sábado, 10 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2831: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (31): Tigre Vadio: Um banho de sangue no corredor do Oio

Porto > 1934 > 1ª Exposição Colonial Portuguesa > Álbum fotográfico > "Indígenas da Guiné" > O régulo Mamadu Sissé fotografado por Domingos Alvão.

Mamadu Sissé era um prestigiado combatente e aliou-se ao Governador Oliveira Muzanty, em 1907 e 1908, contra Infali Soncó e Bonco Sanhá. A sua neta emprestou livros a D. Violete, a professora de Bambadinca, que me foram muito úteis. Mamadu Sissé esteve no Porto, em 1934, durante a 1ª Exposição Colonial Portuguesa, foi fotografado por um dos nossos maiores fotógrafos do tempo, Domingos Alvão.Encontrei esta preciosidade no álbum fotográfico, publicado nesse ano de 1934, nas minhas leituras na Sociedade de Geografia de Lisboa.



Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 19 e 20 de Fevereiro de 2008:

Luís, acredita que foi um pesadelo escrever este episódio. Belel ficou juncada de cadáveres e todos nós juncados de sofrimento. Um sofrimento que eu parcialmente não vivi, tu estiveste lá até ao fim, eu limitei-me a assaltar Belel e a destruí-la com grandes soldados. Por favor, pensa em ilustrações que envolvam o Geba, Missirá, Fá, Enxalé ou o Xime, não me ocorre dar-te mais nenhuma sugestão. Espero entregar-te na próxima semana os episódios n.º 32 e 33. Um abraço do Mário.

Luís, reenvio-te o texto, estava cheio de besteiras. Bem gostava de ter a tua opinião, tu estiveste lá do princípio ao fim (*). Foi a mais sangrenta de todas as nossas operações. Ao que parece, Napoleão Bonaparte gostava de generais que soubessem fazer a guerra mas que tivessem sorte. Naquele dia tivémos muita sorte, entrámos em Belel com toda a gente a fazer a sesta. Por favor, escolhe as ilustrações possíveis. Um grande abraço do Mário.


Operação Macaréu à vista - Parte II > Episódio XXXI:UM BANHO DE SANGUE NO CORREDOR DO OIO
por Beja Santos

(i) Uma conversa com o major Sampaio e uma grave distracção minha


Na manhã de 28 de Março reuniram-se no gabinete do major Sampaio os diferentes intervenientes da operação Tigre Vadio: uma companhia de Bafatá que se fazia representar por dois grupos de combate, a CCaç 12, os Pel Caç Nat 52 e 54 e duas esquadras de morteiro do Pel Mort 2106, de Bambadinca. O major Sampaio referiu os objectivos que eram, muito concretamente, os de bater a região ocidental do Cuor e procurar destruir as acampamentos de Madina e Belel.

As informações disponíveis referiam a existência no local de um bigrupo razoavelmente equipado, repartido na protecção das populações em Madina, Quebá Jilã, Belel e até em Banir, já no Oio. Toda esta área não só tinha terrenos cultivados como havia notícia de servir de ponte de passagem de material de guerra e guerrilheiros do Norte para o Sul da província. Os diferentes RVIS asseguravam a existência de vias de comunicação já mal dissimuladas pela vegetação densa. Era um importante corredor, como recentemente confirmara uma operação de pára-quedistas que incendiara um conjunto de barracas na região de Madina, onde encontraram sinais eloquentes de vida organizada, em todas as direcções. Não era só no Oio que o PAIGC estava bem armado e detentor de território.

Depois do desaire da [Op] Anda cá, em Fevereiro de 1969, propunha o comando de Bambadinca que a operação fosse constituída por dois destacamentos, partiriam ambos de Missirá, perto de Quebá Jilã dar-se-ia a bifurcação, seguindo um destacamento para Belel e outro para Madina, respectivamente apoiados por esquadras de morteiro 81, através do apoio aéreo tentar-se-ia manter os destacamentos em sintonia de modo a que, após se terem alcançado e destruído os objectivos regressassem via Enxalé, e depois Xime, apoiando-se mutuamente. Eu a tudo assistia e ouvia, contente, vendo o morteiro 81 entrar naturalmente na organização da operação. Tendo vivido todas as decepções e desaires da Anda cá, no período de perguntas e respostas perguntei se não era possível fazer-se a cambança do Geba perto de Fá, para, a partir de Gã Gémeos ou de Gã Joaquim, se chegar a Missirá sem ter a tropa exausta, e apelando para o ensinamento de que trezentos homens não deveriam, em circunstância alguma, em território batido pelo inimigo, andar num só destacamento, com todos os riscos inerentes a ser flagelado dentro da floresta galeria.

