Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
Guiné 63/74 - P4545: Alguns apontamentos sobre a acção da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616 (Xitole, 1973/74) (1) (José Zeferino)
1. Mensagem de José Zeferino, ex-Alf Mil At Inf, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616, Xitole, 1973/74, com data de 11 de Junho de 2009:
Luís,
Finalmente consegui acabar o texto que tinha prometido.
Foi quase de memória - menos as datas indicadas.
Por isso poderá ser alvo de outras versões.
Envio-te para como é habitual dares-lhe o tratamento que entenderes.
Até dia 20, em Monte Real.
Com os melhores cumprimentos
José António dos Santos Zeferino
Alguns apontamentos sobre a acção da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616 - 73-74 na Guiné
(i) BISSAU – de 20 de Dezembro 1973 a 4 de Janeiro 1974 - Chegada. A maior parte, como eu, a 2 Janeiro por avião.
(ii) CUMERÉ - 6 de Janeiro de 1974 – Início do IAO
Foto 1 > Cumeré 1974
(iii) MANSOA - 18 - 19 de Janeiro de 1974. Primeira acção do Batalhão. Segurança\emboscada nocturna itinerário Bissau – Farim.
(iv) CUMERÉ - 25 de Janeiro de 1974 - Primeira baixa no Batalhão: o Furriel Humberto, madeirense, da 3.ª Companhia que iria para Farim, suicida-se com a sua G 3. Por motivos sentimentais.
(v) XITOLE - 11 de Fevereiro 1974 - Chegada da 2.ª CCAÇ .
Foto 2 > Aspecto do Quartel do Xitole
(vi) A partir desta data deixa de haver dias de semana. Passam a ser contados por blocos de três dias: dois de patrulhamento e um de descanso. Um grupo de combate fixa-se na defesa da Ponte dos Fulas com rotação mensal.
Foto 3 > Ponte dos Fulas
(vii) XITOLE – 19 de Fevereiro de 1974 - Primeiro combate, na mata. Sem baixas. Indícios de baixas no IN.
(viii) MANSAMBO – 3 e 4 de Março 1974 - Grande operação no Fiofiol. Sem contacto IN.
(ix) XITOLE – 9 de Abril de 1974 - Segundo combate na mata. Baixas não confirmadas no IN. O alferes Araújo do 2.º GComb é evacuado para a psiquiatria do HMB. O meu GComb, o 3.º, estava na ponte nesta altura. Foi de onde tirei esta foto.
Foto 4 > Fogo do morteiro 10,7 do Xitole, batendo a retirada IN.
(x) XITOLE – 13 de Abril de 1974 - Visita do general Bettencourt Rodrigues. Transportado por héli Allouette IIIG
(xi) XITOLE – 22 de Abril de 1974 - Apresenta-se um guerrilheiro do PAIGC. Má altura, para ele, para desertar das suas fileiras.
(xii) XITOLE – 25 de Abril 1974 - madrugada, cerca das 6 horas:
- Zefruíno, alferes Zefruíno!!!
Era o Jamil, comerciante libanês com grande influência política, social e económica, tanto na Guiné como na restante família, árabe, dispersa por três continentes.
Estávamos a iniciar mais um patrulhamento, a dois GComb, talvez à zona do Duá.
Na varanda da sua casa, tipo colonial, claro, estendiam-se fios de antenas que acabavam num rádio antigo, de válvulas, por onde estava a ouvir a BBC em árabe.
Diz-me:
- Zefruíno, o (não me lembro, ou não quero, das palavras exactas) do Spínola está a fazer uma revolta.
O Jamil tinha tido um contencioso com o general Spínola: tinha querido transferir as suas casas de comércio na zona, para Bissau, no que foi impedido pelo general. Era uma base de apoio para as nossas tropas e para a população.
Foi assim que tive conhecimento do que se passava em Lisboa.
Regressámos de imediato ao quartel. Ficámos na expectativa nos dias seguintes. Patrulhamentos, só o mínimo indispensável-até Endorna. Montagem de segurança nocturna: poucas. Estávamos literalmente presos pela avidez dos comunicados.
Acreditámos que o fim da guerra era desejado pelas duas partes. Pelo menos para a população era-o. E muito.
Entretanto chegou ao nosso conhecimento, não me lembro como, que no PAIGC havia duas correntes: uma para atacar em força aproveitando uma possível desorientação nossa. Outra para entrar de imediato em conversações de paz no terreno.
(xiii) XITOLE – 15 de Maio de 1974 – Violento combate – emboscada. Duas baixas do nosso lado: o Alferes Aguiar e o Soldado de Transmissões Domingos. Cerca de uma dezena de feridos. Sinais de baixas IN.
(xiv) XITOLE – 30 de Maio de 1974 - São detectadas e levantadas várias minas reforçadas com granadas de RPG.
(xv) XITOLE – 5 de Junho de 1974 - Avistam-se grandes queimadas na margem esquerda do Corubal. Prenúncio de preparação do terreno para ataque de canhão?
Sob orientação de Bambadinca, via rádio, procedeu-se a um batimento de zona por morteiros 10,7 e 81.
