do inimigo. E dei ordem para que ninguém reagisse na coluna, todos com a cabeça no chão, o fogo de artilharia ia passar perto de nós. E minutos depois o inimigo foi apanhado em cheio, não soubemos o que aconteceu mas calou-se, levantei-me, inflectimos para Ponta Varela, andámos aos ziguezagues pelos palmares. À hora do almoço, sem um ferido, sem um insolado, sem nenhuma perda material, entrámos no Xime onde pedi para se transmitir para a DO que a missão estava cumprida.
Tirara-se partido dos ensinamentos dos últimos meses, sabia-se agora que o grupo populacional do Poidom era enorme, que havia tropa, pouca mas combativa, que era indispensável rever futuramente a nossa actuação, não parecia correcto continuar a insistir-se em operações clássicas com o exército, era preferível que fôssemos utilizados em batidas e patrulhamentos ofensivos.
Enquanto almoçávamos, procurei ouvir as opiniões dos camaradas sobre comportamentos relevantes, os que verifiquei e os que eles verificaram. Ergueram-se várias vozes para referir a coragem do Queirós, praça por acidente e comandante por mérito próprio, pelo modo determinado como acompanhara a reacção ao fogo inimigo, à entrada do primeiro acampamento; tinha sido também notada a participação audaciosa de um apontador de morteiro da Cart 2520. E foi assim que pedi louvor para o soldado Ramoaldo Izaias Tenda Coelho. Não deixei de referir igualmente o desembaraço com que o sargento Cascalheira comandara a manobra de assalto, decisiva para fazer recuar o inimigo.
Saímos alegres do Xime e deixámos a tropa local mais confiante. Mankaman veio despedir-se, foi um longo cumprimento que Mamadu Djau resumiu:
- Foi bom ter feito esta operação consigo. Venha mais vezes.
Era uma bonita saudação e Mankaman mal sabia que eu viria mais vezes. Em breve, a 22, estaremos juntos na operação Jaqueta Lisa.
(vi) Leituras singulares e coloridas
Vou chegar derreado a Bambadinca, pela primeira vez o major Sampaio está risonho quando me felicita. Nos próximos dias, atirado novamente para a ponte de Udunduma só escrevo à interessada, aos familiares e amigos falando do casamento provisoriamente marcado para meados de Abril em Bissau. Estou feliz pelo desfecho da Rinoceronte Temível.
Daqui para diante há quem se refira ao nosso pelotão como “aqueles loucos que levam o 81 dentro de água”. Na ponte continuamos as obras e é aqui que eu vejo a verdadeira modéstia do Queirós: com o mesmo à vontade com que mete granadas no tubo do 81, pega na picareta e galvaniza todos aqueles que trabalham no restauro da ponte.
Capa do livro Documentos para a compreensão da pintura moderna, de Walter Hess. Este livro vem incluído na enciclopédia LBL onde li, entre outros O Sagrado e o Profano, por Mircea Eliade e Arte e Mito, por Ernesto Grassi. A tradução é de Ana de Freitas e José Júlio Andrade dos Santos, a capa de Karl Gröning, s/data. (BS)
Agradeci à minha mãe dois livros que me mandou de Urbano Tavares Rodrigues, Bastardos do Sol e Casa de Correcção. Já me sentia capaz de tocar nos livros que o Carlos Sampaio me mandara no segundo semestre de 1969. Então, folheio Documentos para a compreensão da pintura moderna, de Walter Hess, da conceituada Enciclopédia LBL. Trata da arte moderna vista através dos testemunhos pessoais dos seus protagonistas (fauvismo, cubismo, pós-impressionismo, pintura absoluta, expressionismo, surrealismo e futurismo).
A pintura, então, libertava-se de conteúdos históricos, deixava as paisagens do naturalismo e os heróis sublimes. O artista tem novas clientelas; a ciência, a industrialização, o lazer, passaram a ter novos significados, procuram-se novas imagens, novas cores, uma outra relação entre a forma e os conteúdos. É assim que se decompõe a cor, nascem os pontinhos multicolores, alteram-se as formas, os contrastes, a presença de objectos nesses quadros por vezes iluminados com cores sugestivas. É assim que arranca o fauvismo em França e o expressionismo na Alemanha. Leio os pontos de vista de Matisse, de Rouault, Kirchner, Braque e de outros cubistas, de como gradualmente se caminhava para a arte abstracta. Leio com prazer mas de vez em quando entristeço-me quando penso que nunca mais conversarei com o Carlos Sampaio sobre pintura moderna ou o quer que seja.
