quinta-feira, 4 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68







Guiné > Mansambo > CART 2339 (1968 / 69) > Fotos Falantes III (de cima para baixo, 6, 27, 24, 31, 30) > Por não ter aqui à mão a lista com as legendas das fotos, não posso dar mais pormenores. De qualquer modo, as fotos falam por si: o Torcato junto ao obus 10.5 em Mansambo; aspectos da vida de uma ou mais tabancas fulas em autodefesa, do regulado do Corubal ou de Bengacia (Duas Fontes), vida essa que se tornou, de meados de 1968 para meados de 1969, cada vez mais complicada, com o cerco do PAIGC ao chão fula.


Alguma destas tabancas podia ser Candamã ou Afiá ou Camará (vd, carta de Bengacia), sítios por onde andei em Agosto de 1969... Também podia ser a da pacata Mussá Ieró, pacata até ao dia em que foi destruída e abandonada, em 24 de Novembro de 1968... A Mussá Ieró não chegava os velhos obuses de Mansambo, sede do subsector e da CART 2339... (LG)


Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem do Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Fá e Mansambo, 1968/69)... Meio alentejano, meio algarvio, português dos quatro costados, beirão, camarada, amigo, mebro do nosso blogue desde Maio de 2006 e, agora, avô babado de um neto, creio que o primeiro, de nome Martim, um nome arcaico mas bem lusitano...


(No dia 29 de Maio, tinha-me escrito o seguinte: Um abraço do Fundão até ao Porto para ti ,meu caro Luis, e para todos do [BCAÇ] 2852 e da [CCAÇ] 12. Lembro-me de alguns. Igualmente para a malta do Norte, um abração. O Carlos Marques dos Santos da [CART] 2339 virou polaco e deve Varsoviar e não só os dias.... Não fui a 23 ao convívio,e devia ter ido, da 2339... Nasceu nessa madrugada o meu Martim, Vidas!)...


Estimados Editores deste Sítio:


Já há tempos que nada envio. Hoje, através do nosso camarada Tertuliano Ten-Coronel José Borrego, consegui falar com o meu terceiro Comandante de Companhia, Cor Moura Soares e ter noticias do quarto Comandante. Fiquei contente. Passados quarenta anos voltamos a falar e a reviver o passado.


Tem razão o Jorge Cabral, este sitio faz com que aconteçam coisas destas...e gostamos até do que não gostamos. É um síítio de afectos...não é? Giro. Devido á idade das peças não convém agitar muito.Pois!


No meu tempo (BART 1904 e BCAÇ 2852) haveria Abades em Bambadinca? Creio que só em Bafatá. Rezaram missa na inauguração de Mansambo, em Janeiro de 1969 e aniversário da Companhia. Não vi, pois estava em Portugal. Pela altura da Páscoa de 1969, como os militares eram crentes (gente do Norte) pediram e eu falei, creio que em Bafatá, a uns Sacerdotes, da possibilidade de irem dizer uma missa. Concordaram. Quando disse que era em Mansambo...oh...eu ainda disse que seriam protegidos lá do alto...


Ainda não havia o Padre Puim e não houve missa. Como depois de o Payne ter saído, também nunca mais apareceu médico por lá. Até se vivia bem em Mansambo. Feitios. Bons ares e Turismo Rural...


Mas anexo Mussa Iéro em versão light. Logo envio outros escritos.


Abraços do Torcato


2. Estórias de Mansambo II > MUSSA IÉRO


por Torcato Mendonça




Era uma vez… Sim, era uma vez uma Tabanca, não muito grande, que, num passado não muito distante, tinha sido bem maior.


Teria agora uma população reduzida a uma dúzia de famílias. Nem tantas.


Muitos já tinham partido para Candamã, a noroeste, ou para nordeste onde estava Dulo Gengelê e Galomaro. Alguns migraram mesmo até Bafatá.


Ficaram poucos, não por teimosia, talvez por amor ao chão, apego à memória dos antepassados, talvez por algo mais ou, por tudo isso, resistiam e adiavam a partida. O perigo aumentava, os avisos dos militares eram mais insistentes. Adiavam. Talvez assim se sentissem mais felizes.


Naquela noite, ainda menina, ainda de olhos não fechados à claridade, sentiram a bestialidade da guerra, a violência gratuita, o ódio fratricida a abater-se sobre eles. Homens, ou simplesmente seres a destilarem ódio, bestas de uma guerra num país que diziam querer libertar, comandados por outros de outras terras ou, se comandados por guineenses, treinados em países longínquos. Só assim se compreende o modo como espalharam o terror, o ódio, a morte e a destruição sobre gente indefesa.


