quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3325: O meu baptismo de fogo (11): Mampatá, 20 de Fevereiro de 1973 (António Carvalho)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (*), ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 14 de Outubro de 2008, com a narrativa do seu baptismo de fogo (**).

Caro Carlos Vinhal,
Daqui te saúdo com muita amizade.

Uma vez mais peço que leias um testemunho meu dos tempos da Guiné e se o considerares interessante faz o favor de o publicar no nosso blogue.

Cordiais cumprimentos,
António Carvalho
Fur Mil Enfermeiro
CART 6250
1972/1974
MAMPATÁ (Forreá)


2. Caros Camaradas da Tabanca Grande

É a segunda vez que escrevo para o nosso blogue. Antes de mais deixem-me dizer-vos que, cada vez mais, entusiasmo-me com os textos que vou diariamente lendo, nesta janela propiciadora de revivências de um tempo doloroso. E sendo certo que me faz bem ler os relatos dos outros, depreendo que farei bem aos outros, ao descolar da minha memória, momentos marcantes daqueles tempos e, com a maior objectividade possível, torná-los conhecidos por todos aqueles que comungaram daquele cálice.

Tendo sido Fur Mil Enf, não sairia para o mato, por princípio, muitas vezes. Mas saí algumas vezes, como naquele dia 20 de Fevereiro de 1973. Não sei agora porquê, pois tratou-se de uma saída a nível de um único grupo de combate. Estaria o cabo enfermeiro doente? De férias? Não sei. Sei que saímos para fazer segurança aos trabalhos de desmatação, no âmbito da construção da estrada Aldeia Formosa-Nhacobá, com passagem por Mampatá, Colibuia e Cumbidjã. Nesta fase já a asfaltagem tinha chegado a Colibuia e já tínhamos fixado dois grupos da nossa companhia nesta localidade, primeiro em tendas e mais tarde em barracas de chapa de bidões.

Guiné > Região de Tombali >Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Fase da construção da estrada, quando a mesma passava em frente à escola de Mampatá

Foto e legenda: © José Manuel (2008). Direitos reservados.


Saímos então de Colibuia ou de Mampatá e, depois de termos atravessado a área desmatada, quando procurávamos o local para montarmos o sistema de vigilância e protecção aos trabalhos da Engenharia, abriu-se um fogachal sobre nós que, nos primeiros segundos, pôs toda a gente de barriga colada ao chão. Logo de seguida ouço gritos:
- Estou ferido!... Oh Furriel estou ferido!... - Era o António Carola do Nascimento, 1.º Cabo Apontador de Morteiro.

Berrei-lhe:
- Faz fogo caralho... senão morremos aqui todos... se estivesses ferido não falavas.

- Estou ferido estou... tenho estilhaços nos colhões.

E os rockets deles a estourar por cima das nossas cabeças. Para sorte nossa, muito altos, projectando estilhaços para todos os lados à mistura com folhas de árvores. Eu estava a cerca de 10 metros à direita do Nascimento e outros tantos metros do camarada que tinha algumas granadas de morteiro. Então arrastava-me da direita para a esquerda para municiar o apontador. Ele - o Nascimento - teve que adiar o tratamento para depois e entregar-se com unhas e dentes à prioritaríssima tarefa de mandar morteiradas para a direcção de onde vinha ferro quente.

Entretanto o Pel Caç Nat 68 comandado pelo guerreiro Fur Gomes vem em nosso auxílio e o Ussumane Buaró chegado perto de mim, carrega-me nos ombros e obriga-me a deitar, com estas palavras que nunca mais esquecerei:
- Deita, deita Furriel, tu estás ferido.

Era um ferimento sem qualquer importância, com também o dos três camaradas que apanharam com estilhaços. No meu caso, um pequeno estilhaço, no dedo mínimo da mão esquerda, foi quanto bastou para ficar com todo o antebraço tingido de vermelho o que levou o generoso e amigo fraterno Ussumane Buaró a julgar-me gravemente ferido.

Posicionou-se ele, de pé, a fazer fogo de dilagrama, atrás de mim. Obrigado Ussumane. Se e quando for à Guiné procurar-te-ei para te abraçar. Se já não te encontrar procurarei o local dos teus restos e aí, de olhos postos no horizonte, perante a omnipresença do Criador Supremo, derramarei, nesse chão, lágrimas de gratidão e saudade.

Foi este o meu baptismo de fogo, com participação directa, em confronto com o então IN, hoje povo irmão.

E hoje fico por aqui.


2. Comentário de CV:

O António Carvalho, que vive em Gondomar, para quem não se lembra, foi Fur Mil Enfermeiro e, tal como o nosso Zé Teixeira, esteve em Mampatá. Ambos fazem parte da Tertúlia de Matosinhos que monta emboscadas semanais na Rua Heróis de França, em Matosinhos.
_______________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3200: Tabanca Grande (86): António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250 (Mampatá, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3316: O meu baptismo de fogo (9): Missirá, Cuor, 6 de Setembro de 1968 (Beja Santos)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro amigão Carvalho.
Creio que o Ussumane está no Saltinho e já tive o prazer de o abraçar.
nvsda

Anónimo disse...

Camarada,Amigo,Vizinho (na Guiné),
Como periquito que sou no nosso blogue, vou, paulatinamente, lendo todos os muitos e ricos textos que são postos à nossa disposição.Hoje passei pelo dia 16 de Outubro de 2008 e ao ler o teu relato a propósito do teu baptismo de fogo, consultei a história da minha guerra e lá vem referido que " no dia 20 de Fevereiro de 1973 um grupo IN estimado em 20 elementos,emboscou com morteiro 60 e armas automáticas os grupos de combate que seguiam para a frente de trabalhos.Do reencontro resultaram três feridos ligeiros para as N.T."
A estrada por esta altura estava perto de Colibuia, portanto vocês deviam ter saído de Mampatá.
Até finais de Fevereiro, Aldeia foi atacada a 22 com canhão 85 de duas bases distintas e a 26 um moço da C.Caç.3399( do Capitão Malheiro) accionou uma mina anti pessoal sofrendo graves ferimentos.
Um grande abraço e até um dia destes na Tabanca de Matosinhos,
Vasco da Gama