1. Terceira história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*)
Carlos
Cá vai o terceiro (para cumprir o ritmo).
Quanto às fotografias é um problema. Eu sempre convivi mal com elas, quer a ficar (nelas), quer a fazê-las.
De qualquer modo, vou tentar que te cheguem um grupo na Guiné e cá no puto.
São muito más e não sei se aproveitarás alguma coisa.
Um abraço
José Brás
José Brás à civil
Fooooo...go!
O Santinhos era um gajo curioso. Study of case, pode dizer-se hoje, tempo diferente em quase tudo do de então, democratizada que está a informação sobre as coisas da vida em geral e em específico, dizem alguns que para melhor nos mentirem.
Mas não importa isso, aqui e agora, importa, sim, falar-vos do Santinhos, Alferes comandante das peças de obus que guarneciam os quatro lados do quase quadrado da nossa convivência em Medjo naquele tempo.
Alferes e competente, dizia-se por lá, no acerto daquilo sempre que era necessário apontá-los a alvos definidos. Sob a sua orientação se construíram uns espaldares que exteriorizavam a paliçada, desbordando-a em semicírculo, com o cano sobrando no-de-fora para tiro directo para zonas que dessem tempo ao salto da cavilha entre o disparo e a cabeçada do percutor contra qualquer obstáculo.
A mim, observando os lugares dos rebentamentos da garrafa, após os ensaios realizados no fim da obra, arrepiou-se-me a alma na imaginação da coragem necessária para enfrentar os estilhaços que se semeavam à volta do local da explosão. Enormes, cortantes, divisores incontornáveis de corpos, ainda que fossem feitos de matéria mais resistente que esta carne que nos envolve o sonho.
Uma coisa desmanchava, contudo, esta imagem de Alferes competente que venho aqui a sugerir e vocês começavam já a assumir como projecto de homem e militar.
Bebia.
Gaita! Beber, gostar da pinga, nem é crime, nem reduz as grandezas humanas que todos possuímos, mesmo quando gostamos de beber.
Sejamos mais rigorosos. O Santinhos gostava de beber muito, usando aqui o advérbio de um modo que garanta que muito é mesmo muito, seja qual for o conceito que construamos sobre quantidade, dizendo eu isto, e, ouvindo-o cada um de vós.
Lembram-se das meias garrafas de cerveja, seis decilitros ou coisa assim, que pedíamos no bar ao Cabo Carneiro, aliás, pedia eu, pedia o Santinhos, pediam os oficiais, os sargentos e os soldados todos da minha Companhia 1622, e pediam vocês, nas vossas Companhias a Cabos com outros nomes. Se disse Carneiro, é porque depois da Guiné, Carneiro, para mim, é nome de Cabo barista, seja lá onde for que esteja, hoje e no futuro, tal qual eu sou Zé, apenas porque com esta minha cara, só podia mesmo era ser Zé.
Aonde eu queria chegar, desculpem vocês esta minha tendência para divagar, aonde eu queria chegar era ao número de garrafas daquelas que o Santinhos bebia durante um dia. Sei que não estou num concurso de televisão onde se fazem perguntas tão pategas como esta, mas não resisto à vontade de vos perguntar.
Respondam. Quantas?
Vinte e duas, vinte e três, vinte e quatro, dependia.
Mas não julguem que só de cerveja vivia o Santinhos. Isso era durante o dia. À noite, ele era scotch, ele era vodka, ele era cognac…
Uma noite, tendo eu que levar mensagem urgente ao capitão, passei na secretaria a caminho dos quartos dos oficiais e quem é que eu topo?
Com o Santinhos deitado em novelo naquele espaço que há nas secretárias para meter as pernas, fileira vertical de gavetas à direita e à esquerda das ditas, quando em trabalho. Com ele, meia bebida, meia entornada, uma garrafa de aguardente velha.
Ninguém sabia onde metia o homem tanto álcool, numa figurinha de um metro e sessenta, magro e escanzelado.
Nunca o vi senão de jeens, quase sempre sujos, a cair-lhe do corpo, mostrando o anúncio da separação das nádegas, coberto apenas nas madrugadas de frio pelo dólmen da farda malhada.