O major Sampaio garantiu que os dois destacamentos se iriam autonomizar e que os dois objectivos eram para ser cumpridos, fosse como fosse. Discutimos equipamento de transmissões, armas, munições e carregadores. E quando falo de carregadores refiro expressamente ser humanos para nos ajudar no transporte de morteiros 81 e suas munições. Esvaiu-se-me da memória, esqueci completamente de mencionar os carregadores para jerricãs de água, naquele calor infernal dois cantis de água eram manifestamente insuficientes. Mais ninguém se lembrou deste pormenor.

A factura foi apresentada em 31 de Março, depois do inferno de Belel. Cada vez que me vem à memória este episódio sinto os lábios ressequidos e vejo um helicóptero com os vidros estilhaçados, recordo uma lala com o piloto aviador a mandar-me sair com jerricãs de água que trouxéramos entretanto de Bambadinca. E vibro com sofrimento que provocámos naqueles que não puderam beber aquela água que eu acabei por levar para o Xime. Enfim, uma distracção que agravou o sofrimento daqueles trezentos homens que já levavam o corpo moído, tensos e à espera da mais imprevisível das emboscadas.

(ii) Os preparativos, de Bambadinca para Fá, daqui para Missirá

Ao princípio da tarde do dia 30 de Março, uma coluna de GMC e Unimog recolhe em Bambadinca as forças da CCaç 12, o Pel Caç Nat 52 e as esquadras de morteiro. As tropas africanas informam as famílias e as populações locais que vão para Bafatá, irão combater algures no Leste, talvez em Geba. Uma força da CCS vai para Finete, a milícia daqui parte para Missirá, ficando esta também reforçada com gente de Fá. Na estrada para Bafatá viramos na Bantajã Assá e daqui seguimos para Fá, onde já chegaram, os grupos de combate de Bafatá. Os soldados estão desorientados com a geografia da operação, ninguém se lembra que há um sintex que pode cambar abaixo de Mero e daqui para Gã Joaquim.

A cambança processa-se sem grandes percalços. Anoitece quando o último pelotão entra em Missirá. Propositadamente, somos nós. O acolhimento é ruidoso, consigo disfarçar a emoção, entro em Missirá como se estivesse em Taibatá, Samba Juli ou Madina Bonco. Mas os Soncó e os Mané são gente inconfundível, vêm açodados partir mantenha, trazem papaia e água fresca, Malã e Lânsana disputam a minha companhia. Evito falar das obras e melhoramentos, concentro-me em perguntas acerca dos ausentes e das crianças. E peço para descansar, deito-me em cima de uma manta até às dez da noite, na morança do Príncipe Samba. Levanto-me com energia redobrada, olho para o céu estrelado e para a prata fulgente da lua e é então que pressinto que vamos viver uma operação inesquecível.

Desta vez precavi-me, desde que entrei em Missirá não paro de falar com Cibo Indjai, um verdadeiro conhecedor da região, proponho que ele e Queta Baldé sigam na frente, depois os bazuqueiros Abdulai Djaló e Mamadu Djau, eu e Cherno, logo a seguir Sadjo Seidi e Tunca Sanhá, dois exímios apontadores de dilagrama. Claro está, não vamos prescindir de Quebá Soncó, o guia de Missirá, mas confio que Cibo nos indique o mais rapidamente possível o caminho mais curto para Belel. Ficara combinado, quando bifurcássemos, seria a separação do nosso destacamento com a tropa de Bafatá para Belel e a CCaç 12 seguiria com o Pel Caç Nat 54 para Madina. Na separação dos destacamentos, Cibo viria connosco e Queta Baldé e Quebá Soncó iriam na vanguarda do outro destacamento para o Sul. Mas não aconteceu nada disso.


