Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Gandembel, terra maldita que os próprios guineenses não quiseram ocupar, depois da guerra...
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Ponte Balana > 1 de Março de 2008
Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
1. Texto enviado pelo Zé Teixeira, em 11 de Abril último. Recorde-se queo nosso Zé Teixeira foi 1.º Cabo Enfermeiro, na CCAÇ 2381( Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70). E deixou-nos um notável documento, escrito, com as notas do seu diário, já publicadas na 1ª Série do nosso blogue: vd. poste de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi.
Uma Carta para o Idálio Reis, Hugo Guerra e seus camaradas de Gandembel
Bons amigos e camaradas.
Após este meu regresso à Guiné (1), aquela, que vós conhecestes tão bem, desde Aldeia Formosa a Guileje, tenho passado um tempo em reflexão e a saborear os belos e excelentes momentos que lá vivi, revivendo outros que em tempos idos foram bem dolorosos.
Claro que durante a minha estadia, por aquelas paragens, todos vós, meus companheiros de algumas jornadas, quer a caminho de Gandembel, quer em Buba na construção da nova estrada para Aldeia Formosa, estiveram bem presentes na minha memória. Recordei também a Companhia dos lenços azuis que connosco partilhou momentos bem difíceis na aventura que nos foi comum.
De Aldeia Formosa em diante até Gandembel, parece que nada mudou. Até algumas árvores ainda lá estavam, apesar da picada ter sido deslocada em alguns sítios, sobretudo a partir do cruzamento de Mampatá, agora um pouco mais atrás, em Bacar Dado e na Chamarra.
A seguir a Chamarra, a recta que nos leva a Changue Laia, lugar de tão tristes recordações, lá estava, agora cheia de moranças com gentes e terrenos de cultivo. Depois vem uma pequena subida e uma ligeira curva. A curva fatídica onde estavam os buracos dos fornilhos e o campo de minas. Agora gente e mais gente sorridente a dizer-nos adeus. As crianças a correrem atrás da viatura sem medo das minas que lá foram outrora semeadas.
Ponte Balana lá no fundo, a dar-nos passagem, sobre o rio de água límpida. Seguiu-se Gamdembel. Lá estava o pequeno desvio da picada e a porta de armas.
Em cima dos restos dessa caserna, eu recordei, com carinho, todos os que ali viveram, por ali passaram, ali sofreram e sobretudo os que deixaram o seu sangue regar aquelas terras. Das poucas terras, onde ainda ninguém da Guiné ousou voltar e transformar num espaço de vida humana.
Ali deixei uma pequena planta que me acompanhou desde o Porto (2) e por lá ficará, espero eu, por tempos sem fim a relembrar aos vindouros que ali se travaram duras lutas de sobrevivência. Ali, muita gente viu a morte à sua frente, muitos de vós pensaram, quantas vezes ,que não sairiam de lá vivos.
Acto simples, extremamente simbólico. Tal como prometera um dia Tabanca Grande ao escrever sobre a vossa aventura.
Devo dizer-vos que este meu desejo foi acarinhado por todos os que de algum modo estavam envolvidos na dinâmica do Simpósio, a quem devo um profundo agradecimento.
Como compreenderão, não consigo passar ao papel o que senti. A emoção tomou posse de mim. As pernas tremiam-me, a boca recusava a emitir as palavras que saíam do coração.
Pude, pela primeira vez, pisar sem medo, aquele espaço, andar por cima das pedras que vocês arrastaram e levantaram umas em cima de outras para construírem os abrigos da vossa salvação.
Seguiu-se a picada para Guiledje. Com muita alegria vi, umas centenas de metros adiante a primeira tabanca de gente que acabada a guerra se instalou naquelas terras. Dali até Guileje, tal como da Chamarra a Ponte Balana, um e outro lado da picada – O carreiro da morte ou o Caminho da liberdade – está cheia de tabancas, de vida (3). Caminho que em tempos ainda vivos na nossa memória, cheirava a pólvora e a morte e só ao pensar que por imperativos de ordem superior se tinha de pisar, era suficiente para se encomendar a alma a Deus e pedir a sua protecção.
A picada levou-nos até Guileje, terra que também foi vosso abrigo e daí a Imberém, até às margens do rio Cacine, mais propriamente Canamine. Antes pudemos visitar no interior da mata do Cantanhez o local onde esteve sediado uma base inimiga, comandada pelo Oswaldo Vieira (4). Através de pequenos jogos cénicos foi-nos dada a possibilidade de apreender algumas das técnicas e estratégias dos guerrilheiros na sua luta pela independência.
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Restos do nosso aquartelamento...
Fotos: © José Teixeira (2008). Direitos reservados.
Por fim, com alguns companheiros de jornada fui visitar Cabedú [vd. próximas notas soltas] e participar na inauguração de um fontenário de água límpida, tirada de um poço através de um motor alimentado a energia solar, numa tabanca que desde há trinta e cinco anos, ou seja desde que a tropa branca os abandonou, não tinham água corrente própria para beber. Uma população, como se lembram com certeza do tempo das vossas andanças pela Guiné, comunicativa e expansiva, dava largas à sua alegria, cantando, e dançando por todas as terras por onde passamos.
Antigos combatentes, que ao nosso lado expuseram a sua vida tal como nós, numa guerra que hoje põe muita gente a interrogar-se: Para quê!?
Esses, como o Sóri Bari, o Mamadu Djaló e outro camarada, actualmente a viverem em Catió, donde partiram no dia anterior para participar na festa e localizar antigos companheiros brancos que a seu lado lutaram e também os filhos dos que perderam a vida, casos do Alfa Baldé, filho do Aliu Baldé de Mampatá e a Cadidjatu Candé, filha do Davo Candé de Quebo (este, assassinado no pós-guerra, por se ter batido pelo lado errado) (4).
