1. Mensagem do nosso camarada Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71 (*)
Caro Luís Graça,
Com o meu pedido de desculpas por ocupar este espaço, que estará mais adequado às histórias dos nossos camaradas operacionais, atrevo-me a relatar à Tabanca, o meu baptismo de fogo (**).
É o baptismo de fogo de um furriel enfermeiro, destacado no Posto Escolar.
No final de 1969, Aldeia Formosa era um lugar pacífico. Situação que se manteve até 20 de Março de 1970. Por vezes, à noite, ouviam-se uns rebentamentos, mas sempre à distância, mais para sul.
Até que um dia, há sempre uma primeira vez para tudo, o Pelotão do Alf Martins sofreu três emboscadas de que resultou um milícia morto (roquetada no tórax) e cinco feridos ligeiros.
Terminei as aulas mais cedo para que os alunos não assistissem à chegada do pelotão com os feridos e o morto e dirigi-me para o posto médico. Enquanto a equipa de saúde tratava dos feridos, o Keba Sanhá entregou-me o morto que tinha transportado às costas, embalado num pano de tenda. Missão: utilizar uma maca como suporte para recolocar cada órgão no seu lugar, de forma que o corpo fosse entregue à familia para efectuar o funeral.
Duas horas depois, com muito trabalho, silêncio absoluto, algumas lágrimas, a missão estava cumprida.
A vida continuou e passadas quatro semanas, a 18 de Abril [de 1969], nova emboscada: dois soldados mortos. (Os primeiros e únicos mortos em combate, da CCaç 2615).
Desta vez fui "poupado" pela equipa de saúde e fiquei livre para dar apoio moral ao meu amigo Jorge Leitão, furriel de Operações Especiais, a imagem da raiva e do desespero, sem encontrar explicação para o que lhe tinha acontecido.
O ambiente ficou pesado. As conversas na messe e nos quartos giravam sempre à volta do mesmo assunto. Finalmente, aos seis meses de comissão, tinha começado a guerra.
(Na noite de 22 para 23 de Abril, tive um sonho/pesadelo. Eu, que dormia sempre tranquilamente, acordei em sobressalto. Nesse sonho, surgia um avião IN, voando baixo, com um foco de luz para localizar os alvos. E onde é que eu me protegi contra o avião? Nos abrigos de Aldeia Formosa? Não. O meu esconderijo era um tanque/piscina, protegido por uma frondosa nogueira, numa quintinha, com uma casa amarela, que ainda hoje existe, perto do antigo CISMI, na estrada Tavira/Santa Luzia, onde eu passei as férias de verão de 1962.)
Entretanto, a vida no quartel de Aldeia Formosa continuava com uma rotina de paz. Até o corneteiro tocava para o almoço. E no dia 23 de Abril de 1970, poucos minutos depois das 11h30 começou o toque para o primeiro turno ir almoçar. Quase em simultâneo o IN inicia o ataque ao quartel, com armas ligeiras e pesadas, muito perto do início da pista de aviação.
Corri para o abrigo com uma turma de cerca de trinta alunos, previamente treinados.
A resposta das NT foi um pouco lenta, pois naquele momento, mais de metade do efectivo estava de marmita e não de G3.
Lembro-me de ouvir o Alferes do Pelotão FOX gritar: Vou fazer tiro directo... e pensei que com o Obus a disparar, a situação estava controlada. E assim aconteceu...
Foi um baptismo duro. Senti alguma raiva por saber que o IN estava ali tão perto, mas já estava preparado... e depois, aquele sonho/pesadelo alertou-me ainda mais para a possibilidade de acontecer algo semelhante...
Concluindo, o baptismo foi a única vez que estive debaixo de fogo. Durante toda a comissão, não tive oportunidade de disparar um único tiro. A última vez que disparei a minha G3 foi, algures, nos arredores de Évora, um tiro certeiro, como deve fazer um bom atirador, para destruir o prato que tinha utilizado na semana de treino.
A minha missão nesta guerra... foi de paz.
Um dia destes eu escrevo mais um capítulo.
Um Abraço
Manuel Amaro
Fur Mil Enf
CCAÇ 2615
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. postes de 22 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3223: Convívios (85): Pessoal da CCAÇ 2615, no dia 18 de Setembro de 2008 em Benavente (Manuel Amaro)
29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2895: Tabanca Grande (72): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2895 (Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71)
(**) Vd. poste de 16 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3325: O meu baptismo de fogo (11): Mampatá, 20 de Fevereiro de 1973 (António Carvalho)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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