Cabelo sempre comprido e sujo, barba dias e dias por fazer, deambulando pelo quadrado de olhar entre o vazio e o espantado.
Num dia de visitas de Bissau a Medjo, brigadeiros, coronéis e tal, descem do heli, entram no quartel e logo ali deparam com o espantalho que, desajeitado e hesitante, lhes bate uma palada cómica. E eu danado para largar à gargalhada na ópera cómica, ali à minha frente, fugindo de mãos na boca para evitar a bronca.
Mas nada disto de que tenho estado a falar tem importância. A importância dou-lhe eu no engano de vos fazer compreender melhor a encomenda do Santinhos no episódio burlesco que, desde o início vos quero relatar.
Comecemos pelo princípio!
Em certo tempo, que como vocês sabem não é o mesmo que tempo certo, em certo tempo foi programada em Bissau uma Operação das grandes, destinada ao assalto e ocupação de Salancaur. Tal Operação envolvia várias Companhias que passaram a noite deitados pelo chão do quartel de Medjo, bombardeamentos prévios nos dias precedentes pela aviação, jactos no ar à hora que devia ser do assalto, bombardeamentos com os obuses do quartel antes da entrada.
As quatro peças foram deslocadas dos seus espaldares para o exterior da paliçada, alinhadas lado a lado e apontadas ao objectivo com regulação do tiro a partir do voo de um DO.
Diz-se que o homem põe e Deus dispõe, querendo justificar-se a coisa torta. A Operação que deveria ser de um dia, naquela mata quase virgem, evitando sinais de picada à força de catana, chegou-se à ante-câmara do destino apenas na terceira madrugada. Fome, sede, medos, etc., esfrangalharam corpos e convicções. As evacuações começaram em catadupa, umas absolutamente justificadas e outras, provavelmente, oportunistas.
Na frente da tropa de assalto havia agora um enorme espaço de bolanha nua que era necessário passar para chegar ao objectivo.
Ordem para iniciar procedimentos de tiro de obus, tudo a postos, cada peça com seu apontador e municiador, eu ouvindo em PRC-10 as ordens do DO ao Santinhos e em wallkie talk, a comunicação entre o Santinhos e o apontador de cada obus, conversa para a qual peço a vossa inesgotável imaginação, recriando a manhã naquele lugar, quente e húmida, abafada ainda mais pelo stress da espera; meia dúzia de soldados que haviam ficado a garantir a segurança das peças encarrapitados na bancada da paliçada; o DO esvoaçando e dando indicações, não tão longe dali que não se pudesse enxergar-lhe a evolução a olho nu, a voz do Santinhos nas perguntas ao avião, nas ordens às peças, pastosa, embrulhada na língua, augurando tensões.
Primeira bateria?
Pronto meu alferes!
Segunda bateria?
Pronto meu alferes!
Terceira bateria?
Pronto meu alferes!
Quarta bateria? Quarta bateria? Quarta bateria?
Fooooo...da-se!
Buuum, ecoando inesperadamente nos meus ouvidos e no susto dos ocupantes do DO que voavam em frente, não muito acima da linha de tiro!
- Tirem-me daqui - esganiçou o Alferes. - Tirem-me daquiiiii!
Um médico de fora que por ali cirandava para a possibilidade de ter de servir na Operação, diagnosticou sintomatologia histeriforme e solicitou evacuação para o Alferes.
O helicópetero que o veio buscar carregou já para Medjo o seu substituto, outro Alferes, açoriano, diferente do Santinhos no talhe físico e na atitude.
Para aquele dia nem valia a pena a pressa da substituição.
A Operação havia acabado. Do DO para a tropa na orla da mata a ordem foi a de recuar, porque do outro lado eram muitos os morteiros prontos para bater a bolanha.
Não morreu ninguém, do nosso lado, pelo menos.
E do Santinhos, Alferes ou civil, engenheiro brilhante, segundo se dizia, e contestatário, nunca mais ouvi dizer fosse o que fosse.
