quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3342: O meu baptismo de fogo (15): Estrada de Buba-Aldeia Formosa, 22 de Julho de 1968 (José Teixeira)


Em Buba, o Zé Teixeira com o Mário Pinto e o Luís “Lousada”, ambos da CCaç 2317.

O meu baptismo de fogo
por José Teixeira


A caminho

Tinha chegado no anterior a Buba, vindo de Ingoré no norte. Partimos logo cedinho, seguindo até ao fim da pista de aviação. Embrenhámo-nos na mata serrada, ora com árvores gigantescas, ora capinzal descoberto. Espaços entre os homens bem medidos. Silêncio absoluto, quebrado longe a longe pelo piar de uma ave que nos sobrevoava intrigada, ou por um galho partido, descuido de algum camarada, que logo se penitencia, perante o olhar áspero do comandante. Um caminhar lento e cauteloso, de ouvido atento e olhar prescutante centrado na floresta virgem ou no movimento que a brisa matinal impunha ao seco capim.

Mal o Sol aparece a dar-nos os bons dias, logo a temperatura se eleva e a camisa começa a colar-se ao corpo. A marcha continua sem parar. Ouvem-se ruídos estranhos, parece ser uma matilha de cães. Logo à frente um grande bando de macacos saltava de árvore em árvore, numa dança sem fim. Um espectáculo de vida em movimento, indiferentes ao nosso penoso e lento caminhar, ora por entre a vegetação, ora enterrados na lama ora embrenhados na densa floresta.

Quase sem me aperceber, encontro-me de novo na pista, às portas de Buba, lá ao fundo o grande Rio de Buba convida-me a um mergulho. Respiro fundo, enquanto a mente me lembrava que para já tinha escapado.

Depois do tardio e saboroso almoço, não pela qualidade, mas pela fome que trazia, ousei ir dar o merecido mergulho nas águas quentes do rio, mesmo depois de me terem lembrado que uns tempos atrás choveram balas vindas da margem oposta, atiradas por alguém, que gosta de pregar sustos. Seguiu-se um tempo de descanso.

Depois...foi tempo de paragem, de encontro comigo mesmo em busca do Zé que deixou parte de si em Portugal, mais propriamente no Porto. Um pequeno grupo de colegas convida-me para rezar por ser Domingo. Foi preciso lembrar-me, hoje é Domingo...

Tinha saído às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de um sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado....

Só ao fim da tarde, quando a noite surge e porque um colega me recorda, verifico que é Domingo!...É verdade, Senhor, é o teu dia, o dia que Tu instituíste para te louvarmos... e a minha Missa foi mais uma coluna. Rezei. Aceita, Senhor, o meu cansaço como sacrifício neste dia.

22 de Julho de 1968

Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí, de novo, às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" no rio Bolola, e por volta das doze recebi ordem para avançar para lá do cruzamento de Sinchã Cherno, local em que a picada se divide, seguindo uma para Empada e outra para Aldeia Formosa, por Bolola e Missirá. A coluna aproximava-se.

Um banho comprido ou os minutos mais longos da minha vida

Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... será que a coluna foi atacada?...

Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram. Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.

Ainda mal tínhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e costureirinha. Tentou durante cerca de 15 minutos, os minutos mais longos da minha vida, arrasar Buba, com fogo cruzado vindo de ambas as margens do Rio de Buba que ali se reparte em dois, formando uma espécie de Y. Não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.

Disse-me em Fevereiro passado, durante o Simpósio de Guiledge, um dos comandantes de guerrilha com pude conversar um pouco e que pelo menos nos cruzamos por três vezes no tempo que por lá andei:
- Nós o que queríamos é que vocês se fossem embora, muitas vezes íamos só na chateia.

Dezenas de homens faziam fila, completamente nus, para tomar o refrescante banho. Na operação estiveram envolvidos três grupos de combate da CCaç 2381 (a minha), dois grupos de combate da CCaç 2382, estacionada em Buba, dois grupos de Combate da Lenços Azuis, um grupo de combate de Caçadores Africanos comandados pelo terrível Alferes Aliu Candé, de Aldeia Formosa, e mais um pelotão de milícia de Buba.

Para ganhar tempo, enquanto uns se molhavam, outros ensaboavam-se e outros esperavam. Eu estava a ensaboar-me, quando a “festa” se inicia. Num ápice toda aquela maralha se despeja na vala que existia, mesmo ao lado, uns por cima dos outros.
- Ai!...Ui!...
- Chega para lá, filho da p...
- Este gajo está todo borrado! - (Ãlguns na confusão da fuga foram de empurrão e como estavam molhados ficaram cheios de terra).
- Ai Nossa Senhora de Fátima, vamos morrer aqui todos!

