domingo, 30 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN

Guine > Região de Tombali > Cachil, Ilha do Como > Estandarte e Emblema do PAIGC oferecido por um gerrilheiro (presume-se...) por troca de uma miniatura da Bandeira Nacional. Foto e legenda: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados 

  1. Mensagem de 23 do corrente, enviada pelo Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66 

(*): Grande Chefe Luis Afim de alinhavar e orientar o comentário que fiz e que resultou na publicação do P3503: Controvérsias (11): O início da guerra (Tite, 23 de Janeiro de 1963) e a estreia da G3 alemã, em 1961 (Santos Oliveira), houve que reler as ligações referenciadas e ficou-me a sensação de ter sentido algo semelhante ao que o Mário Dias e o Domingos Ramos terão passado. Entendo que comigo foi tudo mais suave, inconsciente e inconsequente. Delírios de juventude que se autodestruia por se considerar imortal. Tive sorte. Não quero fazer comparações de factos; apenas sentimentos. 

 Na primeira leitura http://blogueforanada.blogspot.com/2006/02/guin-6374-cdxciii-domingos-ramos-e.html há cerca de um ano, entendi não ser relevante a minha experiência; agora, percebo que errei. Por isso, conto como e as circunstâncias em que tudo se passou. Cachil, Ilha do Cômo, Finais de Dez 64 Tinha acabado de receber notícias trágicas acerca da morte dos meus dois amigos de infância. Isolava-me e chorava e este sentimento de perda prolongou-se por alguns dias.O poiso escolhido era o topo da paliçada, onde fingia estar a fazer a vigilância habitual, embora perfeitamente exposto. Apetecia-me morrer. Foi terrível. P3143: Blogoterapia (62): A minha vida morreu; morreram os meus amigos (Santos Oliveira) 

 Pelos últimos dias de Dezembro, peguei na G3, umas quantas Granadas, coloquei a Boina Preta, o meu Cinto e Lenço Ranger (seda azul) e informei os meus militares de que iria dar uma espreitadela pela orla da Mata, pelo que entregava o Comando ao Cabo Gomes (1916/63) com a informação exacta de fazer fogo como estava previamente estabelecido. Não haviam mas, nem meios mas. Era uma Ordem. Um dos Soldados, o Júlio Batata (2032/63), perguntou se também podia ir. Anui, mas informei que íamos por nossa conta e risco; outros mais se prestaram a acompanhar-me mas recusei com o argumento de ser necessário guarnecer os Morteiros de gente, que eles não se disparavam sozinhos, etc. mas acabei por aceitar um outro que, no momento, não recordo quem (posso indagar depois).

 Informamos o Plantão da Companhia residente (creio ter sido a CCAÇ 728) do que íamos fazer e lá partimos, com as precauções necessárias. Chegados próximo da Orla da Mata, encontramos um carreiro de formigas com mais de um palmo de largo, a tentar refazer o seu percurso em grande afã, mas numa estranha confusão. Percebia-se, por baixo daquele caos, a marca duma pegada de pé descalço que havia despoletado tal evento. Foi , de imediato, assumido o regresso, pois as evidências eram demasiado esclarecedoras que estava alguém uns passos à nossa frente. Chegados, constatei que havia perdido o meu querido Lenço. No amanhã se veria o que fazer. Ao raiar do dia, os mesmos, retornámos, tomámos mais cautelas, procurámos os pontos onde nos havíamos agachado ou rastejado e encontrámos o meu Lenço com uma folha de Caderno onde se lia (em Português correcto):”TENHO-TE VISTO CHORAR”. Fiquei paralizado por instantes. Voltei o papel e escrevi por trás:”OFEREÇO-TE O MEU LENÇO”. 

 Custou-me imenso descansar aquela noite tal a ansiedade que de mim se apoderou. Tinha a infantil curiosidade de tentar adivinhar o que se passava, pois era incompreensível. Por outro lado já havia tomado consciência do risco desnecessário que havia corrido e fizera os meus Soldados correr. Era uma lotaria, um jogo…e o jogo vicia. A curiosidade matou o rato, diz o ditado. Eu estava por tudo. Queria saber se o lenço tinha sido levantado. Recusei, sem resultados, a companhia dos Soldados. Bem mais à vontade (um erro que podia ter sido fatal) dirigimo-nos ao local. Estava um daqueles pingalins, ou chicotes, muito elaborado, com uma mancha de sangue no punho e um novo papel que dizia:”EU QUERIA ERA UMA BANDEIRA TUA”. Atónito e já muito inquieto, voltei o papel e escrevi:”VOU VER O QUE POSSO FAZER”. 