(iii) O que se diz na sala de operações não se escreve no terreno


À hora aprazada, muito antes da meia noite excepcionalmente quente, abandonamos Missirá, temos a vida aparentemente facilitada pelo luar, está uma noite quente, Queta Baldé na dianteira leva-nos de Cancumba para Paté Gide. Aqui surgem as primeiras dificuldades, a velha tabanca foi tomada pela natureza, mesmos os trilhos que existiam para Salá desapareceram na alta e insondável vegetação. Mas não perdemos mais tempo, guiados pelo instinto os nosso picadores levaram-nos até Sancorlá e daqui os guias orientaram-se até Salá.

É uma marcha bastante silenciosa, sob um calor atabafante, é madrugada e o suor oleoso escorre pelo corpo, cola-se à farda, a coluna progride a bom ritmo, os alvores do dia surpreendem-nos já em Salá e daqui inflectimos para Quebá Jilã. Vamos prudentes, foi aqui que em 4 de Fevereiro do ano passado capturámos Aruma Sambu. Mas não há trilhos à vista, tudo parece mato virgem. É neste impasse que Cibo, imprevistamente, me manda chamar: os seus olhos sempre ágeis, indicam-me que há ali um trilho, está bem sulcado mas a natureza é acidentada à volta, impossível formar duas colunas.

Faz-se um auto, peço aos dois capitães que me dêem instruções. São coincidentes: vamos para o Sul até se perceber se entrámos, ou não, no corredor do Oio, compete ao PCV dar-nos indicações mais precisas. O calor é imenso, inabitual àquela hora, progredimos cautelosamente quando surge uma nova contrariedade: em frente a Madina arde o capim seco, é uma extensa cortina de fumo, não há possibilidade alguma de perceber onde se acantona o inimigo ou, até, se estamos referenciados. O que fora ditado na sala de operações é contraditado por aquele fogo imenso.

Nisto, recebemos ordem do avião para contornar a queimada, os destacamentos devem continuar juntos é melhor seguir na direcção Sul-Norte, os destacamentos devem progredir em direcção a Belel, há trilhos um pouco mais adiante à nossa frente, assegura com firmeza o PCV. E, de facto, apareceu um caminho largo, uma picada cheia de marcas de presença humana, até o sulco do rodado de bicicletas era perceptível. Depois, voltámos a marchar dentro de uma floresta densa, um copado frondoso que nos protegia da fornalha do sol. As horas passam. Uma força descomunal toma conta de mim, na minha cabeça posiciono o Pel Caç Nat 52 em posição de ataque. Ponho-me ao lado de Cibo e vou fazendo perguntas.
- Sim, alfero, estamos muito perto de Belel, vim aqui muitas vezes, são mais três voltas de caminho e estamos lá, na velha tabanca.

Tomo providências: o Queirós que prepare o morteiro 81, a companhia de Bafatá logo que haja fogo que disperse para a direita, onde tem visibilidade sobre o outro lado da mata, podendo ripostar fogo e desorganizar a reacção do inimigo; se detectarmos o acampamento, nada de contemplações, há que espalhar o terror com as bazucas e com o fogo dos dilagramas, a seguir entramos em Belel e começará o ataque quando o acampamento estiver destruído. Ordeno ao Cascalheira e ao Ocante que vão atrás falar com os dois capitães e com o alferes de Missirá. A CCaç 12 e o Pel Caç Nat 54 que não se precipitem a foguear, esperem que entremos em Belel. São quase duas da tarde, é como se estivéssemos numa frigideira.

(iv) O ataque e a destruição de Belel


Os moradores de Belel estavam a dormir mas um sentinela disparou o seu RPG2 a escassos dez metros da nossa entrada na clareira, sendo imediatamente abatido. Os meus bravos soldados desencadeiam um ataque fulminante, atordoador, ribombam os estoiros das bazucas e dos dilagramas, abrimos em leque e metralhamos as casas e os seus habitantes. Ouvem-se imprecações de desespero, o morteiro 81 com o hábil Queirós vomita a morte sobre uma força em fuga, tudo me parece estranho, retiram sem armas e não são propriamente população civil.