Guiné-Bissau > Buba, 2008 > A minha antiga caserna transformada agora em escola.

Três frentes de fogo; as duas deles e a nossa, faziam um estrondo de arrepiar. E cerca de metade dos homens estavam a ser baptizados. Para completar a cena, desaba uma tromba de água, cuja descrição me dispenso de escrever, pelo conhecimento que têm os queridos leitores deste fenómeno na Guiné.




Buba 1969. Vê-se a bifurcação do Rio de cujas margens exteriores fomos atacados no dia do meu baptismo de fogo. Era um dos locais preferidos pelo IN para nos atacar. Foto do Alferes Miliciano Médico Dr Azevedo Franco.



Buba, 1969 – vendo-se um dos braços do Rio e uma pequena reentrância pela terra dentro, onde alguns de nós montávamos “emboscadas” aos peixes quando estava a maré a vazar com uma rede improvisada, permitido uma fuga à fome, ou ao repetitivo arroz com Chispe, na falta de outra coisa melhor. Foto do Alf Mil Médico Dr Azevedo Franco.

Eu era dos que estava completamente nu a ensaboar-me, quando ouço um estrondo seguido de tiros de armas ligeiras, logo outro e outro. As minhas pernas começaram a tremer de forma inexplicável, o coração a bater descompassadamente, vejo toda a gente a fugir e a desaparecer na vala, que eu tinha visto antes, mas não me tinha apercebido da sua utilidade, pois no norte em Ingoré, não havia nada disso. Os estrondos das saídas das bocas dos canhões, dos rebentamentos das granadas por todo o lado, das rajadas de G-3, mais os estouros das costureirinhas deixaram-me atarantado, até que alguém na fuga me empurrou e dou por mim enfiado na vala, rodeado de homens nus, que com a preocupação de se protegerem baixavam a cabeça, encostando-a ao rabo do camarada da frente, que por sua vez estava em posição idêntica. Nenhum de nós estava protegido com uma cuecas de folheta, por exemplo, mas que se conste ninguém foi desvirginado nessa dia.

Encharcados até aos ossos pela carga de chuva que se aliou ao inimigo, ali aguentámos o embate, com o coração aos saltos, até que, o fogo foi diminuindo, ficando as nossas armas a cantarem sozinhas por algum tempo, pois o IN afastou-se tal como surgiu rápido e pela calada, se afastou depois de deixar a carga mortífera que trazia, na mata, nas águas do rio e suas margens. Dentro do quartel caíram uma ou duas canhoadas que não fizeram estragos e creio que a população ficou incólume.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas...A chuva fez de chuveiro e limpou os que estavam ensaboados, mas fomos todos de novo limpar com água o medo que nos atravessou a alma. Mais uma vez escaparam... escapámos. Escapei.

Encontrei, vindos de Aldeia Formosa, três colegas de recruta. À noite, vieram procurar-me. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde... não havia espaço coberto, nem camas.
A odisseia continuou no dia seguinte.


Na picada para Aldeia Formosa (Quebo)

Saí de Buba no dia vinte e quatro de Agosto de 1968 às seis da manhã e cheguei a Aldeia Formosa no dia vinte e cinco às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades. Cerca de trinta quilómetros de marcha que se fariam em cerca de 3/4 horas, numa situação normal, pela picada levou-nos cerca de trinta horas de marcha. A picada estava num estado lastimoso; buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia. A coluna seguia lentamente, cautelosamente. Os “piras” concentrados. As mãos de alguns, integrados no grupo de “picadores”, agarravam febrilmente as varas de ferro com que picavam a terra à procura de algo mais duro que indiciasse uma caixa de madeira ou chapa metálica, onde poderia estar a perigosa mina assassina, que muitos de nós nunca tínhamos visto nem imaginávamos como seriam.

Ouvidos atentos aos sinais toc, toc que se repercutiam na terra e ao mais pequeno som diferente, logo ordem de paragem. Ninguém mais se mexia. Uma insistência, o rebuscar da terra envolvente. Por vezes uma raiz ou uma pedra provocava um respirar aliviado e a marcha continuava. O olhar atento que se desdobra em todas as direcções; o caminho que se vai trilhar em busca de sinais de terra remexida de fresco; a mata cerrada que nos cerca, onde o inimigo pode estar, aguardando o melhor momento para atacar e matar. Roubar a vida a quem ama a vida, obrigando a uma partida prematura, deixando o futuro cheio de saudades de quem parte e quem assim parte leva imensas saudades do futuro.

