1º Cabo Amílcar Mendes, 38ª CCmds. Mata de Morés. 1972.
(...) embora à distância de um clicar continuo a acompanhar o nosso blogue diariamente. Porque me emocionei com alguns relatos da "primeira vez" decidi, e por homenagem a um grande amigo, de quem irei falar mais tarde, partilhar convosco a minha primeira vez. Desta vez, e porque não quero melindrar ninguém, alguns nomes serão alterados.
Acho que a partir do momento em que me ofereci voluntário para os Comandos no já longínquo ano de 1969 fiquei a sonhar como seria a minha primeira vez.
Sonhava de olhos abertos e revia-me em todos os filmes de guerra. Imaginava-me o tipo duro que debaixo de fogo iria estar a rir-se e a desdenhar sem nenhum respeito pelo inimigo. Sonhava ser o tipo Mata todos e volta só!
Isto claro na minha ingenuidade dos 18 anos cheirava a bravata, e contagiado pelos relatos que ia lendo das tropas especiais que lutavam no Vietname e que me enchiam a cabeça de fantasia. Ser dos Comandos antes do 25 de Abril, no continente era tabu, era mistério e sedução para os meus 18 anos.Nem eu imaginava como ira ser diferente essa realidade.
Tenho que elucidar que, naqueles anos de guerra colonial, ir para os Comandos e conseguir sê-lo, obrigava a ter que passar por muitas etapas. Uma delas era de que mesmo com o curso de Comandos concluído e já na fase operacional, a especialidade Comando só era averbada depois de termos tido contacto com o Inimigo em teatro de guerra e nem que isso demorasse um ano tínhamos de aguentar para só depois em parada recebermos o Crachá.
A sua entrega em parada tinha um cerimonial e onde um graduado Comando nos perguntava a berrar:
- Queres ser Comando? - e se a nossa resposta era Sim, ele respondia:
- Então vai e cumpre o teu dever!
E era nesse momento que nós passávamos a pertencer a uma Família de quem nos iríamos orgulhar pela vida fora e até a morte. Bem, isto tem muito a ver com a vontade que tínhamos em ter contacto com o IN para nos armarmos em vaidosos com o crachá.
Cheguei à Guiné no dia 29 de Junho de 1972 e depois de uns dias de folga em Bissau onde a CCmds esteve a receber o armamento, no dia 10 de Julho 1972 seguimos em coluna com destino a Mansoa. Nesse mesmo dia encontrei o meu amigo Germano, 1ªcabo cripto e um velho amigo de família com quem eu passei muitos dos serões em Mansoa nos intervalos da fase operacional.
Lembras-te, Germano, como aquilo foi duro para mim? Lembras-te de eu regressar das operações do Morés e como desabafava contigo?
Antes de passar ao debaixo de fogo quero aqui recordar, e tu lembras-te, Germano, pois estavas ao pé de mim, dizia eu recordar o meu primeiro contacto nu e cru com essa malvada chamada morte e que se me apresentou da forma mais cruel que se possa imaginar. Para o contar vou relembrar o que na altura escrevi no meu diário de guerra.
15 Julho de 1972
Estava à conversa com o Germano junto à nossa caserna quando ouvimos um tiro vindo do interior. Corri para lá e de repente nesse minuto ao olhar um corpo no chão vítima de um disparo acidental perdi toda a minha inocência guerreira e acho que um mundo de responsabilidade e verdade se abateu sobre os meu ombros. Foi a primeira baixa da companhia. O soldado Ilídio da Costa Moreira.
Depois de sair para fora da caserna senti-me agoniado e vomitei e senti que tudo o que me foi ensinado no curso foi pouco para lidar de frente com a morte.
8 Agosto de 1972
Saí ontem para uma operação heli-transportada, a partir de Mansoa e até ao local da largada. O Germano foi dar-me um abraço.
Desembarcámos na mata do Morés na região DANDO -QUENHAQUE-SINRE. A operação foi um golpe de mão num aldeamento onde as populações estavam sob controlo IN e o objectivo foi atacar e destruir as instalações para criar um clima de instabilidade.
Entrámos no aldeamento e estava vazio. O silêncio era impressionante, notava-se que o IN à nossa aproximação fugiu do aldeamento. Começámos a passar revista ás tabancas a de repente ouve-se um tiro. Um furriel do meu grupo detecta um turra emboscado e mata-o. Durante a revista apanhámos diverso material de guerra e documentos. Destruímos 10 palhotas e 2 grandes celeiros.
Saímos do aldeamento e mesmo na saída caímos na primeira emboscada em guerra.
Sofremos fogo concentrado de flgelação. Foi um momento de excitação para mim. É a primeira vez que estou debaixo de fogo do IN. Reagimos à emboscada, fomos para cima deles e saímos do local.