Grito até enrouquecer, Belel está a arder, continuamos a abrir e a cercar, bate-se a mata, continuo a gritar por mais fogo, não quero que o inimigo se concentre, percorro Belel com todas as suas casas de mato a arder, os cadáveres espalhados com os olhos ainda surpresos, os gritos de dor confundem-se com a gritaria da caçada humana. Mamadu Djau puxa-me pelo braço e mostra-me armas carbonizadas, é melhor não entrar nas barracas não se sabe se não há lá granadas. Alfaias agrícolas, pilões, peças de roupa, bicicletas destruídas, juncam o chão do revolto campo de batalha.

Continuo aos gritos e chamo o sargento Cascalheira e ordeno-lhe que transmita aos capitães que vamos continuar numa pequena perseguição, despejando fogo sobre a mata, aguardo instruções para a retirada. Na fumarada de Belel que se extingue, pergunto se temos feridos. Bem à vista está Sadjo Seidi com feridas no peito e um braço estilhaçado até à mão. Não me parece grave, mas há que ponderar a sua evacuação. Os dois capitães mandam informar que propõem a retirada, é temerário continuar no corredor do Oio onde ignoramos tudo. E prontamente Cibo Indjai investe num corta-mato com passo estugado, caminhamos para Oeste, flanqueamos Quebá Jilã procuramos passar ao largo de Madina.

Momentos depois, começava o nosso calvário: afinal, há mais um ferido, trata-se de um soldado da CCaç 12, depois ouvem-se gritos de gente em debandada por causa de um enxame de abelhas, comunicam-me que os carregadores largaram as munições, faz-se um auto já em atmosfera caótica, proponho que se procure ligar o rádio e pedir a evacuação dos feridos, os capitães estão de acordo.

Enquanto isto se passa vejo como a falta de água está a fazer os seus estragos, a dizimar todas as energias. Animo o Teixeira a pôr o Racal a funcionar, vamos ter imediatamente sorte, prometem-nos uma evacuação em breve. Dá tempo para avaliar o estado de ansiedade e as ameaças de desidratação daquele enorme contingente que marcha numa desorganizada coluna. E peço licença para aproveitar a vinda do helicóptero e ir buscar garrafões de água a Bambadinca, onde ficaram os feridos. Os capitães concordam de novo e peço ao Teixeira para informar Bambadinca que ponha rapidamente na pista o maior número possível de garrafões.

Chega e desce o helicóptero numa clareira onde puséramos telas , salta o Vidal Saraiva que fica em terra enquanto eu subo com os dois feridos. A máquina ganha balanço para subir quando uma rajada despedaça alguns vidros, o piloto grita que nos seguremos bem, o zunido dos motores tomam conta dos sentidos, o helicóptero parece um animal ferido que caminha de lado e pela primeira vez na minha vida vejo a mata, a extensíssima floresta que une o Cuor ao Enxalé, a escassos metros, de cima para baixo, é nesta posição que passamos ao lado do Xime, lá dentro balouçamos com a ventania quente que se infiltra, o animal ferido só se endireita para aterrarmos em Bambadinca.

(v) Desencontros do helicóptero com o Teixeira das transmissões


Os garrafões estão a chegar à pista, como está a chegar um jeep com Jovelino Corte Real. Sai colérico com esta ideia de se interromper uma operação para vir buscar água, nem cuidou de olhar para os feridos que estão a ser transportados para a enfermaria. Cedo ao cansaço e às emoções, e pela primeira e última vez elevo a voz ao comandante de Bambadinca:
-Se quer ver os resultados, suba comigo e venha até Belel. Tem lá os caminhos cheios de sangue, ninguém nos esperava, foi uma mortandade. A tropa está cheia de sede, todos nós nos esquecemos de levar jerricans de água. Não interfira nesta operação, é um momento doloroso, temos mais de dez quilómetros até chegar à estrada e pedir auxílio ao Enxalé. Não aceito nenhuma das suas críticas, se quer ver como é que estão os seus homens, venha comigo.