O ataque durou pouco, as granadas foram poupadas e o saque, a bestialidade, os gritos, os gemidos, os risos de feras certamente encheram a noite.


Depois o silêncio que só na morte ou no deserto se pode encontrar. De repente foi quebrado, talvez pelo choro de uma criança a que outros lamentos, outros choros se seguiram.


Não muito longe, em Candamã, uns quantos militares, cerca de vinte, picadores e população, ouviram o ataque e sentiram a impotência do auxílio. Só no dia seguinte e por isso, além de redobrarem os cuidados defensivos, rápido prepararam a saída para a madrugada ainda a demorar. O relógio luminoso foi consultado com mais frequência, as armas ficaram mais perto, o sono foi de sobressalto e, ainda a noite não acabara, estavam preparados. Os guias, alguns elementos da população, picadores e cerca de metade dos militares saíram. Não pela picada mas por um trilho que os guias conheciam. O pouco ruído era abafado pela chuva fraca que teimava em cair.


Pouco depois uma paragem, uma breve conversa a informarem que Mussa Iéro estava perto. Depois o sinal a indicar o ouvido mas, para os militares, demoraria um pouco mais a captação de sons.


De repente a Tabanca estava ali à frente. Ouvem-se vozes; param e esperam um pouco. Avançam com cuidado e logo à entrada uma visão macabra: um corpo, talvez devido a uma roquetada, espalhado em destroços. Um dos picadores aproxima-se e informa ser um milícia da Moricanhe. De facto haviam bocados do corpo coberto pelo camuflado e outras, não cobertas, a chuva tornara-as brancas.


As armas foram mais apertadas, os olhares endureceram, o ódio ia surgindo e os músculos estavam mais tensos. A transformação já se dera naqueles rapazes soldados. Acontecimentos como aquele só os endureciam mais e geravam maior ódio pela violência. Quem eram eles agora?

No centro da Tabanca estavam os feridos e os mortos. O enfermeiro tentou tratá-los o melhor possível. A população esperava ajuda de Dulo Gengelê. Combinou-se então o que fazer. Reunião difícil, longa, demasiado longo para alguns feridos graves.


Finalmente o consenso: os mortos, salvo erro dois ou três, seriam enterrados em Mussa Iéro e o choro ficava para depois, os feridos e a maior parte da população iam para Dulo onde já os esperavam. Outros, a maioria mulheres e crianças, vinham connosco para Candamã.


O regresso foi pela picada e mais rápido. Picadores à frente, militares a seguir e população atrás.


Mussa Iéro tinha ficado para trás. Acabara no dia 24 de Novembro de 1968. Em breve seria invadida pela mata e os homens dela se afastariam.


Meses depois, em Julho e Agosto do ano seguinte, na zona, não longe da antiga Tabanca, o inimigo construiu uma base. Dali saíram fortes ataques às Tabancas em autodefesa de Afiá, Candamã e Camará.


Estávamos em Galomaro (COP 7), mais propriamente em Nova Cansamba, e mandaram-nos regressar. A missão era descobrir a base inimiga. Com o caçador e guia Lhavo localizamos o santuário. Foi bonito vê-los e nada fazer.


Dois dias depois, a 18 de Agosto [de 1969], tropas pára-quedistas assaltaram, destruíram, causaram baixas e fizeram pelo menos um prisioneiro [ Malan Mané]. Acabara a base inimiga e os sobreviventes puseram-se em fuga. Passaram certamente perto de nós sem serem detectados. Caíriam e sofreriam mais baixas, mortos e feridos, numa emboscada montada pelo 3º Grupo de Combate da CART 2339, talvez quinze quilómetros depois na estrada Bambadinca/Xitole, próximo de Mansambo.


Um dos feridos graves foi Mamadu Injai, o Comandante da Zona. À noite a rádio IN pedia auxilio. Os Irãs, apesar de Mussa Iéro ser Tabanca Fula, tinham-se vingado.


O desgaste daqueles dias passou, assim, mais rápido e, pelo menos em mim, apareceu um sorriso e talvez tenha saudado os Irãs.


____________


Nota de L.G.:


(*) Vd. último poste da série > 29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá

5 comentários:

Luís Graça disse...

Parabéns por esse valente Martim, digno dos melhores Viriatos!

José, agora vais ter que arranjar mais tempo para jogar à bola com o filho do teu filho... E esse coração vai bater mais depressa!

É bom sentir-te em forma e de volta ao nosso blogue!

Um beijinho para a tua Ana. Um Alfa Bravo para ti, José.

Luís Graça disse...