Nesse mesmo momento outros dois grupos da Companhia são emboscados perto de nós e têm um morto. Foi o nosso primeiro morto em combate. O camarada Francisco José, natural de Évora.
Começámos a andar em direcção ao local de recuperação que já não era em heli. Tivemos que andar dúzias de km em direcção a Infandra. A um dado momento desfaleci. Valeu-me uma coramina para me recompor. Pelo caminho entrámos noutro aldeamento onde fomos recebidos com rajadas de kalash.
Nessa aldeia levei um banco que o meu amigo Germano (lembras-te?) trouxe para a metrópole. Chegámos à estrada, perto de Infandra, já muito tarde e a recuperação ficou para de manhã.
Durante a noite os mosquitos iam-me bebendo o sangue todo.
Duração da operação: 24 horas
Resultados:
- IN: 1 morto e vários feridos, visto terem sido encontrados vários rastos de sangue;
- NT: 1 morto e 1 ferido ligeiro
- Destruído um acampamento de 10 palhotas e vários celeiros
- Material capturado:
2 Granadas defensivas F-1
1 anadas defensivas modm 63
Documentos e material diverso
E esta foi a minha primeira vez, Amigo Luís, e como vez foi um bocadito para o duro.
Quero agradecer ao Germano toda a disponibilidade que nesse tempo para me apoiar. Obrigado AMIGO.
Amilcar Mendes
ex-1ªcabo COMANDO
38ºCCmds
Guiné
__________
Notas de vb:
1. O Amílcar Mendes, em 2 Novembro de 2005, apresentou-se assim na nossa Tabanca Grande:
"assentei praça em Outubro de 1971 no antigo RAL1. Ofereci-me para os Comandos onde cheguei em Dezembro de 1971 (CIOE/ Lamego). Completei o curso em Junho de 1972, mês a que cheguei à Guiné, a 26. Iniciei a 2ª parte do curso em Mansoa, na mata do Morés, onde tive o primeiro contacto com o IN. Recebi o crachá de Comando em Agosto, com o posto de 1º cabo.
Em Fevereiro de 1974 terminei a comissão mas só regressei a Portugal em Julho de 1974."
2. Artigos da série e relacionados em´
24 Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3350: O meu baptismo de fogo (16): Catió, 10 de Março de 1969 (António Varela)
1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3009: Com sangue na guelra: Nós e a mística dos comandos da 38.ª, em Mansoa (Belarmino Sardinha)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
A pedido do camarada Germano Santos, aqui fica um seu comentário:
Caro Amigo Amílcar,
Acabei de ler o teu "post" sobre o teu baptismo de fogo na imensidão do Morés, zona perigosa da Guiné nos nossos tempos.
Fiquei tão sensibilizado com as tuas simpáticas palavras a meu repeito que não pude evitar umas lágrimazinhas de saudade e de reconhecimento.
Por outro lado fiquei estupefacto com a tua memória (ou serão recordações escritas daqueles tempos ?). Eu não tenho essa capacidade memorial nem tão pouco grandes escritos sobre a época. Seja como for, confirmo o que relatas porque me avivaste a memória.
Por fim, mas não menos importante, nada fiz por ti que tú, em circunstâncias semelhantes, não fizesses, certamente, por mim.
Eu já não era, quando chegaste a Mansoa, um Periquito, logo já tinha alguma bagagem para te ajudar a passares os primeiros tempos. Todavia, era mais conversa e psico que outra coisa qualquer. Eu não tinha experiência da guerra a sério, a não ser a dos ataques ao aquartelamento de Mansoa, já era alguma coisa para te tranquilizar, mas não era tudo. O resto passaste tú a sério, e muito a sério, fora de Mansoa, no Morés e por outros sítios por onde passaste.
O Comando eras tú. Pau para toda a obra.
A ilusão dos 18 anos e do crachá já se foram.
Ficou o homem, presumo e desejo que FELIZ com muitas histórias para contar a quem nelas estiver interessado.
Ficou também o AMIGO.
Um grande abraço para ti do
Germano Santos
PS. Quando é que vamos almoçar ?
Olá Sr. Amilcar Mendes
gostaria de saber se conheceu o meu pai, pois ele também pertenceu a 38ª CCMDS e esteve entre 1972 e 1976 na Guiné como 1º cabo.
Acho que era no 1º grupo da
38ª CCMDS.
Tenho várias fotos dele.
snpc@sapo.pt
Abraço!!
caro
Amilcar Mendes.
Gostaria de deixar claro que quando me indignei com as palavras proferidas pelo Sr. General Almeida Bruno, não quiz atingir os nossos comandos pela qual nutro muito respeito. Pois entrei em várias operações com os mesmos e aprendi as respeitalos em combate, fá-lo nomeadamente da 15.ª e 16.º Companhia de comandos que estavam no terreno na minha altura.
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