Ao entardecer o pessoal de Transmissões capta mensagens em francês, creio, através de pequeno um rádio Onkyo que, como sabemos, não tem grande alcance. Sinal que havia movimentos estranhos perto.
As sentinelas são reforçadas. Já de noite uma rajada de G3 na porta de armas leva-nos às valas. Tinha sido avistado um elemento IN a tentar infiltração junto ao arame que nos separava da tabanca. nUma pequena força nossa sai, entra na população e regressa pouco depois, sem resultados. Passámos o resto da noite na expectativa.
(xvi) XITOLE - 6 de Junho de 1974 - Pelas 6 horas, nova rajada. Desta vez de uma sentinela junto ao espaldão do morteiro 81, na zona dos quartos dos oficiais e do abrigo da Breda.
Novamente nas valas avistámos, a umas dezenas de metros, uma coluna IN que se aproximava, vinda da tabanca, pela orla da pista de aviação. Sob o nosso fogo fugiram para o mato do outro lado da pista, deixando um deles ferido. Veio a falecer pouco depois na nossa enfermaria.
Foi este, realmente, o ultimo acto de guerra na zona e ainda hoje não o entendo totalmente.
(xvii) XITOLE – 15 de Junho de 1974 - Na picada, para lá da Ponte dos Fulas, suspensa de uma árvore, é encontrada uma carta com um maço de tabaco Nô Pintcha, e um isqueiro. Convidava o capitão a fazer a paz. O que foi feito no mesmo dia, perto do pontão do Jagarajá.
(xviii) XITOLE – de 16 de Junho a Setembro de 1974 - Começaram então as visitas de comandantes e comissários políticos do PAIGC para combinar a cerimónia da entrega do quartel, com o arrear da nossa bandeira e o hastear da deles. Vinham das matas da margem direita do Corubal – Mina, FioFioli, etc.
Foto 5 > Primeiro encontro no Xitole: de costas um comandante do PAIGC – não me lembro do nome, o nosso médico - Dr. Morgado, eu, o capitão Luís Viegas, o comissário politico Antero Alfama e o 1.º Sargento Pára-quedista Vaz
Houve um jogo de futebol entre nós e os guerrilheiros. Gostavam imenso de falar com o nosso pessoal chegando a trocar impressões sobre o material que tínhamos usado na guerra.
Creio que numa dessas conversas foi dito que quem preparou a tal emboscada de 15 de Maio teria sido castigado. Não aprofundámos a questão, pois se até ao 25 de Abril tínhamos tido alguns encontros, na mata, sem baixas do nosso lado o mesmo não se passava com eles.
Quase todos os dias apareciam guerrilheiros procurando refeições na nossa cantina geral. Aúnica exigência nossa: tinham que deixar a arma à entrada do quartel, no posto de sentinela.
Fazendo-se transportar por camionetas civis paravam sempre na casa do Jamil para o cumprimentar.
Foto 6 > Chegada ao Xitole de forças do PAIGC.
Estava com o Jamil na sua varanda numa dessas ocasiões quando me diz, referindo-se ao comandante de canhões que já se dirigia para o quartel depois de o ter saudado:
- Este… - também não me lembro do termo – foi meu empregado numa das lojas que tinha no Corubal!
Um padre foi até ao Xitole fazer a recolha dos ornamentos de prata e ouro e relógios deixados pelos camaradas das companhias anteriores na capela.
Numa das colunas, e em viatura civil, chegaram também duas prostitutas. Alguns aproveitaram.
Igualmente chegou um individuo com farda a estrear. Não falou com ninguém. Limitou-se a esperar pelo regresso da coluna. Informei-me sobre ele, não me lembro com quem, que me disse tratar-se de um desertor nosso, antigo, e que para limpar a caderneta tinha regressado à Guiné. Na altura um comandante do PAIGC, que estava presente e também interessado em saber quem era, disse, rindo:
- Manga de cu pequenino.
O Saltinho já tinha sido entregue.
Bastou um dia para ficarem sem gerador. Os novos ocupantes pedem ajuda ao Xitole para reparar o aparelho. Nesse dia à noite ficámos preocupados por a equipa que foi não ter chegado. Foram encontrados perto de Cambéssé com o Unimog espetado dentro do mato com vários guerrilheiros a tentar repô-lo na picada. O comandante deles, de nome Claude, ficou irritadíssimo quando nos viu. Já estava todo alterado. E foi a única expressão de ódio que registei em todos os contactos com elementos do PAIGC. Mas a nossa equipa foi muito bem tratada por eles.
Entretanto chegam-nos notícias de problemas em Bambadinca: Com as nossas milícias: queriam alimentos e com a CCAÇ 12 que não queria entregar as armas.
Depois… o tempo passou-se… lentamente. E entregámos o Xitole.
Foto 7 > Formados para a cerimónias : lado a lado
Foto 8 > Creio que , no lado esquerdo, se trata do comandante João Gomes.
Foto 9 > Inicio da saída do Xitole
(xix) BAMBADINCA – 2 de Setembro de1974 - Era o depósito do Leste. Todo o material vinha dar aqui para ser transportado para Bissau. Material e pessoas.
