sexta-feira, 9 de maio de 2008

Guiné 63/74 - P2827: Os últimos a saírem: um estrangeiro numa nova Nação (Ten Cor Albano Mendes de Matos, contabilidade, QG/CTIG, 1972/74)




O então Tenente Albano Matos, em Bissau, nos últimos dias da presença portuguesa na Guiné. Perencia ao QG/CTIG. Era o chefe dos serviços de contabilidade.

Foto: © Albano Mendes de Matos (2008). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do Ten. Coronel Albano Mendes de Matos:

Caro Camarada,

Vou enviar algumas notícias. Começo pelo último dia passado na Guiné-Bissau.

Não fui o último militar a sair da Guiné, fui também o meu próprio condutor. Emendo o escrito anterior. (*)

Foi um momento emocionante o meu último dia na Guiné-Bissau, em 13 de Outubro de 1974.

O pessoal que restava do meu serviço, Contabilidade, saiu para o aeroporto de Bissalanca, logo pela manhã, como quase todos os militares que ainda lá se encontravam. Levaram rações de combate para as refeições. Creio que com receio de algum acontecimento. Permaneci no local do meu serviço, para entregar as instalações e materiais às tropas do PAIGC, com guias de entrega e tudo, como estava combinado. Fiquei apenas com um jipe e um condutor, militar português, para me transportar do Quartel-General de Santa Luzia para Bissau e, depois, para o aeroporto.

Cerca das 11 horas, chegaram 6 negros, escoltados por uma secção das tropas do PAIGC, a pedirem os vencimentos a que tinham direito, porque tinham sido soldados portugueses. Tinham direito aos vencimentos de Abril a Dezembro de 1974, como fora acordado. Os ex-soldados portugueses tinham fugido para o Senegal após o 25 de Abril, porque tinham receio que os prendessem ou fuzilassem.

As famílias avisaram esses ex-soldados para se deslocarem a Bissau, para exigirem o pagamento. Eu tinha pedido à Emissora da Guiné para avisar todas as pessoas, militares e civis, e as empresas que tivessem a receber alguma coisa do Exército Português, que o comunicassem até, creio, ao dia 10 de Outubro [de 1974].

Interessante foi o caso de uma Casa de Instrumentos Musicais pedir o pagamento de 6 clarins que tinham sido fornecidos ao Comando Militar da Guiné... em 1940.

Disse aos ex-soldados que já não havia dinheiro e o tesoureiro já se encontrava em Portugal.  Responderam-me que eu queria era ir para Portugal gozar com o dinheiro deles. Levei-os à tesouraria e mostrei-lhes os cofres abertos, sem dinheiro.

Disse-lhes que poderia promover o envio do dinheiro, quando chegasse a Portugal, para a Embaixada na Guiné. Tomei nota dos números, nomes e da Unidade a que pertenceram. Entreguei-lhes uma declaração assinada por mim e pelo comandante da secção militar do PAIGC.

Em Novembro/Dezembro enviei o dinheiro devido ao 6 militares, não tendo conhecimento se o receberam.

Chegadas as 13 horas, sem que tivesse aparecido qualquer elemento do PAIGC, nem o meu condutor, como lhe havia dito, para me conduzir a casa de um locutor da Emissora, português que ficou na Guiné, para almoçar. Com uma pequena mala, resolvi ir, a pé, para o forte da Amura, junto ao Cais do Pindjiguiti, onde tinha a minha bagagem.

Quando, na estrada, me preparava para caminhar, surgiu um jipe com um militar do PAIGC, mulato, de meia-idade, que me disse:
- Camarada, para onde vai?

Contei-lhe o sucedido e logo se prontificou levar-me à Amura, mas que lhe ensinasse o caminho, porque só tinha ido a Bissau, durante a guerrilha, uma vez, de noite, ao cinema na UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau). Perguntando-lhe quem era, respondeu que era um comandante do Exército do PAIGC, que fora ver as instalações do Comando do Quartel-General, onde se iria instalar, ainda nesse dia.

Conduziu-me no jipe não à Amura, mas a um restaurante de um primo do meu condutor, português a quem o Governo da Guiné pediu para não sair, porque era o chefe da fábrica de descasque de arroz, situada numa ilhota, no rio Geba, em frente de Bissau.

Lá encontrei o meu condutor com uma grande bebedeira, não podendo conduzir o jipe. Disse-lhe que não se embebedasse mais, porque às 11 horas da noite tinha que estar junto do jipe, em frente do restaurante do primo, para irmos para o aeroporto.

