domingo, 6 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 3 de Setembro de 2009:

Caríssimo Carlos,

Para que não molengues nos calores do Verão, aqui vai mais um exercício de memória sobre a minha viagem africana pela Guiné e, já adivinhaste certamente, destina-se a que o prepares para o blogue da Tabanca Grande.

Para os atabancados, e para ti em especial, um abraço fraterno.


Conversa com o Januário

No alpendre da casa dos furriéis, com vista para a parada, a Secretaria, a Cantina, e para o outro lado, até à casa do Silva, portanto, no melhor local de Bajocunda, jazia uma mesa de ping-pong, que não cumpria a função a que fora destinada, em virtude da falta de rede, das raquetes e bolas, que o pessoal nunca teve a lembrança de comprar, priveligiando a preguiça mental e o acomodamento. Desporto? Exercício físico? Era só o que faltava! A malta queria era descanso.

Dessa maneira, a utilização da mesa fora reconvertida. Transformou-se em assento largo, que também dava para estender o pernil. Era nela que os furriéis se espojavam molengando, ou assentavam as nádegas na periferia do tampo, para conversas variadas ou simples coscuvilhices sobre bajudas. Dali também se trocavam graçolas com o pessoal que se deslocava para o rancho ou a cantina, e no regresso aos abrigos.

Foi daquela mesa que variadíssimas vezes perdi o olhar em majestosos pôres-de-sol, momentos de evasão que os efeitos pictóricos sobre o céu me proporcionavam.
Ali, sentado à conversa com o Tenente Januário, um jovem oficial com carreira auspiciosa que a guerra proporconara, a certa altura do diálogo ele referiu que estava com os portugueses, porque éramos os mais fortes mas, um dia, quando fôssemos embora, a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos.

Nunca fui de questionar, de querer sacar informações pessoais, nem me recordo da sequência daquela conversa, apenas registo aquela afirmação, de onde se podem extrair várias noções, de entre as quais: que o Januário estava na tropa pela vantagem que a situação de oficial lhe proporcionava na vida guineense, o que ganhava não era dispiciendo e projectava-o socialmente; também deixou claro que acreditava na emancipação da Guiné, mas não esclareceu, se por acção do PAIGC, se por entrega do poder a uma super-estrutura patrocinada pelos portugueses, onde ele, naturalmente, esparava ter acolhimento. Esta hipótese seria interessante de averiguar, se alguma vez foi ventilada entre o Spinola e os homens-grandes.

Inequivocamente, porém, exprimiu a raiva que muitos guinéus sentiam em relação aos cabo-verdianos, que detinham largo poder administrativo e repressivo. Ficou também patente alguma ambição pessoal, quando referiu que a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos, como se fosse um desígnio que lhe estivesse destinado. Ou então, talvez tudo não passasse de toleima, de ambição e vaidade próprias de quem sobe na vida sem uma boa estrutura mental, nem saber situar-se perante a comunidade.
E registei, por último, a sua indiferença pelos portugueses. Ele combatia connosco porque éramos mais fortes e, acrescento eu, pagávamos bom salário. Não referiu qualquer patriotismo ou sentimento agregador à presença portuguesa, evidenciando a incongruência da sua posição no exército.
Finalmente, ficou por se saber porque não se juntou ao PAIGC na luta pela independência, já que a autonomia da Guiné estava no seu horizonte (daí eu agora admitir que pode ter havido abordagens por parte de Spínola), e também ficou por se saber porque razão parecia convicto da retirada dos portugueses.

Mais tarde, aquando da Operação Mar Verde, não fiquei muito surpreendido com a sua resolução, o que me surpreendeu, foi a notícia do enforcamento (?) subsequente e o tremendo erro de avaliação que resultou daquela atitude.
Ou ele andava num turbilhão de conflitos pessoais, sem coragem para a escolha de um rumo definitivo e arriscou, ou atraiçoou os portugueses mediante alguma causa inesperada, ou, atraiçoando, foi atraiçoado.
As primeiras hipóteses corresponderiam a reacções espontâneas. A última, pelo contrário, a uma cilada que não percebeu. Fica tudo por esclarecer.


Duas biografias do Foxtrot

Hoje vou abordar as biografias de dois valorosos elementos do Foxtrot, quase podendo dizer-se, que a biografia de um pode confundir-se com a do outro, tal a similitude na origem e formação, como nos comportamentos e presença na Guiné.
Refiro-me aos atiradores de infantaria, os senhores João Baptista de Freitas e João Rodrigues Lorêto.

Ambos oriundos da ruralidade madeirense, com nula ou muito pouca instrução escolar, dois meninos que começaram a brincar com instrumentos agrícolas junto aos pais que trabalhavam as fazendas. Ainda meninos, naturalmente, passaram a ajudar os progenitores, a aprender a trabalhar os nacos de terra para receberem as sementes ou plantas, a abrir drenos que fossem buscar a água da levada para garantir a vida orgânica que misturada com algum estrume, davam substância e fertilidade à terra.