Capa de Salomé, de Oscar Wilde. Editorial Gleba, s/data,uma capa sugestiva anónima, tradução de Manuel Cabral Machado.
Li deslumbrado a Salomé, de Óscar Wilde, e descubro afinidades entre esta voluptuosidade teatral e a linguagem musical alucinante de Richard Strauss, na ópera do mesmo nome, o clímax de um rei Herodes inebriado por Salomé, uma Salomé inebriada por João Baptista, uma Herodíade inebriada pelo ódio. É este quarteto que domina o texto teatral cheio de desejos extremados, tensões e vibrações da morte. Salomé a beijar a boca de João Baptista morto desencadeia uma onda de terror em Herodes que concentra o seu despeito no sacrifício de Salomé.
Capa do livro O Jogo da Vida , de Patrícia Highsmith. É um livro que manipula um enredo muito peculiar de Patrícia Highsmith: um acontecimento fortuito leva a um homicídio, este suscitará o pesadelo das suspeitas,as relações dentro de um grupo ficarão fragilizadas.Como sempre, um outro acontecimento fortuito levará ao esclarecimento, a verdade desabará a contingência das relações de quem ganha e de quem perde... É o nº160 da Colecção Vampiro, capa de Lima de Freitas e tradução de Mascarenhas Barreto
E, por último, esse sublime O Jogo da Vida, de Patrícia Highsmith. Desta vez o criminoso será preso, tudo se passa no México, no meio de boémia e tertúlias, o assassinato de Leila Ballesteros, uma pintora cheia de mérito e mulher independente, arrasta à comoção os seus dois amantes que se lançam na investigação e na descoberta do móbil do crime. Houvera um roubo depois do crime, o criminoso começa a ser pressionado por chantagistas, foge e depois entrega-se à polícia. Como é muito peculiar na arte de Highsmith, é um crime fortuito e não deliberado, depois a expiação e depois a confissão, e até lá todos os outros personagens ardem no sofrimento da dúvida. É um jogo em que ninguém vence a não ser a polícia. Estou em definitivo preso pela arte de Patrícia Highsmith.
Agora vou preparar o meu casamento, no meio da vadiagem entre Bambadinca, Cossé e Badora. Depois volto às operações. E irei casar quando o general Spínola decidir uma estranha trégua, em meados do mês de Abril. A trégua terminará num massacre de vários oficiais, eu caso-me e depois passarei uma semana na psiquiatria do HM 241. Como aqui se irá descrever
________
Notas de L.G.:
(1) Vd. último poste desta série > 11 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2749: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (27): Quando os mortos abrem os olhos aos vivos
(2) Foi uma época de intensa actividade operacional para CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), afecta, tal como o Pel Caç Nat 52, do Beja Santos (Bambadinca), o Pel Caç Nat 63, do Jorge Cabral (Fá Mandinga) e o pel Caç Nat 54, do Correi«a (MIssirá), ao Sector L1 e ao Comando do BCAÇ 2852, mais as respectivas unidades de quadrícula (CART 2520, Xime; CCAÇ 2404, Mansambo; CART 2413, Xitole). Basta apenas lembrar aqui algumas das operações realizadas nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1970, em que a CCAÇ 12 participou:
Vd. postes de
7 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXII: Assalto ao destacamento IN de Seco Braima, na margem direita do Rio Corubal (Janeiro de 1970, CCAÇ 12, CAÇ 2404, CART 2413) (Luís Graça)
(...) "O prisioneiro, de nome Jomel Nanquitande, foi deixado para trás pelos seus companheiros, que no entanto recuperaram a sua arma. O seu ferimento não era grave, aos olhos de um tuga. Após uma semana de recuperação e de interrogatórios, o Jomel seria obrigado pelas NT a participar como guia para um assalto de mão ao acampamento IN de Ponta Varela que conhecia bem [, a sudoeste do Xime, na direcção de Madina Colhido]: Op Borboleta Destemida (...)".
