sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3328: Memórias literárias da guerra colonial (7): O baptismo de fogo de A. Graça de Abreu, em Cufar, aos 17 meses (Luís Graça)

Guiné >Região de Tombali > Cufar> O António Graça de Abreu, no aeroporto de Cufar, em Dezembro de 1973, posando junto a umn heli, Allouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades dos arame farpado... Dezete meses depois do início da comissão, o António recebia finalmente o tão desejado quanto temido baptismo de fogo. Recorde-se que o António Graça de Abreu foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74)

Foto: © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.


1. Com muita graça e alguma ironia, dizia há dias o Graça de Abreu que ele, na Guiné, tinha pertencido à "sacrossanta administração militar" (*) ... Tudo isto por que nunca se ter considerado "propriamente um operacional", muito embora estivesse integrado num comando de agrupamento operacional (CAOP1, localizado sucessivanente em Canchungo, Mansoa e depois Cufar, 1972/74).

Escrever um diário (secreto) aos 25 anos e decidir depois publicá-lo aos 60, é um acto de coragem mas também de grande maturidade humana e de honestidade intelectual. Não se trata de memórias, reconstituídas (e reconstruídas) muitos anos depois. Aqui é-se confrontado com factos e emoções em primeira mão. Aqui um homem faz strip-tease, desnuda-se, expõe-se em público... Não dá para fazer maquilhagem.

No seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Águi Pura (Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp), o António revela e revela-se. Os seus leitores passam a saber muito mais coisas dele e sobre ele, relativos ao período da sua vida entre os 25 e os 27 anos, incluindo aspectos da sua vida íntima, para além da sorte e do azar na guerra e da sua vida e da vida dos seus camaradas, no dia-a-dia, no TO da Guiné, entre 22 de Junho de 1972 (quando chegou a Bissau) e 17 de Abril de 1974 (último dia em que escreveu o seu diário, na véspera do regresso a Lisboa, uma vez finda a comissão).

Na realidade, o António era um aspirante a oficial miliciano, com a especialidade de atirador de infantaria, e curso de dois meses de minas e armadilhas, que chegara a estar mobilizado para a Guiné (CCAÇ 3460 / BCAÇ 3863)... Só que à última hora teve de ser operado a "uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito" (pp. 53/54). Como consequência, foi reclassificado, por razões médicas, em "Secretariado, Serviço de Pessoal"... e desmobilizado. Nunca mais pensou no raio do Ultramar! Na época, era a Sorte Grande, a Taluda, o Euromilhões, para jovens como nós!...

Ficou, entretanto, como alferes amanuense, no Regimento de Infantaria 1, na Amadora, no batalhão de mobilização... Mas não há bela sem senão: acontece que o nosso camarada, ao fim de 2 anos de tropa, na Metrópole (tinha entrado em Outubro de 1970), tem o azar de voltar a ser mobilizado... e novamente para a Guiné... E desta vez para um CAOP.

Não ficou em Bissau, na guerra do ar condicionado - como dizíamos nós, operacionais, com desprezo, por quem ficava no back office, no bem-bom, "longe do Vietname" - foi para o mato, "um mato mais dócil, mas mato" (p. 16), chefiar uma secretaria... E ei-lo, em 26 de Junho de 1972, "sentado à minha santa secretária de guerra, com uma ventoínha por cima a refrescar"...
- E quanto a 'embrulhanço' ? - pergunta o leitor, curioso e já algo impaciente e incrédulo.

O tempo flui, corre, escoa-se, enquanto tudo, à volta, parece embrulhar (um termo que é,de resto, caro ao nosso autor), e o homem lá se vai prepando psicológica, mental, fisica e logisticamente para o inevitável baptismo de fogo ...

Passa o tempo de Cachungo (até 1 de Fevereiro de 1973) bem como o tempo de Mansoa (de 3 de Fevereiro até 19 de Junho de 1973)... Passam-se os meses e até o primeiro ano, e nada de baptismo de fogo. Claro, há a guerra ali tão próxima, os camaradas feridos e mortos... no mato. O nosso catecúmeno veio, ainda virgem, à Metrópole, de férias (sortudo, por duas vezes, primeiro em Novembro/Dezembro de 1972 e depois em Abril de 1973), até ser mudado, de armas e bagagens, para o temível sul... Ele e o seu CAOP1.