Eram dois meninos ainda, e já alombavam com cargas de produtos agrícolas, carregando-as montanha acima, até ao carreiro que os levaria a casa, às vezes muito longe, conforma a distância e dificuldade de acesso às leiras.
Por isso não tiveram tempo para ir à escola. Provavelmente, também não haveria escolas nas suas aldeias. Porque eles são de aldeias distintas, nem se conheciam. E também não foram à escola, porque os pais não foram, e eram rijos, trabalhadores e saudáveis, para que é que servia a escola?

Foram dois meninos solitários, quero dizer, com pouca convivência com outros meninos, sem a matreirice que resulta dessas cumplicidades, sem malícia.
Os físicos algo atarrecados, condicionados pelos sucessivos pesos que carregavam, quase escondiam os ombros largos e os membros musculados e vigorosos. Pequenos, mas valentes, era o que eram.
Ambos apresentavam esparsas cabeleiras de carapinha, expressões de constante surpresa, e atitudes introvertidas.

Estavam presos na cidade, metidos em trabalhos que a tropa obrigava e os músculos tensos, bastas vezes, não correspondiam. Falava com eles e não me compreendiam. Não estavam aptos para a apreensão da nova e apressada linguagem urbana. E com os continentais, respondiam frequentemente que sim, com expressões tímidas, para não incomodarem, muitas vezes sem perceber patavina.

O esquerda-direita era uma complicação para acertar. Perceber as diferenças de postos e o tratamento adequado, outra complicação. Quanto ao manuseamento de armas, entre risos e chacotas a que não davam importância, precisavam da ajuda dos mais destros e pacientes.. Sofreram. Sofreram muito. Rapazes simples nunca inventaram comportamentos que disfarçassem os problemas. Humildes no trato, só falhavam porque não podiam corresponder.
Com o decurso do tempo assimilaram termos e passaram a experimentar as armas sem auxílio. Dificil, pois claro.

Na Guiné ainda revelavam muita dificuldade. Nas suas inocências carregavam as armas sem se imaginarem capazes de as utilizar. Volta e meia aferia dos seus desenvolvimentos. Sorriam-me como as crianças mediante as descobertas. Nos primeiros tempos, à cautela, tirei-lhes os percutores. Nem eles sabiam, nem foram os únicos.
Sempre prontos e disponiveis, foram passando do estado inconsciente, para outro mais elaborado nas dificuldades, na percepção dos perigos e na manhozice do Pelotão. Mas não eram manhosos. Apenas compreenderam os que se aproveitavam das suas ingenuidades, até lhes porem travão e confrontarem-nos. Já eram duros pelo trabalho de anos, tornaram-se duros com as vicissitudes da guerra. Foram dois meninos até aos vinte anos. Com a tropa desenvolveram novas capacidades, alargaram horizontes com as diferentes conversas em que participavam.

Perdi-lhes o rasto. Disseram-me que emigraram, talvez pela infeliz descoberta que o trabalho duro do campo não é compensador.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)

4 comentários:

Anónimo disse...

O Januário ao não se juntar aos caboverdeanos, Amilcar, mais propriamente dito, porque só ele tinha ombros para tal tarefa, o Januário estava a ser mais sincero para o Amilcar que todo o PAIGC guineense.

Dificil é explicar como o Amilcar criou um Partido, contra as ideias da maioria dos Guineenses e dos Caboverdeanos. O que aconteceu com o fim dos Caboverdeanos no PAIGC da Guiné, e do sonho do Amilcar, foi tão simples que se o(s) Januário(s) fossem vivo(s) via que nem precisava armas para os mandarem para Caboverde.

Assim como tmbem via que não eram nem os portugueses nem os caboverdeanos o grande problema da guiné.


Antº Rosinha

Hélder Valério disse...

Caro Zé Dinis
As tuas reflexões a propósito da conversa com o Januário estão de facto interessantes mas, por falta de sequência das mesmas, será sempre especulação o que quer que seja que se diga.
Em todo o caso estão muito bem colocadas as questões.
A caracterização que fazes dos "teus" dois rapazes madeirenses do "Foxtrot", bem como do seu meio social, também me agradaram.
Um abraço
Hélder S.

manuel maia disse...

CARO ZÉ,
PROVAVELMENTE AINDA ME DISSESTE QUALQUER COISA NO SÁBADO MAS O MEU FILHO LEVOU A MÁQUINA CONSIGO E NÃO PUDE LER.
SOBRE O TEU TEXTO,PRIMA SEMPRE PPOR UMA EXPOSIÇÃO CLARA E CUIDADA.
PARABÉNS

MANUEL MAIA

Juvenal Amado disse...

Caro Zé
Estou como o Valério na questão do Januário.
Gostaria de saber mais.
Certo é que muitos que envergaram a nossa farda, o fizeram por situação económica e de "ronco".
Um camuflado todo ajustado à moda dos comandos africanos, dava muito jeito para dar nas vistas das bajudas.
Recebiam farda, uma arma e ainda lhes pagavam por cima.
Depois porque quem não quer ser lobo, não lhe deve vestir a pele, por vezes tinham que prestar o serviço, para que lhes pagavam.

Um abraço

Juvenal Amado