Dou comigo aturdido por esta estridência verbal. Felizmente, Jovelino Corte Real responde:
- Ainda bem que está a ser uma boa operação. Não se perca no caminho, felicidades para a última etapa.

O piloto explica-me que só aquele motivo de força maior justifica que ele vá com os vidros estilhaçados deixar-me algures, na mata, com os garrafões, qualquer coisa como vinte a trinta. E lá regressámos ao Cuor, num ângulo estranhíssimo, vejo tudo inclinado, os Nhabijões, o Geba lamacento, o planalto de Mato de Cão, depois a floresta galeria do Cuor, não sei se perto de Madina, se perto de Belel o piloto desce, pousa numa lala e diz-me:
- Desça e tire os garrafões, depressa!

Com o ânimo já serenado, perguntei-lhe:
-Você quer que eu fique aqui com os garrafões à espera de quem? Até agora ninguém respondeu à sua mensagem, você escolhe um sítio ao caso e não se interroga que isto não é um filme de aventuras?

Olhando-me furibundo, respondeu-me:
- Não tenho culpa do rádio avariado, vou largá-lo no Xime, aí procurem contactar a gente da operação, eu tenho que partir para Bissau para reparar o helicóptero.

E minutos depois aterrámos no Xime, puxei por vinte a trinta garrafões para o solo, angustiado por ter bebido água e ter água para trezentos homens com quem não se podia comunicar.

Conversei com o Queta Baldé há dias, antes de escrever sobre a Tigre Vadio, pedi-lhe o relato das suas impressões, sobretudo a retirada quase apocalíptica com gente que parecia em delírio, a beber água das poças, a gritar por água. Ele rememorou a coluna interminável, a descoberta completamente imprevista da picada para Belel, a sorte que tínhamos tido em termos chegado ao acampamento pelas duas da tarde, o ataque brutal dos bazuqueiros e o fogo dos morteiros, o comportamento heróico de Mamadu Camará e de Serifo Candé metralhando e afugentando os resistentes em Belel.

Erguendo as suas mãos que falam e documentam a narrativa, Queta explica-se como se tivesse transformado num livro aberto:
- Nosso alfero, tivemos sorte demais, nem nos Comandos voltei a ter tanta sorte como naquele dia em Belel, eles estavam a fazer a sesta quando nós irrompemos e destruímos tudo, em fúria, não era possível responder-nos. Naquele dia entrámos pela primeira vez no corredor do Oio como vencedores. Foi um grande sofrimento a retirada, mas foi preferível chegarmos doentes e sem mais feridos graves a ter continuado no trilho para Madina e sermos continuamente emboscados. Cibo Indjai escolheu bem o caminho da retirada. Mas esta foi muito dura, tínhamos gente picada pelas abelhas, gente que gritava e chorava a pedir água, felizmente que o Cibo agiu sem hesitação, escolheu o corta mato que desnorteou o grupo de Madina, caminhámos sempre até ao anoitecer, íamos procurando animar-nos uns aos outros, ficámos perto do Enxalé, onde só entrámos já com a luz do dia. Depois de bebermos e comermos, a gente do Enxalé levou-nos até ao Geba e daqui atravessámos até ao Xime. Pensei muito naquela operação, a canseira e os muitos mortos. Só à minha conta contei quinze. Há heróis a combater e há heróis que ajudam os combatentes. É pena que na guerra se esqueça o trabalho dos maqueiros a consolar e a tratar os feridos.

Ao amanhecer, no Xime, assisto à chegada das tropas em esgotamento físico e psicológico. É um espectáculo patético, aguento tudo a pé firme, eu também me reprovo. A todos peço desculpa por não lhes ter levado a água prometida. Foi um final duríssimo da operação, não me consolaram os resultados da Tigre Vadio, naquela noite no Xime, rodeado de vinte a trinta garrafões de água, senti profundamente o descaso de um helicóptero desnorteado e de um rádio que não funcionava. Voltava a aprender que a falta de comunicação, mesmo por milímetros, priva os homens de terem acesso à água que nos mantém vivos. Quando nos comunicam a mensagem do comandante chefe a congratular-se com os resultados da operação, ninguém levantou a cabeça, todos teriam preferido água a tempo e horas. No meio daquela balbúrdia, descorei o comportamento dos meus bravos soldados. Foram eles que destruíram Belel.