13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIII: Op Borboleta Destemida: uma emboscada de meia-hora (Poindom/Ponta Varela, CCAÇ 12, Janeiro de 1970) (Luís Graça)
(...) "O interrogatorio do elemento IN capturado por forças da CART 2413 no decorrer da anterior operação (disse chamar-se Jomel Nanquitande, de etnia balanta, ter uma Espingarda Simonov distribuída e ser chefe da tabanca de Ponta Varela), permitiu-nos saber, entre outras coisas, que o IN voltara a instalar-se na área do antigo acampamento do Poindom/Ponta Varela destruído pelas NT em Setembro passado durante a Op Pato Rufia.0 actual efectivo era de 25 homens, dispondo de Morteiro 82, cinco RPG-2 e armas automáticas.
"O dispositivo de segurança, mais rigoroso do que no tempo das chuvas, compunha-se de 4 sentinelas na estrada Xime-Ponta do Inglês (dois para cada lado). O grupo IN saía todas as manhãs a fim de montar segurança à população que trabalha na bolanha, regressando ao meio-dia e voltando à tarde até às 17h.Com base nestes dados, foi decidido executar um golpe de mão clássico sobre o acampamento a fim de capturar ou aniquilar os elementos IN assim como o material e meios de vida nele existentes (Op Borboleta Destemida).
(...) "Progredíamos com redobrada cautela quando o prisioneiro informou que já estávamos perto e cortou por um trilho à esquerda que disse ir dar ao Buruntoni. Seguindo o mesmo, encontrou-se outro, em sentido inverso, que o prisioneiro declarou ser um dos trilhos de acesso ao acampamento.
"Enveredando por ai, e passados uns 100 metros, os homens da frente (1º Gr Comb da 12), ao entrarem numa clareira, detectaram um grupo IN instalado atrás de baga-bagas e de árvores. Evidenciando grande rapidez de reflexos, o apontador de LGFog 8,9 Braima Jaló foi o primeiro a abrir fogo. No mesmo instante começámos a ser violentamente flagelados com Mort 82, Lança-Rckets e rajadas de metralhadora. Uma granada de morteiro rebentou junto da 2ª secção do do 1º Gr Comb, tendo os estilhaços atingido o Furriel Mil Pina, o 1º Cabo Atirador Valente e os soldados Baiel Buaró e Sajo Baldé.
"Apos os primeiros momentos de surpresa e confusão, reagimos com determinação e, manobrando debaixo de fogo, obrigámos o IN a recuar. Por escassos segundos interrompeu-se o fogo para logo recomeçar com redobrada violência, quando já estávamos quase dentro do acampamento. Desta vez seriam atingidos pelas balas do IN os soldados do 1º Gr Comb Leite (Transmissões) e Mamadu Au. A nossa reacção foi de tal modo pronta que o IN foi compelido a retirar definitivamente, com baixas prováveis. 0 fogo tinha durado mais de meia-hora" (...).
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLI: Ponta do Inglês, Janeiro de 1970 (CCAÇ 12 e CART 2520): capturados 15 elementos da população e um guerrilheiro armado (Luís Graça)
(...) "Seguindo um dos trilhos, avistou-se um homem desarmado que seguia em direcção contrárias às NT. Capturado, informou que ia recolher vinho de palma, que a tabanca ficava próxima, que não havia elementos armados e que a maior parte da população estava àquela hora a trabalhar na bolanha.
"Feita a aproximação com envolvimento, capturaram-se mais 2 homens, 5 mulheres e 6 crianças. Um dos homens capturados disse chamar-se Festa Na Lona, de etnia Balanta, estar alí a passar férias e pertencer a uma unidade combatente do Gabu. Foi-lhe apreendido uma pistola Tokarev (7,62, m/ 1933) e vários documentos" (...).
9 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCLXXXVIII: Violenta emboscada em L (Op Boga Destemida, CCAÇ 12, CART 2520 e Pel Caç Nat 63, em Gundagué Beafada, Fevereiro de 1970) (Luís Graça)
(...) "Em marcha lenta, devido ao transporte do ferido em maca, os 2 Dest seguiram o trilho de Darsalame Baio-Gundagué Beafada, através do capim alto.