Torcato:

Quis-te listar os teus inúmeros postes, de várias séries (Estórias de Mansambo, Fotos Falantes, Estórias de Mansambo II...). Mas o trabalho foi à vida, partidas que a tecnologia nos prega... Fica para outra altura, que agora já não há mais tempo...

Candamã, Afiá, Camará (tinhas-te esquecido de Camará!)... Tenho recordações fortíssimas, do cheiro a pólvora, das moranças queimadas, dos invólucros, da coragem dos homens de Mansambo que aguentaram, meia dúzia de Viriatos, um brutal ataque do bigrupo do Mamadu Indjai a Candamã...

Ainda me lembro do aspecto da tabanca, após o ataque na madrugada de 30 de Julho de 1969, durante mais de 2 horas...

Eu, periquito, Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria, com uma G3 em segurança, sem granadas defensivas, andava em operações por aquela zona, integrado no 3º ou 4º Grupo de Comb da CCAÇ 12 (já não me lembro, não tinha posição fixa, era um suplente, um peão de nicas)...

Andámos por lá, desencontrados, tu e eu... Quarenta anos depois, falamos dos sítios e desses dias de brasa, no nosso blogue... Quem diria!...

Aqui fica o registo:

Ataque de duas horas a Candamã

E finalmente a 30 [de Julho de 1969], o 3º e 4º Gr Comb seguiram para Candamã a fim de levar a efeito um patrulhamento ofensivo na região de Camará, juntamente com forças da CART 2339 [Mansambo](Op Guita).

Ao chegar-se a Afiá, pelas 7.30, soube-se que Candamã tinha sido atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer.

Em Candamã, os dois Gr Comb da CCAÇ 12 procederam imediatamente ao reconhecimento das posições de fogo do IN, tendo estimado os seus efectivos em 60/100 elementos [1 bigrupo reforçado], armado de canhão s/r, mort 82, LGFog, metralhadora pesada 12.7, armas ligeiras automáticas.

Havia abrigos individuais junto ao arame farpado que fora cortado em vários pontos, tendo o grupo de assalto utilizado granadas de mão.

Em consequência da reacção das NT e da população organizada em autodefesa, o IN sofrera várias baixas, a avaliar por duas poças de sangue e sinais de arrastamento de dois corpos, além de dólmen ensanguentado que foi encontrado já num dos trilhos de retirada. Foram recolhidas várias granadas de canhão s/r e RPG-2.

Do lado das NT houve 5 feridos (1 dos quais grave) e da população dois mortos e vários feridos graves, além de danos materiais (moranças destruídas, etc.].

O facto do IN ter retirado ao amanhecer indicava que deveria ter um ou mais acampamentos a escassas horas de Candamã. A corroborar esta hipótese, o aquartelamento de Mansambo seria flagelado na tarde desse mesmo dia.

A Op Guita não forneceu, porém, qualquer pista que levasse a detecção do IN na região de Camará. (...)

Da História da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

Anónimo disse...

Luís:comecei a responder mas cresceu.
Depois mando um mail.
Abraço-te e ao faze-lo estendo-o a toda a Tertúlia. (ainda não consigo isso do tabanca grande.... Feitos

Um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Este post do camarigo Torcato Mendonça é muito interessante porque aborda uma questão de que pouco se fala: a violência (talvez se possa chamar barbárie) exercida pelo PAIGC sobre populações indefesas, não poupando ninguém, fossem velhos, mulheres ou crianças.
Qual seria o pensamento e que resultados esperava Amílcar Cabral ao ordenar ou pelo menos consentir que tal acontecesse? Talvez tivesse na memória a fórmula de Che Guevara, que aconselhava “o ódio intransigente ao inimigo, ódio que impulsiona além das limitações naturais do ser humano e converte o guerrilheiro numa eficiente e fria máquina de matar”.
Daquilo que presenciei, o caso mais paradigmático foi o régulo de Porto Gole, o balanta Abna Na Onça, que tinha um ódio visceral à guerrilha exactamente porque lhe tinham assassinado vários elementos da família.
Henrique Matos

Anónimo disse...

Henrique Matos:
Mussa Iéro talvez tivesse uma arma de caça ou duas, O Milicia talvez tivesse levado a Mauser.

Perto havia uma Tabanca com leprosos e aí não foram.

Os ataques que sofri nas auto defesas eram para arrasar. Quem ataca com balas tracejantes...meus belos slides e etc. Pergunda ao Mário Beja Santos pelos discos...
Quanto mais terror melhor Che e todos!Isto entronca no abandono da margem esquerda do Corubal etc.
Abraço TM