Foto 10 > Material no Xime
Foto 11 > Furriéis da 2.ª CCAÇ no Xime
Conhecemos alguns jornalistas cubanos que se sentavam à nossa mesa de refeições. Brindavam-nos, por vezes, com cantares do seu país.
Trabalho pesado para os soldados que faziam a estiva no Xime carregando as LDG.
Foto 12 > Mais material no Xime - este foi carregado manualmente
Ultima baixa na Companhia. Desta vez por doença: o soldado Vivas da Costa do meu Gr Comb, morre no HMB, vítima de paludismo.
(xx) BAMBADINCA – 7 de Setembro de 1974 - Já tínhamos entregue, também, este quartel quando, um dia resolvi ir até ao cais.
Em frente ao depósito de géneros trava-se uma discussão entre o comandante, guinéu, João Gomes e o comissário político, cabo-verdiano, Antero Alfama. Já os conhecia desde o Xitol e fiquei admirado.
Um queria distribuir os produtos alimentares de imediato pela população - claro o João Gomes. O outro queria controlar essa distribuição. De repente e acabando com a discussão o João Gomes vira-se para a pequena força que o acompanhava, uns dez soldados, e diz:
- Quem está comigo fica atrás de mim, quem não está vai para o lado dele…
No dia seguinte regressava a Bissau e depois a Lisboa. Esta já não era, de certeza, a minha guerra.
Foto 13 > BISSAU – 12 de Setembro de 1974 - Embarque no Uíge, para Lisboa.
José Zeferino
Aos 21 de Maio de 2009
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 17 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 – P4367: Ainda a última emboscada do PAIGC em 15 de Maio de 1974, no pontão do Rio Jagarajá, subsector do Xitole (José Zeferino)
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6 comentários:
Caro José Zeferino, parabéns pela cronologia e pelas excelentes fotografias.
Um abraço do
José Borrego
Caro Zeferino
O teu Xitole bem com Xime foram zonas que conheci bem e já gora te digo que na minha opinião eram zonas a evitar.
Passei em colunas para o Saltinho por essas picadas, onde os camaradas desse destacamento faziam a segurança.
Uma vez que fui lá, levava o meu comandante de Batalhão, que fico fulo com as barbas e o comprimento dos cabelos, que as tropas aí estacinadas apresentavam.
Ninguém o pôde aturar daí em diante com os ditos e ditas.
Belas fotos e belissima reportagem.
Estás de parabéns.
Um abraço
Juvenal Amado
Zefruíno, Zefruíno, g'anda reportagem, Zefruíno !
Tu apontgavas mesmo tgudo ?
Porrga !
O Humbertgo matou-se por causa da segnhora ? Às tantgas foi considegrado desertgor, não ?
A 9 de Abgril tiveste sorte, carago!
Estavas na ponte a tigrar fotos aos gajos que andavam à pogrrada no Xitgole ! E pelo aspecto aquilo foi dugrro !
Gostgei daquela do maço de tabaco pendugrado com isqueiro e tudgo.
Oh Zefruíno, os gajos queriam que o capitgão fizesse a paz ? Então à faltga do cachimbgo da paz deram-lhe Nô Pintcha ? Porreiro, pá !
Caro Zeferino, o teu texto prima pela cronologia. Notável !
Parabéns e desculpa mas deu-me vontade de brincar com o Zefruíno ...
Um abraço,
António Matos
Caro Zeferino,
Subscrevo inteiramente as atentas considerações do José Borrego,acrescentando apenas um pequeno pormenor, que me parece vir a propósito relativamente à recente polémica neste blog.
Aquando dessa reunião no XITOLE com
o PAIGC e a propósito do aparecimento,depois do padre e das prostitutas, de um indivíduo de farda a estrear que seria um desertor nosso já antigo a procurar limpar o que fizera,o comandante do PAIGC disse:-Manga de cu pequenino... e riu-se.
Aqui nesta frase curta ficamos a saber a visão do inimigo de então relativamente ao desertor português.
Significativo,quanto a mim.
Um abraço e parabéns uma vez mais.
(iv) CUMERÉ - 25 de Janeiro de 1974 - Primeira baixa no Batalhão: o Furriel Humberto, madeirense, da 3.ª Companhia que iria para Farim, suicida-se com a sua G 3. Por motivos sentimentais.
Infelizmente lembro-me perfeitamente desta situação. Fui um dos que lhe peguei no quarto depois do seu acto. Ainda hoje me recordo da sensação que vivi antes de tomar banho para lavar o sangue deste nosso camarada.
O furriel falecido naquele fatídico dia de Janeiro de 1974, chamava-se Horácio Franco e era meu conterrâneo e amigo dos bancos de escola. Eu estava lá. Dos primeiros a chegar ao aposento dele. Tão distante e tão perto.
Fica a correção do nome, a bem da verdade.
Abraço a todos os sobreviventes.
Angelo Moura
Ex.Alf. Mil. 3.ª C. Caç. 4616.
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