As abelhas também entram na guerra

O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo e, a conselho de um soldado da milícia que estava a meu lado, me arrastou para o meio de uns arbustos ali ao lado na mata. Ele foi a “mão de Deus” que me protegeu das picadas das abelhas. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela cor que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada um tanto hilariante de toda a gente que protegia a coluna de viaturas naquele sector. Se o IN tivesse atacado nesse momento seria um desastre total, tal foi a desorganização gerada.

Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo. Inimigo cobarde! Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores. Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem? Que culpa tenho eu? A sua vontade de fugir à morte impressionou-me e ainda hoje parece que estou a ouvir os seus últimos e já ténues gritos de vida.

Estava a comunicar via rádio com Buba a informar o que se tinha passado numa zona considerada perigosa, o entroncamento da estrada de Aldeia Formosa com a estrada que seguia para Empada em Sinchã Cherno, sem qualquer dano, quando a viatura em que seguia accionou uma mina anti-carro. Era a quinta viatura, a mais frágil das que tinham pisado a estrada. Aparentemente estava livre de perigo das minas, dado que as anteriores viaturas eram extremamente pesadas, quer pela carga que traziam, quer pelos sacos de areia que substituam os bancos. Logo atrás vinha o primeiro obus de 14 que se destinava a reforçar a defesa de Aldeia Formosa. Ouso pensar que o condutor talvez se tivesse desviado um pouco do rodado feito pelas viaturas antecedentes, sem pôr de parte a hipótese de a mina estar programada, para o carro do rádio ou eventualmente para o obus. Dos três camaradas atingidos foi o que aparentemente menos sofreu.

Não apresentava ferimentos externos. Do estado de choque em que caiu, rapidamente foi recuperado. Pouco tempo depois começou a sentir falta de forças e a cor da pele que reflecte a vida começou a fugir da sua face. Sede. Muita sede e o corpo a arrefecer. A angústia e o desespero começaram a tomar conta dele e de nós, os enfermeiros, que nos apercebemos da situação, sem lhe poder valer. Com a queda tinham rebentado vasos sanguíneos internos, o que implicava internamento urgente para ser operado a fim de se localizar a origem e se poder estancar a hemorragia. As forças fugiam a cada momento. Passado algum tempo gritava desesperado: já não vejo! Já não vejo! Vou morrer. Eu não quero morrer, salvem-me!

Impunha-se uma evacuação urgente, mas como?

Os dois aviões que nos tinham acompanhado até aquele local e batido a zona, tinham-se ido embora. As comunicações foram destruídas pela mina. Que raiva, meus Deus! De nada valeu a água que esgotamos, o soro que lhe demos, o carinho e talvez as orações de alguns. A morte veio matar o futuro daquele jovem. A vida fugiu-lhe rodeada de amigos que nada puderam fazer.

O destino marcou no tempo, aquela hora, aquela viatura, aquela vida cheia de vida, que deixou de ser vida. Partiu para sempre cheia de saudade de um tempo a que tinha direito a viver e nem sequer teve tempo para conhecer, porque o seu futuro deixou de existir.

A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho. Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h.) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... dura guerra!

Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o R.T. morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caiu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino, nada pudemos fazer.

Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.

Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate, mal chegou para o primeiro dia. À frente havia INs, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.

Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a milícia comandada pelo Aliu Sada Candé que protegia os flancos descobriu-os e sem compaixão, pôs as suas máquinas de guerra a funcionar. O meio e a retaguarda da coluna embrenhados no mato, aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da retaguarda, onde eu me integrava a ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.

Foi aqui, neste primeiro encontro a sério com o inimigo, que eu me zanguei com a G-3 ou a Dona G3rtrudes, como eu lhe chamava, abandonando-a para sempre.

Na quinzena de campo (IAO) que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que afirmaram me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade acompanhar-me-ia até ao caixão. Era uma G3 ou a G3ertrudes. Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

1º Trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que, a baba ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

2º Pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos

3º Sempre travadinha para não fazer asneiras

4º Nunca a abandonasse, pois, se perdida, dava origem a no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com uma G3ertrudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável. Pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro. Deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN, ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo, não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos.

Cantei de alegria, quando soube que “as sortes” me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas. Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.

Na azáfama de tratar os feridos no dia anterior, esqueci-me da G3ertrudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Era preciso procurá-la. Aonde? Tinha-lhe perdido o lugar. Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Foi uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o inimigo à espreita.