Vamos parar um dia, a seguir partimos para a ponte de Udunduma. A 9, regressaremos ao Xime para bater novamente a foz do Corubal e a Ponta do Inglês. Será a Pavão Real. De permeio, andaremos pelo Cossé e por Badora. Eu escrevo para várias latitudes a falar do meu casamento, aprazado para 16, pelas seis e meia da tarde, na Catedral de Bissau. Com os pés em chaga, leio, devoro livros, oiço Beethoven, as suas sonatas para piano interpretadas pelo genial Willhem Kempff. É uma sensação de euforia, ir rever a mulher amada. Medito no sofrimento que foi a Tigre Vadio.

Irei aprender também que a fronteira entre a paz e a guerra, a fronteira entre a acalmia e a inquietação, é difusa e também pode fazer sofrer. Como irei procurar explicar. Em Bissau irei viver as doçuras do reencontro. Mas sabia que eu estava transformado num tigre vadio, tinha os meus homens a combater, não muito longe.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. poste de 5 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2810: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (30): O Xime, sem ferro mas com fogo...


(2) Vd. postes de:

29 de Junho de 2006 >Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças) (Luís Graça)

(*) Em tempos escrevi e reescrevi a minha versão, pessoalíssma, dolorosa, como a tua. Na linguagem que me é mais confortável, com aquela liberdade que é permitida aos poetas e aos aprendizes de poeta. Permite-me, Mário, pela tua parte, que, usando (e abusando) do teu tempo de antena, e à pala do tua soberba evocação da Op Tigre Vadio, venha colar, no rodadapé do teu poste, este meu tosco relim.

Vd. poste de 1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

1. Extractos de : História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 145-146.

Op Tigre Vadio

Iniciada em 30 [de Março de 1970], às 7h00, com a duração de 2 dias, para fazer um patrulhamento conjugado com emboscadas e batida na região do Cuor/Madina.

Tomaram parte na operação os seguintes destacamentos:

Dest A: CCAÇ 2636 a 2 Gr Com, reforçada pelo Pel Caç Nat 52

Dest B: CCAÇ 12 a 3 Gr Comb

Dest C: Pel Caç Nat 54 + 1 Esq Mort 81 / Pel Mort 2106

Relim:

Op Tigre Vadio terminou 1 [de Abril], 13h00. Regresso quartéis terminado 1, 16h30. Aproximação dificultada partir 31, 8h00 queimada linear feita IN. 31, 14h00, detectado acampamento região Belel (Mambonco 7I4-97) oito moranças com colmo sete adobo.

IN reagiu PPSH e RGPG-2 cerca de 2 minutos, sofrendo 15 (quinze) mortos confirmados, vestígios sangue 10 (dez) feridos graves. Verificado após incêndio acampamento 6 PPSH queimadas.

Destruídos meios vida. NT sofreram 2 feridos ligeiros. Batida Mort 81 mata (Mambonco 8H5- 17) ouvidos muitos gritos de dor. Fuga IN direcção (Mambonco 8G6 -32).

31 [de Março], 17h00 encontrada cadeira vigia e 2 granadas RPG-2 (Bambadinca 1A8-95). Gr[upo] IN estimado 6/8 elementos emboscou NT 2 LGFog, RPG-2 e PPSH cerca de 5 minutos.

IN fugiu reacção NT impossibilitadas perseguição virtude forte ataque abelhas causou diminuição física bastantes elementos. NT tiveram 1 ferido ligeiro e 1 ferido grave, 1 doente grave esgotamento.


Transcrição MSG 1404/C Com-Chefe (Oper): COMCHEFE MANIFESTA SEU AGRADO REALIZAÇÃO RESULTADOS OBTIDOS OP TIGRE VADIO.