Cufar... "É melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações" (25 de Junho de 1973, p. 121)... E foi verdade: passaram-se os meses, aproximava-se o ano da peluda (1974), e nada! O nosso alferes já se resignava a voltar para casa, sem o retemperador, iniciático, imprescindível baptismo de fogo... Até que... a coisa aconteceu (p. 159)...

Fica aqui o relato dessa cena - a sua primeira vez, debaixo de fogo - na primeira pessoa do singular. Espero que o António me perdoe o atrevimento, quiçá o abuso. Quis-lhe fazer uma pequena surpresa e, de certo modo, um homenagem, uma pequena homenagem.

Ele merece: além de ser actor, foi um observador participante, disciplinado, atento, informado e honesto da realidade político-militar do TO da Guiné, na fase terminal da guerra (estará em Cufar, no sul, até ao início de Abril de 1974)... Mesmo em condiçõs adversas, soube manter e escrever regularmente o seu diário e sobretudo conseguiu transmitir-nos (até agora, como ninguém, com grande riqueza de detalhes) o quotidiano, intra-muros, de três importantes aquartelamentos, em três regiões distintas - Canchungo (norte), Mansoa (centro) e Cufar (sul), que foram sede de comando de agrupamento operacional (CAOP).

Fá-lo com talento literário, mas também - e não menos importante - com sensibilidade, solidariedade, portugalidade, compaixão e sentido de humor. Embora situando-se, na época, politicamente à esquerda, o António não permite que as suas observações sobre a Guiné, a guerra, o PAIGC e as NT sejam deturpadas pelo viés ideológico... Recusa o estereótipo e o preconceito. É crítico em relação às suas fontes de informação. Não embandeira em arco (seja a favor do PAIGC, seja das NT).

Depois de viajar pelo mundo (e sobretudo pela China, que é a sua segunda pátria), o António regressou um dia, "lavando a alma na espuma das lágrimas", e em boa hora decidiu "desenterrar" o seu diário e os seus aerogramas, para fazer contas com o passado e partilhar connosco "o quotidiano da guerra da Guiné", numa época em que o PAIGC já usa contra nós meios tecnológicos da guerra convencional (morteiros 120, foguetões 122, mísseis terra-ar...).

De referir, ainda, que em Cufar o António conviveu (e fala desse convívio com apreço e amizade) com gente de outras unidades, de que destaco o Pel Int 9288 (representado na nossa Tabanca Grande pelo ex-1º Cabo António Baia) (**) e a açoriana CCAÇ 4740 (também muito bem representada, entre nós, pelo António Manuel Salvador, igualmente ex-1º Cabo Enfermeiro).

Mas demos à palavra ao nosso autor:

Cufar, 14 de Novembro de 1973

Vieram os 'jactos do povo', como os guerrilheiros lhes chamam. Gostei, desta vez não apontaram aos vizinhos do lado, era connosco e, como costuma acontecer, tivemos sorte. Foram disparados oito foguetões 122 e só rebentaram três, a mais de quinhentos metros de Cufar.

Eram oito da noite, eu estava no gabinete do capitão a jogar xadrez com o Eiriz, o alferes das transmissões, quando ouvimos o silvo de um foguetão e um primeiro rebentamento. Saltámos rapidamente para a vala situada ao lado do edifício onde já havia gente abrigada, caímos uns por cima dos outros e ficámos quietinhos, à espera. Uns dez minutos depois, porque não havia mais foguetões, saímos da vala, não muito assustados. Foi um ataque pequeno, daqueles que só servem para criar insegurança e medo.

O médico, o Bastos [, um antigo condiscípulo do Porto, no tempo do Liceu D. Manuel II], ficou por baixo de uma molhada de alferes e saiu da vala zangadíssimo, agastado com o Miguel Champalimaud (sobrinho do António Champalimaud, o 'tio Patinhas' português). O rapaz caíra-lhe em cima e, com os foguetões a rebentar, o Miguel peidara-se, cagara-se como um rei por cima da cabeça do Bastos. Uma cena de antologia digna do Chaplin, do 'Charlot nas Trincheiras da Guiné'.