"Próximo da antiga tabanca beafada, cerca das 13h, as NT sofreriam uma violenta emboscada montada em L e com grande poder de fogo, especialmente de lança-rockets. A secção que ia na vanguarda do Dest B ficou praticamente fora de combate, tendo sido gravemente feridos, entre outros, o respectivo comandante e a praça encarregada da segurança do prisioneiro Jomel Nanquitande que, aproveitando a confusão, conseguiu fugir, embora algemado e muito provavelmente ferido.
"Devido ao dispositivo da emboscada, quase todos os Gr Com foram atingidos pelo fogo de armas automáticas e lança-rockets (testa e meio da co¬luna) e mort 60 (retaguarda).
"Devido à reacção das NT, o IN retirou na direcção de Poindon e Ponta Varela, tendo ateado o fogo ao capim para evitar a sua perseguição. O incêndio lançaria sobre as NT um enxame de abelhas, obrigando-as a fugir para uma mata próxima onde se trataram os feridos.
"Em resultado da acção fulminante do IN, as NT sofreriam 1 morto e 7 feridos entre graves e ligeiros (urn dos quais viria a falecer mais tarde), sendo 2 da CCAÇ 12 (1º Cabo Galvão, do 3º Gr Comb, e Soldado Samba Camará, do 2º Gr Comb).
"Feito o reconhecimento, não foi encontrado o prisioneiro. Apesar do incêndio provocado pelo fogo pegado ao capim, ainda se conseguiu recuperar parte do material abandonado. Levados os feridos para Gundagué Beafada, donde foram heli-evacuados, as NT retiraram para o Xime, protegidas por heli-canhão e T-6, tendo chegado ao aquartelamento por volta das 17h" (...).
10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVIII: Festa Na Lona, um bravo combatente do PAIGC (CCAÇ 12, Fevereiro de 1970) (Luís Graça)
(...) "Fevereiro de 1970: Op Bodião Decidido: uma operação com sucesso na área de Satecuta
"Foi realizada em 14 e 15 de Fevereiro de 1970 para uma batida à área de Satecuta até ao Rio Corubal (1), por forças da CART 2413, CCAÇ 2404 e CCAÇ 12 (1º, 2º e 4º Gr Comb), constituindo respectivamente os Destacamentos A, B e C .
"De acordo com o plano estabelecido para a acção, os 3 Dest saíram de Mansambo e Xitole às 5h00 do dia D, percorrendo a estrada [Xitole-Mansambo] até ao ponto de encontro (área de Gulobó) [onde fizeram paragem para descanso e almoço, entre as 12h00 e as 16h00]
"Após uma rápida reunião dos Comandantes dos Dest, iniciou-se a progressão a corta-mato, tendo-se atingido pelas 17h00 o local escolhido para pernoita e montagem de emboscadas nocturnas.
"Verificou-se, através de vestígios, que o IN tinha reconhecido o trilho utilizado pelas NT durante a Op Navalha Polida, embora não tivessem sido detectadas quaisquer minas ou armadilhas.Às 4h00 da manhã (dia D + 1), os Dest continuaram a progressão até atingirem um trilho muito batido na região Xime 4 F2 – 29.
"-Aí ficou emboscado o Dest B (CCAÇ 2404), reforçado por 1 Gr Comb do Dest C (CCAÇ 12), enquanto os outros Dest seguiram em direcção a Satecuta.Pelas 7h00, o Dest B avistou 1 grupo IN de 15/20 elementos, tendo os homens da frente aberto fogo no momento oportuno, causando 1 morto deixado no terreno e feridos prováveis, com um gasto mínimo de munições (1 dilagrama e 1 carregador de G-3).
"Foi apreendido ao IN um RPG-2 [ LGFog ] e várias granadas. O IN dispersou imediatamente e flagelou o Dest B quando alguns elementos deste foram à zona de morte a fim de verificar os resultados colhidos.
"Os Dest A e C foram também flagelados com fogo de morteiro e armas automáticas, não reagindo para não revelar a sua localização exacta e movimentando-se apenas para conseguir estabelecer ligação com o Dest B.
"Uma vez que toda a população e elementos IN da área tinham ficado alertados, devido à troca de tiros, as NT após uma batida muito rápida retiraram de forma a evitar quaisquer emboscada de outros grupos IN vindos de Seco Braima ou Galo Corubal. (...)
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