O Sóri Bari, foi meu conterrâneo em Mampatá e o Mamadu Djaló mais o seu outro companheiro (Este andou trinta e dois anos fugido no Senegal) cruzaram-se comigo e convosco em Buba nos trabalhos da estrada.
Será que conseguis imaginar a alegria que estes homens deixaram transparecer no seu rosto, quando descobriram gente que palmilhou aquelas terras com eles! Eles que vieram de tão longe a pé à procura de dgenti amiga! E eu como me senti! Foi mais um grande momento de alegria e emoção indiscritível.
Mas havia também outro tipo de combatentes, muitos mesmo, que do outro lado da barricada se bateram contra nós, atacaram Guiledge, Gandembel e Balana, como o Maunde Baldê que em Agosto de 1968 me atacou em Mampatá em plena hora do almoço, com vontade de nos apanhar à mão, conforme escrevi no meu diário.
Novembro, 1968 / Mampatá /3
O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.
De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.
Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos caro.
Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.
Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com eles junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mauser a tentarem forçarem a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois... foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o chocolate do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou
Onze tabancas ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro (apenas 2 sacos de soro). Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela Tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.
Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas? Ataque combinado?
Notamos que o catequista muçulmano saiu de manhã cedo para bolhanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.
O Maiunde Baldê, ao aperceber-se que eu estivera em Mampatá, perguntou-me se em Novembro de 1968 estaria lá. Ao confirmar que sim, ele retorquiu: -Eu estive lá e fui dos que entrei para dentro do arame farpado, mas tive de fugir para não morrer. Vocês estavam cercados, mas não nos deixaram entrar...
Seguiu-se um abraço apertado de agradecimento a Deus por termos escapado e estarmos os dois vivos.
Muito interessante, no mínimo, foi o diálogo que mantive com um grupo de fulas, que fizeram a sua luta pela independência, na mata do Cantanhez e se encontraram comigo em Bissau durante as Conferências do Simpósio. Cruzaram-se convosco em muitos ataques a Gandembel e nas emboscadas que fizeram a vocês e a nós na estrada de Quebo/Gandembel.
Um deles, o Braima Camará, mostrou-se muito interessado em saber se eu tinha ida na coluna em que tivemos de levantar muitas minas, entre Chamarra e Ponte Balana, junto a uma bolanha (Changue Laia) em Agosto de 1968.
Felizmente não fui nessa coluna, mas foi muito grave o que se lá passou e o que aconteceu uns dias antes com a Companhia estacionada em Gandembel, que ao cair no campo de minas teve de retirar, levando creio que cinco mortos, retorqui.
- Pois... eu era sapador e recebi ordens para colocar essas minas! - disse-me, com um ar misto de culpado e de alegria por saber que eu não estivera lá.
O regresso de Imberém para Bissau ficou marcado pelas despedidas afectuosas daquelas gentes simples. Abraços e beijos não faltaram, pedidos para voltarmos, corridas atrás da viatura, Enfim. Pelo caminho – carreiro da morte – agora cheio de vida, com tabancas por toda a margem. Crianças e adultos, na berma gritavam portu, portu e acenavam dizendo adeus.
Imaginem, em pleno interior da Mata do Cantanhez, um missão de fransciscanos italianos com uma pequena fábrica de descasque de castanha caju!
Passamos Gandembel em silêncio e deparamos com Balana cheio de vida. Naquele bucólico lugar, o silêncio imperava. Duas jovens mulheres, vestidas estranhamente como era seu costume há quarenta anos atrás, lavavam a roupa de seus filhinhos debaixo da ponte. Desci até lá, fui recebido com sorrisos. Uma deles correu para mim, deu-me um beijo e disse: - Anda ver o poço. Uns metros ao lado estava o poço que suponho foram vocês que o construíram. Postou-se junto ao mesmo e ficou à espera que eu tirasse uma fotografia. Com um grande sorriso deixou-se abraçar, como que a dizer, vai em paz. A vida voltou a esta terra...
Muito mais há para dizer, mas não quero abusar da vossa paciência.
Um fraternal abraço deste camarada e de algum modo partilhou um pouco da vossa aventura na Guiné e teve a graça de lá poder voltar para rever terras e gentes, re(viver) cenas marcantes para a sua vida em plena juventude e viver grandes momentos que me acompanharão até ao fim da vida.
Podeis crer que nada do passado foi esquecido, bem pelo contrário, foi reavivado, mas esta visita permitiu-me afastar os fantasmas que me perseguiam. Agora tenho a visão de uma Guiné diferente, sem medos ou fantasmas, com vida pujante.
Continua pobre como era, talvez mais ainda, mas rica, muito rica nas pessoas com valores humanos, alegres, expansivos, solidários e sobretudo amorosos.
Zé Teixeira
_________
Notas dos editores:
(1) Vd. postes anteriores:
21 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2669: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (1): Desta vez fui voluntário e estou em paz comigo próprio
23 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2676: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (2): Um abraço de ermons e (más) recordações do Comandante Manecas
29 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2698: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (3): O Abdulai Djaló
(2) Vd. poste de 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel
(3) Vd. postes de:
16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje
17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)
17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)
(4) Vd. poste de 23 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2790: Quem pode ajudar a filha do nosso camarada Aliu Sada Candé? (José Teixeira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 6 de maio de 2008
Guiné 63/74 - P2814: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (4):Carta ao Idálio Reis, ao Hugo Guerra e aos seus camaradas de Gandembel
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