Feitas as contas, nos últimos oito meses, o IN havia flagelado vários aquartelamentos na região, por diversas vezes. Retomando o diário do António(15 de Novembro de 1973, p. 159), "Catió 'embrulhou' seis vezes, o Chugué vinte, Cobumba doze, Caboxanque quatro, Cadique dez, Cafal quinze, Cafine catorze, Bedanda onze e Cufar apenas três".

Comparado com os vizinhos, os de Cufar podem dar-se por felizes, resume o António: "Não nos podemos queixar, somos uns privilegiados, vivemos no buraco mais seguro do sul da Guiné".

O António não perdeu o sentido do humor, depois desta primeira (ao que parece, se bem li o seu diário com atenção) experiência de contacto com o IN, na realidade, uma vulgar flagelação, à distância. Mas que metia respeito, metia... E por que não medo, como o António admnite explicitamente ? Se não sentíssemos medo, nunca poderíamos avaliar, correctamente, as situações de perigo, e decidir em conformidade "lutar ou fugir"...Foi o medo (e não a temeridade) que nos transformou em espécie biológica bem sucedida, em termos evolutivos. Foi o "flight or fight" que nos deu as competências para lidar com as situações de vida ou de morte, de risco, de perigo...

O nosso escritor aproveita, então, a seguir, a oportunidade para descrever, com muito humor, os apuros em que andou o "meu tenente-coronel B", periquito, aquando da flagelação a Cufar. Ele não assistiu à cena, mas socorre-se do relato, divertidíssimo, em primeira mão, dos "meus soldados" [do CAOP1] que foram testemunhas presenciais (pp. 159-160).

Cufar, 15 de Novembro de 1973

(...) Aos primeiros rebentamentos, o tenente-coronel atirou-se para a vala mais próxima do seu quarto. Vinha em tronco nu, só tivera tempo de vestir as calças. Já havia soldados abrigados e chegaram mais nuns tantos que se atiraram de cabeça para dentro da vala caindo aos molhos em cima do tenente-coronel.

A vala, além de enlameada, albergava um formigueiro de formigas baga-baga, uns bichos quase do tamanho de um dedo que trepam pelo corpo e mordem, têm umas pinças tipo caranguejo que espetam na carne e fazem sangue. Ora no fim do ataque, o pessoal começou a sair da vala, o tenente-coronel foi um dos últimos e guinchava de dor. Caíra e permancera mais de um quarto de hora em cima do formigueiro das baga-baga. As formigas haviam-lhe entrado pelas calças, subido até aos testículos e mordiam-no todo. Tinha ainda formigas espetadas nas costas. O nosso Chefe de Estado Maior metia pena. Tirara as calças em frente aos soldados e, em cuecas, com gritos de dor, uma a uma, ia arrancando as formigas que estavam cravadas no seu corpo. Tratou-se de uma cena nunca vista nos aerópagos da guerra" (...).


São cenas de guerra como estas que ficaram na memória daqueles homens e que eles um dia contaram (ou hão-de contar) aos seus netos...

Mas, depois disso, houve mais embrulhanços em Cufar, no tempo em que ele lá esteve (pp. 164-165):

Cufar, 26 de Novembro de 1973


" 'Embrulhámos' outra vez e hoje foi mais teso, mais duro. Os guerrilheiros atacaram apenas a um quilómetro de distância, a coisa foi rápida, uns dez minutos de fogo, a típica flagelação, o dispara e foge, mas palavra, desta vez tive mais medo, até porque me estreei a ver as granadas de RPG deixando o rasto luminoso, voando não para um qualquer aquartelamento nosso vizinho, mas em direcção a mim e rebentando não muito longe da minha cabeça. Não dá conforto nenhum" (...). (Negritos meus, LG).

O António consulta o calendário e conta os riscos que faltam para a peluda:

(...) "Faltam-me três meses e vinte e oito dias para terminar oficialmente a comissão. Agora, nestes últimos quinze dias, fomos flagelados por duas vezes. Não estou a gostar. Quantos ataques me esperam ainda ? É aguentar e cara alegre! Os guerrilheiros não me vão propriamente dar um enorme pontapé no cú e fazer com que eu entre de jacto pelas bocarras do inferno" (...)