JB
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4486: Vindimas e Vindimados (José Brás (2): Coágulos
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Pois é, caro Zé, dá-me a impressão que esses artilheiros foram sempre muito apressadinhos.... mal ouviram o fooo... nem esperaram, vá de fazer fogo!
Gostei da história. Está bem contada e mesmo com os pormenores e os à-partes tem a característica que normalmente imprimes aos teus escritos. Até parace que estamos lá!
Um abraço
Hélder S.
Caro Zé Brás,
Parabéns pela descrição do Santinhos pois conseguiste pôr a trabalhar as inesgotáveis imaginações que aquele pseudo assalto a Salancur proporcionou !
De facto, a personagem que descreves é digna dum verdadeiro case study ! A restante cena é de antologia !
Para além da pena que senti por teres acabado muito repentinamente a estória daquela operação, ficou-me a imagem desse "mestre" artilheiro e da "competência" dos mentores da dita operação .
Assim se fazia aquela guerra ....
Um abraço,
António Matos
Caro Zé Brás,
Uma vez mais,brilhante.
Este teu Santinhos, fez-me lembrar um soldado da "minha guerra" com um nome parecido, era só Santos.
Pois o Santos,contráriamente ao Santinhos,não usava jeans, mas regra geral desde que não saisse para o mato,vestia calção de banho
onde colocava uma faca de mato numa reedição tarzaniana de ocasião...
Tal como o teu Santinhos,era um dez reis de gente,miudo,magrote, e também um ás na bebida,não nas de "salão",que não era dado ao scotch nem ao gin, mas na popularíssima cerveja,depositando bazzokas ou simples 33 no casco do
seu estomago.
Com bastante regularidade cirandava entre a 1ªe 2ªfiadas de arame farpado, insultando meio mundo,mas acabava por embalar nas braços de Morfeu, com relativa celeridade,depois de domado por Baco no desafio sistemático que este lhe fazia ,e no qual caía sempre, qual jogador inveterado de casino,no pano verde da desgraça..."não és homem nem és nada se não bebes outra"!
Aparecia sempre um voluntário a pagar a ultima, e o resultado era o do costum,Baco derrotava-o por rotundo K.O.
Um dia,o Santos,a quem fôra proibido vender sequer o cheiro das ditas bazookas,viu a "pena" comutada por um dia,atendendo a que era o seu aniversário. Foi-lhe concedida a autorização de comprar uma grade para si e os camaradas mais chegados, numa manifestação de tolerância do capitão.
Só que subitamente o Santos fez diminuir o numero de camaradas mais chegados e de novo foi desafiado por Baco. Como se esperaria,seria de novo derrotado, só que desta feita com resultados
definitivamente drásticos.
Fez o tradicional percurso entre arames,praguejou como habitualmente,só que desafiado por
Satã,decidiu abandonar o aquartelamento.
Saíria(à procura de Chita?),vá lá saber-se as razões,embrenhando-se na mata para nunca mais regressar.
Saímos à sua procura vimo-lo à distância. Fugiu de nós mata adentro. Foi a última vez que vimos o pobre do Santos, um bom rapaz que se deixou cair nas malhas
dos etílicos vapores.
O seu escape para os problemas quotidianos acabaria por lhe ser fatal.
Soubemos depois através de um prisioneiro feito pela companhia nossa vizinha que fôra aprisionado e entregue ao P.A.I.G.C.
Nem a "Maria Turra" falou nele.
Ao menos o teu Santinhos terá sobrevivido.
Um abraço e parabéns uma vez mais pela qualidade que nos dás a ler.
manuel maia
O Brás apelida o Alf. Santos de "Santinhos", intencionalmente.
No essencial o que o Brás diz corresponde à verdade. Como ele sabe o Alf. Santos era o Cte. do meu pelotão. Eu presenciei ao vivo o referido episódio. Possuo fotos da ocasião. Com o objectivo de contar parte da minha vida; sobretudo acerca da minha passagem pela guerra na Guiné, tenho escrito este e outros - com mais pormenor, mas com menos roupagem - episódios ocorridos em Mejo, onde permaneci dez meses, primeiro com a Cª do Cap. Cadete e depois com a Cª do Cap. Loja (A Cª do Brás).
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