Chegou a manhã e com a ela a primeira emboscada, que para quem vinha na retaguarda da coluna foi apenas um estar atento e esperar o silenciar das armas lá na frente. Os guerrilheiros recuaram, voltou o duro silêncio de morte e a vida continuou por momentos. Reinicio da marcha lenta e dolorosa, com sono, fome e sede, um camarada cadáver e três feridos, mas uma vontade gigantesca de sair daquele buraco. Logo depois, apareceram na retaguarda em força.

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos.

A G3ertrudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado directamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima. Ah! G3ertrudes de um raio! Anda cá.

Apontar, disparar e… um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3ertrudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão. Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

O Soldado Salvaterra

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o empecilho que me salvou a vida. Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado “abandonada” pertencia ao Salvaterra Bernardes, natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental que assassinos (não encontro nome mais apropriado), apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCaç 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

Pobre Salvaterra que aparentava ser uma figura de comédia. Uma caricatura barata de Soldado. Desde o "quico", ás botas, do cinturão à G-3, tudo nele estava mal vestido,"mal assentado". Um sorriso contínuo, não irónico, mas de assustado nervoso. Uma cara continuamente contorcida por pequenos espasmos, enquanto a saliva lhe escorria continuamente de um dos cantos da boca.

Sofria de grave doença motora, atrofiamento muscular, acompanhados de acentuada debilidade mental. Era totalmente impossível ao pobre do Soldado Salvaterra controlar os mais simples movimentos. Acertar o passo pelos outros quando marchava, coordenar os movimentos dos braços, e muito menos, com o movimento das pernas. Na "ordem unida" tornava-se o momento certo das gargalhadas gerais, perante a crescente irritação, e falta de paciência, dos responsáveis.

Nas aulas de ginástica o circo repetia-se! Tropeçava continuamente sempre que pretendia correr. Caía, desamparado, ao solo, ao pretender saltar um simples degrau de escada. O primeiro degrau da escada.

A arma na mão deste homem, não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas. Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e…talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me. Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída logo que cheguei a Aldeia formosa e para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma “porrada” se me apanhasse sem a minha G3ertrudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.




O Zé junto a um dos obuses, já colocado em Aldeia Formosa, que tanto esforço e trabalho, sofrimento e dor deu na viagem de transporte desde Buba.

A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses de 14mm, entre outro material).

A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de heli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.


Sare Tuto (Tabanca Lisboa) a cerca de 5 Quilómetros de Buba. Antigos guerrilheiros aí estacionavam em 1968 e donde partiam para nos atacar.



Em 2005 e 2008 tive a feliz oportunidade de trilhar de novo, alguns destes caminhos agora voluntariamente e sem o perigo de encontrar o IN, bem pelo contrário, nalgumas situações em 2008 foram meus companheiros de viagem. Recordo o Braima Cassamá que me atacou em Aldeia Formosa, tentou entrar em Mampatá Forreá em Novembro de 1968 pelas duas horas da tarde, chegando a estar dentro do arame farpado, segundo me disse (é verdade, que chegaram a entrar, mas logo tiveram de fugir, e, ele foi um dos que ousou penetrar). Como sapador participou na montagem em Changue Laia a caminho de Ponte Balana um campo de minas, cerca de setenta –, a CCaç 2317 caíu lá e teve cinco mortos, a minha Companhia levantou vinte e sete, uns dias depois, sendo as restantes detectadas pelos Páras, entretanto chamados à zona.


Guiledge 2008 – O Zé, contador de "Estórias".

Em Fevereiro, quando soube que eu tinha estado por aquelas bandas, procurou-me, conversámos, revivemos as nossas aventuras em campos opostos e outros, apresentou-me outros camaradas, em tempos idos INs e baptizaram-me como “ermon” (irmão).

Zé Teixeira


Fotos, legendas e texto: © José Teixeira (2008). Direitos reservados

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Notas de vb:

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19 Outubro 2008 > Guiné 63/74 - P3329: O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

1 comentário:

Anónimo disse...

Participei na coluna Buba/aldeia Formosa que levou os obuses. Eu ia a pé junto ao "matador" (viatura)que transportava o primeiro obus. Quem também ia na viatura atingida pela mina, causa da morte do radiotelegrafista, era o capitão Rei, que, milagrosamente, não ficou ferido não obstante ter sido projectado a mais de quatro metros de altura.
Por força das circunstâncias era eu que comandava os pelotões de artilharia não obstante ser furriel miliciano.
Estou a escrever "Guiné-1967/1969 Episódios da guerra colonial".
Caso haja interesse para qualquer troca de impressões deixo o meu contacto: e-mail - amribeiro44@sapo.pt e/ou 965238594.
Um grande abraço a todos.
21/11/2008
António Ribeiro