Houve uma terceira flagelação a Cufar, de novo com foguetões 122, em 4 de Dezembro de 1973, às 9h15 da noite (p. 166)... Até que chegou o ano da peluda.

A 4ª flagelação a Cufar foi no dia 20 de Janeiro de 1974, às 10h da noite... O PAIGC fez questão de assinalar, em toda a região sul, o 1º aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, atacando Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué e Catió, além de Cufar. O António lia a revista Vida Mundial e ouvia uma cassete com o Concerto de Aranjuez, do espanhol Joaquim Rodrigo. No momento do ataque, teve a brilhante ideia de gravar, por cima, outra música, esta de guerra, como ele nos conta no seu diário (21 de Janeiro de 1974, pp. 186-189) (***).

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3276: Memórias literárias da guerra colonial (3): O poder na ponta das espingardas, segundo A. Graça de Abreu (Parte I) (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

(***) Vd. poste de 6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

Ficheiro áudio com ataque a Cufar, 20 de Janeiro de 1974

Junto envio também uma transcrição de um ataque no dia 20 de Janeiro de 1974 e também um link com o ficheiro audio com o respectivo ataque.

http://pwp.netcabo.pt/0240632001/ataqueguine.mp3

Gostava muito de ver estes meus (nossos) textos no seu blogue da Guiné.
Abraço, António.

Cufar, 20 de Janeiro de 1974

(…)
Boum, boum, pum, catrapum, pum.
- Aí está, um ataque!...Caralho! Um ataque, foda-se!
Tá, tá, tá, tá, tá.
-Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...
Boum, boum…
-Tumba, um foguetão, caralho!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.
- Dá mais, Manel! Estamos a levar no coco, estamos a embrulhar, caralho!
Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
-Espera aí um bocadinho!
Boum…
-Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
-Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!...Espera aí um bocadinho, João…
Boum, boum…
-Estou-me a vestir, é preciso é calma!
Boum, pum, pum…
-Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.
Boum, boum…
-Estamos a embrulhar, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…
Boum, boum…
-Tumba, tumba, tumba!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...
-Espera aí. Eh, com um filha da mãe!
Boum, boum…
-Ah, grande embrulhanço! Manda mais, João!
Boum, boum…
-Toma lá mais!...
Tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, catrapum, pum, pum, boum, boum...
-Isto é a sério, isto não é a brincar.
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Olha p’rá aquilo! Porra, estamos a embrulhar, o que é preciso é calma!... Estou-me a vestir…
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Já estou vestido.
Boum, boum…
-Porra! Tumba, tumba, aí vem outra, aí vai outra!...
Pum, pum, pum, pum, boum, boum…
-Caralho!
Boum, boum, pum, catrapum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Porra, estão todas a cair p’ra ali, caralho!...
Tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá…
-Aí vêm outras. Eh, eh, eh! Já estou vestido.
Boum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Aí vem outra!
Pum, pum…
- Tumba! Devem vir mais.
Boum, boum…
- A lógica da guerra, pá, é impressionante! Eu estava aqui sossegadinho, pá, elas começaram a cair… Aí vêm mais, aí vêm mais!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum, catrapum, pum, pum…
- Deixei-me estar sozinho aqui no quarto, mas estou nervoso! Os nossos amigos estão a lembrar-se de nós!
Pum, pum…
- Tumba, tumba!
Boum…
- Ah, Cufar de um caraças!... Eh, eh! Guiné, Guiné, 20 de Janeiro de 1974!.. Ah, caraças!...
Boum…
- Isto é morteirada! Ora bem, deixa lá apagar a ventoinha. Só mandaram estas?...
Boum, pum…
- Aí vai outra! Aí vem mais! Isto agora são morteiradas nossas. Aí vai outra!
Boum…
- Já acabou o ataque?... Vamos embora, já estou cá fora!
(Meti o gravador ligado a gravar no bolso da perna direita do camuflado e fui ter com os meus soldados.)
Boum, pum, pum…
- Toma, toma, porra! Aí está!...
Estão bem?...
Boum, pum, pum…
(Voz de soldado):
- Se calhar a minha tabanca deve estar mas é toda fodida!
Boum…
(Confusão de vozes).
- Foda-se. São nossas ou são deles, caralho? Já acabou, os gajos?...
(Voz):
- São nossas.
Boum…
(Voz de soldado)
- Não gravou isto, meu alferes?
- Está a gravar, oh, homem, está a gravar esta merda!
Boum…
- Já acabou. Aí vai mais, caralho! Quem é que está aí metido na vala, deitado no buraco?
Boum…
(Confusão de vozes)
- Aí vai mais uma, toma lá mais fartura!
(Voz de soldado):
- Isto é RPG que rebenta no ar e rebentou uma canhoada.
Boum…
(Voz de soldado):
- A minha chinela, perdi a puta da sapatilha.
(…)
- Os gajos já pararam. Agora são só nossas. Os gajos já não estão a mandar nada, agora é o obus de Catió.
(Voz de soldado):
- Carrega-lhe, é o primeiro ataque do ano. Os cabrões atacam até acabarem as munições. Mas cuidado com os gajos no fim do ataque…
(…)
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado):
- Vê se encontram a minha sapatilha.
Boum…
- Oh, Loureiro (soldado condutor do nosso CAOP1), o que é que você está a fazer deitado no buraco?
(Soldado Loureiro):
- Estava entretido…
(Voz de soldado):
- Agora já acabou, mas pode vir ainda uma retardada, mas isso é pouca coisa.
(Voz de soldado):
- Eu vi o very-light no ar e depois, foda-se, foi sempre fogachal.
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado ):
- Olha se eu estivesse na minha tabanca lá em baixo, deve estar toda fodida…
(…)
(Voz de soldado):
- Alguém viu a minha sapatilha?...
Boum…
(…)
- Espera aí que eu vou mijar, estou a precisar!
(Voz de soldado)
- Oh, meu alferes, não mije para dentro da vala, caralho!
- Oh, pá, não faz mal.
(Voz de outro soldado):
- Ora, um gajo, num ataque, mesmo com merda e mijo, e tudo, vai!
Boum…
(Voz de soldado):
- Eu perdi a minha sapatilha, isso é que foi o caralho!