2. Comentário de L.G.:



Relim não é poema

Participei nesta operação,
a Operação Tigre Vadio,
que era pressuposto durar dois dias.
Um passeio a Madina/Belel.
Um patrulhamento ofensivo,
a travessia de um rio,
uma excursão a um santuário da guerrilha,
uma visita de cortesia,
aos homens do mato,
ali tão perto,
para retribuição de outras visitas de cortesia
que eles nos faziam,
aos destacamentos de Missirá e de Finete,
e à navegação do Geba Estreito.
Em boa verdade,
só te faltou o autocarro autopulman,
com ar condicionado
e bar aberto.

Éramos só tropa-macaca,
como convinha,
sempre era mais barato:
pretos de primeira da CCAÇ 12
e do Pel Caç Nat 52,
mais alguns brancos de segunda,
os açorianos
da vinte e seis trinta e seis.
Levámos dois cantis de água por cada G-3 (...).

O que é que um gajo pensa,
aos vinte três anos,
de Missirá a Salá
e daqui a Sancorlá,
em bicha de pirilau,
de noite,
escuro como breu,
a alma tensa,
o corpo lasso,
o capim mais alto
que as searas de trigo da tua terra,
a fustigar-te as trombas ?
Um gajo não pensa nada,
não tem tesão
para pensar,
apenas para sobreviver
a mais um operação...

Era pressuposto haver um reabastecimento
no dia seguinte,
como manda o mais elementar bom senso
e a experiência operacional do passado
(vd. Op Lança Afiada
em que um cada seis foi evacuafdo).

Caminhámos toda noite.
Penosamente.
Era pressuposto a guerra parar
às dez horas da manhã.
Às dez em ponto.
Porque o clima é quem mais ordena,
e não o relógio do comandante.
Cortaram-nos as voltas.
Os tipos do PAIGC
(não me apetece dizer IN)
cercaram-nos pelo fogo.
E quanto a Deus
e às abelhas selvagens da Guiné,
a gente nunca sabia exactamente
de que lado estavam.

Temerariamente,
decidimos brincar ao gato e ao rato.
catorze horas, no píncaro do dia,
com uma temperatura brutal
e os cantis vazios...
Havia ali uma dúzia de casas
de colmo e de adobe,
mesmo a jeito ou por azar,
para a gente despejar
as nossas granadas de bazuca
e de morteiro oitenta e um.

Nós, quem ?
O major da Dornier, do PCV,
a quem as casas estragavam a vista
nos seus passeios matinais
pelo corredor do Oio.
Ainda não havia os Strellas,
a temível arma dos arsenais
do inimido,
que haveriam de pôr o homem
borrado de medo
e definitivamente em terra.

Alguém puxou dos galões
e decidiu fazer um golpe de mão.
Ou melhor: mandar fazer,
que eu nunca vi nenhum cão grande,
de capitão para cima,
andar cá em baixo,
com a tropa-macaca,
com a puta da canhota nas mãos.

A escassas semanas de acabar a comissão.
P'ra ficar bem na fotografia.
E para pôr no curriculum vitae
e impressionar o Caco...
Um senhor major qualquer
do BCAÇ 2852,
que gostava de andar de Dornier
e que queria chegar a tenenente-coronel.
Um herói de opereta.

Quem ?
Quem é que manda nesta merda,
quem comanda esta tropa-macaca ?
É uma imensa cobra
que se desloca nas terras do Infali Soncó,
espantando os bichos e os irãs,
destruindo tudo à sua passagem.
Não se lhe vê nem o rabo
nem a cabeça.

Entretanto, já alguém,
o Beja Santos,
o nosso Tigre de Missirá,
tinha ido buscar, de heli,
o reabasteciemnto de água
a Bambadinca.
Não voltou.
Alguém dos nossos (?!) terá,
intencional ou inadvertidamente,
disparado uma rajada que atingiu o heli
(soube isto agora,
pelo relato dramático do Beja Santos).
O heli foi para Bissau, para a oficina,
e o Beja Santos ficou retido no Xime.

A verdade é esta:
O PCV falhou, o heli falhou.
O cadeia de comando quebrou-se.
Ou porventura alguém quis matar
o Tigre de Missirá.
O ataque de abelhas fez o resto,
enquanto o cabrão do comandante do PCV
foi bater a sesta em Bambadinca.