Almocei e jantei na casa do referido locutor e andei pelas ruas e pelos bares de Bissau. Só encontrava guineenses que me cumprimentavam e desejavam boa viagem e muita sorte.

Dei por mim a olhar para as memórias portuguesas que ficavam por aquelas paragens: edifícios, estátuas, toponímia. E a recordar a história que me tinham ensinado, com navegadores, guerreiros, missionários e pacificadores.

Imaginei os primeiros portugueses a chegar àquelas terras.E eu, agora, o último a passear pelas ruas de Bissau, no fim do Império.

Estavam lá mais portugueses, o Governador e alguns militares, mas não saíam à rua. Às 23 horas, foram sob escolta para o aeroporto. Também estava um navio com um Batalhão nas proximidades do porto, para zarpar quando o último avião da Guiné estivesse no ar, para a última viagem aérea de uma parte do Império.

Um pouco depois das 11 horas da noite [, do 13 de Outubro de 1974], dirigi-me para o jipe. O condutor estava melhor da bebedeira. Com ele estava o primo. Alguns negros param a olhar para nós. Aproximaram-se. O jipe arrancou. Os guineenses ficaram a acenar, de braços levantados. Descemos pela avenida principal, subimos pelo lado do campo de futebol.

Sentia uma sensação estranha. Já na estrada do aeroporto, olhei para trás. Duas lágrimas saltaram-me dos olhos, recordando o sangue português derramado naquelas paragens. Era estrangeiro numa nova nação.

Já perto do aeroporto, o condutor perguntou-me:
- Meu tenente, onde deixo o jipe?
– Atira-o para uma barreira!

Parámos à entrada do parque do aeroporto. Desci com a pequena mala. O condutor colocou uma sacola no chão, subiu para o jipe e conduziu-o até uma pequena ladeira, ao lado da estrada, um pouco antes do aeroporto, para onde o encaminhou com um pequeno empurrão.

No aeroporto, para entrarem no último avião da Guiné, estavam o Governador, o Comandante Militar, alguns militares coadjuvantes, oficiais, sargentos e meia dúzia de soldados.

Para apresentarem cumprimentos de despedida, chegaram alguns chefes militares do Exército do PAIGC e o Presidente da Câmara Municipal de Bissau.

Era o fim da colónia ou província portuguesa da Guiné, já independente desde o mês de Agosto.

Albano Mendes de Matos
[ten cor ref]

__________

Notas:

1. Adaptação do texto da responsabilidade de  vb [Virgínio Briote]

2. Albano Mendes de Matos: Comissões de Serviço em ANGOLA (Grupo Art 157/BArt 147 de 1961/63; ANGOLA (BArt 1469/CArt 1469 de 1965/68; GUINÉ (GA 7 e QG/CTIG - Secção de Milicias e Chefe de Contabilidade, 1972/74).

3. Artigo relacionado em

6 de Abril > Guiné 63/74 - P2725: O nosso Livro de Visitas (10): Albano M. Matos, o último Militar Português a abandonar a Guiné.

1 comentário:

Luís Gonçalves Vaz disse...

Sr. Tenente-coronel Albano Mendes de Matos:

Gostei de ler o seu artigo, aliás reconheci alguns momentos do Fim do Império Colonial Português nas Terras da Guiné Bissau,na sua pequena narrativa... apenas lhe queria perguntar se não se enganou na data, pois pelas minhas investigações e pela leitura de Relatórios do CTIG, o último dia dos nossos militares e respectivo embarque, foi no dia 14 de Outubro de 1974. Um dos últimos militares portugueses e com grande responsabilidades na "RETIRADA FINAL", bem como na coordenação da "Retracção do nosso Dispositivo Militar" no TO da Guiné, foi o meu falecido pai, coronel Henrique Gonçalves Vaz, último Chefe do Estado-Maior do CTIG. Segundo sei, foi como diz o meu caro, pelas 23 horas mas no dia 14 de Outubro de 1974, e no mesmo dia saíram vários navios da Armada a ecoltar o navio Uíge que levou os últimos Batalhões de militares portugueses. Agradecia que visitasse o meu "post" sobre o mesmo assunto, neste mesmo Blog e comentasse por favor, a saber: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/02/guine-6374-p9535-os-nossos-ultimos-seis.html#links

Os meus cumprimentos:

Luís Gonçalves Vaz

(Filho do último CEM/CTIG, corone