 Regressámos muito mais apressados que o habitual. Era necessário ter os acontecimentos sob controlo porque doutro modo iria sobrar para mim coisa grossa. Os restantes elementos do Pel Mort 912, começaram a questionar o que íamos fazer todos os dias. Começou a ser difícil segurar o segredo. Que íamos ver se havia qualquer possibilidade de haver caça, dizíamos. Na mala tinha uma bandeira de Portugal, tipo galhardete, das que se usavam, na época, nos vidros dos automóveis. Fui buscá-la, lembro bem tê-la apertado no peito e lá retornámos, com a promessa que seria a última vez que sairíamos, se não se encontrassem indícios de caça. Lá chegados, encontrei um Galhardete e um Crachá do PAIGC e um papel que dizia: “GUARDA E LEVA ESTA PARA A TUA TERRA”. Petrifiquei. Acho que fiquei imóvel tempo demais porque os Soldados me perguntavam:”O QUE SE PASSA, MEU FURRIEL?”. Rapidamente, retirei a Nossa Bandeira, Coloquei-a na estaca, escrevi por trás do papel:”EM NOME DA PAZ”. Fiz a Continência e todos desatámos em corrida mais ou menos desordenada para o Quartel. Tudo se ficou por segredo solene até ao dia de hoje em que falei com o Soldado Júlio Batata que concordou fosse contada esta História. O Galhardete e o Crachá sempre ficaram e estão comigo. 

 Do meu Companheiro de Armas do Campo oposto, a quem nunca vi o rosto, nunca tive notícias. Se lhe chegar esta mensagem, ele reconhecerá a História que ajudou a construir, recebê-lo-ei de braços abertos. O Pulsar do coração e adrenalina não serão mais os mesmos, mas o sentimento, esse, é sempre igual. Santos Oliveira 

  2. Comentário de L.G. Obrigado, camarada, por quereres (e poderes...) partilhar este segredo da Guiné connosco, teus amigos e camaradas. Já com o Mário Dias (**) se passou o mesmo: há pudor e relutância em contar episódios como estes, de alguma maneira insólitos e, muitas vezes inverosímeis aos olhos dos outros... 

Seria uma pena que tu e Mário Dias levassem, para a cova, pequenos/grande segredos como estes... São histórias fabulosas que humanizam a guerra, que engrandecem os seres humanos qu as protagonizam, e que nos tocam, fundo... Espero que a partir de hoje, mais camaradas nossos decidam abrír a caixinha de Pandora... 
______________ 

 Notas de L.G.: 



7 comentários:

Unknown disse...

Um forte abraço com admiração.
Carlos Filipe

Anónimo disse...

Camarada Santos essa tua troca de mensagens e galhardetes já não é do meu tempo de Cachil.
Mas esse teu companheiro de armas do campo oposto?
Não terá sido o mesmo que certa noite deixou uma mensagem atada com um fio a um pau espetado no chão entre a grande mata do Cachil e o nosso aquartelamento, cujo o teor não me recordo, mas era em termos amistosos.
Era um dos temas que no encontro do almoço queria perguntar ao coronel Ares se ele se lembrava desse episódio, mas entre abraços e festejos a guerra ficou esquecida.
Um alfa bravo.
Colaço

Santos Oliveira disse...

Caro Colaço
Afinal ainda te vais lembrando das “coisas”; são necessárias luzes da História para retroceder nos anos e possamos fazer luz. Precisamos mais dessa luz, amigo.
Acontece-me, muitas vezes, pensar que somos possuídos de Alzheimer, o que felizmente, não é verdade para a maioria de nós.
Muitas vezes me interroguei acerca do que agora formulas. Muitas vezes associei essa mensagem (que guardo por palavras sensatas e boas, mas que também não lembro o teor) ao que posteriormente se passou comigo. Compreende-se que, aquando da mensagem posta na vara, se esperava ser um caso isolado e sem outra qualquer continuidade. Ficaremos sempre na dúvida de que seja o mesmo Combatente, a não ser que o mesmo se revele. Nas contas das probabilidades, a percentagem, por mim, seria altíssima.
Do teor dessa Nota, talvez o Cap. Ares ou o Ten.Méd.Rogério, sempre muito próximos, possam ainda guardar lembranças.
Fico-te muito grato pela associação que fizeste. Revelaste a atenção que eu não quis utilizar por me parecer isolada e despropositada.
Ao Luís Graça, o meu reconhecimento pela informação da inserção deste Comentário do Colaço.
Um Abraço aos dois, em particular e abrangendo a Grande Tabanca
Santos Oliveira

Anónimo disse...