3 comentários:

Anónimo disse...

Mas isto é um baptismo de fogo? mais parece um diário de Guerra.
Um abraço.
Colaço

Anónimo disse...

Estive em Cafine nessa altura ( e foram bem mais que 14 embrulhanços). A minha companhia estava distribuida por Cafine, Cafal Balanta e Cobumba. Ainda hoje, nos convívios anuais, os meus camaradas de Cobumba relatam histórias do tal sobrinho do Champallimaud (o rei da lerpa).
Um abraço
Vitor Cordeiro

Luís Graça disse...

1. Mail do António Graça de Abreu, que me foi enviado em 28 de Outubro:

Luís, caríssimo:

Desculpa só agora agradecer o teu texto sobre o meu baptismo de fogo. Foi uma boa surpresa
Há outros ameaços, estive quase a perder a virgindade, com micro-flagelações em Teixeira Pinto e junto a Mansoa, sem importância
Fazes-me uma LDG cheia de elogios que se calhar nem mereço. Mas o meu livrinho vale. E a gravação do ataque a Cufar também é invulgar. Tenho pena de só aparecerem dois comentários.

Hei-de retribuir o teu cuidado e amizade, se a oportunidade surgir.

Um grande abraço,

António Graça de Abreu

2. Comentário ao comentário:

Meu caro António: Não tens que agradecer. Foi um prazer ir à tua conferência e ouvir-te de viva voz... Infelizmente, não pude fazer mais vídeos da tua intervenção, por que me acabaram as pilhas e não tinha outras de reservas... (Imperdoável!). Mas valeu pela ideia teruliana de partilharmos uns com os outros os nossos escritos, as nossas memórias, os saberes e as nossas emoções, neste caso o teu livro, que é uma belíssima fonte de documentação sobre a nossa vida quotidiana em tempo de guerra...

Aquele abraço. Luís