No regresso ao Enxalé,
sofremos brutalmente.
Eu sofri,
que a dor não para dá
para partilhar.
Sofri brutalmente a desidratação,
o esgotamento físico.
A insolação.
O absurdo.
A desumanidade.
Tive miragens.
Bebi o próprio mijo,
esgotado o soro.
Mastiguei as ervas do orvalho,
esgotada a água.
Desesperei,
perdida a esperança.
Bebi sofregamente a água choca dos charcos.
Amparei os mais desgraçados do que eu.
Transportei os nossos feridos.
Consolei os mais desesperados.
Fiz as minhas obras de misericórdia,
segundo o Evangelho de São Mateus.
Não deu nenhum tiro de misericórdia
porque nunca dei nenhum tiro em combate.
Mesmo cristãmente,
odiei o PCV,
Bambadinca,
as fardas, os galões,
a tropa, a guerra,
Herr Spnínola,
a Guiné.

Um homem,
mesmo o cristão que eu não sou,
tem que odiar
para sobreviver.

Amigos e camaradas,
depois de tantos anos,
releio o relim
e há qualquer coisa que mexe em mim.
O relim não é um poema.
Um poema épico ou dramático.
É sim, tão apenas,
Um esquema telegráfico
da guerra
para os senhores que estão em terra.

O relim faz economia
dos quilos de merda
que destilaste,
que destilámos.
Das miríades de abelhas kamikazes
que arrancastes do cachaço.
Dos gritos de dor
que ecoaram pelas matas de Madina/Belel.
Dos teus gritos
e dos gritos dos desgraçados elementos pop
que morreram à hora da sua sesta.
Das paredes do estômago
coladas uma à outra pela fome, a sede.
A lassidão do corpo, a tensão da alma,
sem um colchão
para te estirares,
sem um ombro amigo
para morderes de raiva.

Não, nunca mais irei esquecer Madina/Belel.
Eu e mais 250 homens combatentes
(oito grupos de combate),
fora um número indeterminado de civis, nativos,
contratados ou arrebanhados
como carregadores
(para transporte à cabeça,
como no tempo do Teixeira Pinto,
de granadas de morteiro,
de bazuca,
de jericãs de água, etc.).
E que largaram tudo,
ao primeiro ataque
do exército das abelhas do Cuor,
quiçá treinadas na China.

Ah, esqueci-me de mencionar o médico
da CCS do BCAÇ 2852,
o Alferes Miliciano Médico
Saraiva (tinha esquecido o nome),
que o Beja Santos
deve ter conseguido aliciar
à última hora,
face aos casos graves de desidratação,
insolação,
intoxicação...
O pobre do doutor
(ninguém tratava ninguém por doutor
lá no cu do mundo,
longe do Vietname)
ficou em terra,
perdeu a boleia do heli
e conheceu o inferno do Cuor.

Meus senhores,
o Relim não é um poema,
é um exercício de economia,
um tratado
de estética,
um compêndio de gramática,
um fait-divers com que se brinca,
um escarro na cara do Zé Soldado,
entre duas partidas de King
na messe dos oficiais de Bambadinca.

Que nos valha, ao menos, o RDM,
o Regulamento de Disciplina Militar,
é mais grosso,
tem mais papel,
é coisa que se vê
e que em último caso serve
para limpar... o cu.

Fonte:

Extractos do Diário de um Tuga.
Abril de 1970 / Julho de 2006

1 comentário:

Anónimo disse...

Este fantástico poema diz tudo o que nos ia na alma.
Na minha memória vaga de operações faz-se luz uma de que não sei nome, naquela mesma zona do Oio, saindo do Enxalé com o meu 52 integrado na 1439 com o saudoso Cap Pires a comandar e não sei mais quem, do tipo bate e foge, beber água de poças infestadas, fugir às abelhas de tal forma que andavamos perdidos, sendo socorridos por um T6 que por ali andava e que a nosso pedido nos sobrevoou e com um “abanar de asas” apontou a direcção do Enxalé.
Henrique Matos