Senhores
Quando cheguei ao Cachil este era o furriel que já lá estava com um pequeno grupo de homens e três morteiros. Foi o furriel que punha sempre os soldados á sua frente, conversava, falava, jogava, aconselhava e fazia a vigilância da mata, por eles. Pareciam todos felizes quando os novos por lá ficavam tristes e sozinhos. Muitos de nós acabaram no jogo da lerpa e na cerveja. Este furriel também tinha sempre um concelho para nós. Poucas vezes o vi festejar ou a beber com os outros furriéis e alferes da minha companhia. Este era o furriel que depois de cada ataque vinha saber de posto em posto, como estávamos e dizia-nos que já tinha terminado tudo, que esta já se tinha passado e outras coisas. Tinha sempre uma palavra que nunca ouvimos dos nossos alferes ou furriéis. Para mim é um grande homem como um pai porque me ajudou e aos meus companheiros. É o furriel que não dava ordens. Explicava e ensinava e os soldados faziam tudo sem serem precisas ordens. Este furriel, se quisesse alguém para o seguir numa patrulha para morrer, tinha sempre mais voluntários do que se fosse para um rancho melhorado. Quando se foi embora nunca mais nos sentimos seguros. Só éramos mais experientes. Estou a morar na Bélgica, não tenho internete, mas há uns portugueses companheiros mais novos do trabalho que teem e vão deixando ver essas coisas da tropa do meu tempo. Desejo que o senhor Oliveira seja muito feliz, porque também me fez feliz.
Soldado Carvalho

Santos Oliveira disse...

Camarada Carvalho
Se tens vindo a ler as nossas Histórias, certamente já reparaste que todos nos tratamos por tu; portanto será desse modo que te escrevo. As Patentes (ou Postos) que tínhamos, aqui e agora, já não têm cabimento. Fomos Soldados, Cabos, Furriéis, Sargentos, Alferes ou Capitães, porque assim era. Mas agora apenas somos só Homens, Camaradas, Companheiros e Amigos.
Dos Homens ou da Pátria nunca recebi uma Honraria como a que acabas de me conceder. Foi o maior Louvor, a mais alta Medalha ou o mais sublime Colar que, embora aparentemente invisíveis, guardarei no meu peito. A comoção aperta-me o Coração porque acho que passei por tantos Camaradas que não lembro mais, mas que a cada dia se vão revelando. Isso traz-me imenso orgulho mas também alguma frustração por me sentir impotente e incapaz de corresponder ao que ainda vão esperando de mim.
Como dizes, “Ordens” não as dei como tal e não seria agora que as daria. Mas, dentro do que tão bem ajuizaste, percebes que gostaria de “falar” contigo frente a frente (nada me daria mais prazer), por telefone, por carta ou pela Internet. Se assim o entenderes podes consultar os Editores deste Blogue luis graca e camaradas da guine e ser-te-hão facultados todos os meus Contactos.
Por mim, Amigo Carvalho, eu espero continuar por aqui mais uns tempos.
Para ti, por cá ou pela tua Bélgica de Adopção, quero desejar-te as maiores venturas. Mais, pela época que se aproxima, votos que abranjam os teus familiares e teus solidários Companheiros de trabalho, UM SANTO E FELIZ NATAL
Abraços, do
Santos Oliveira

Anónimo disse...

Oh Fernando,porque demoraste tantos
anos a contar esta história?
Imagino a tua ansiedade por saberes
quem era o amigo/inimigo que trocou
bandeiras contigo,que viu as tuas
lágrimas,que as respeitou e sentiu
a tua tristeza.Seria concerteza uma
pessoa com um caracter tão grande
como o teu.
Fernando,eu que agora te conheço,
sei como a msg daquele cmarada que
vive na Bélgica,te enterneceu.É bom
ter amigos assim.
Grande abraço
P.Santiago

Juvenal Amado disse...

O que ressalta do teu relato, é que foram dois combatentes sem ódio, que se encontraram e partilharam possivelmente, o que de maior valor tinham.
..........As suas Bandeiras........
Dois homens, que teriam sido melhor empregues a fazer a Paz, provaram naqueles momentos únicos que Ela era possivel.

Um abraço

Juvenal Amado