FRAGMENTOS GENUÍNOS - 4
Por Carlos Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66
Transportados para Fulacunda um dos lugares que se pretendia servir de tampão e dissuasor de pelo sul o IN chegar a Bissau, apenas tenho memória da viagem até ao porto no rio Geba que ficava a 4/5Km da localidade, de se avistar a perder de vista uma imensa e impenetrável floresta e da linguagem do inefável barbeiro da Companhia, o grande amigo Antonino Marques, já então como que de sobreaviso com as tropelias e prepotências que se vieram a verificar por parte do Alf. Serigado e do medroso Ferreira de Almeida, altamente vernácula e que se tornou paradigma nos considerandos e conversas que frequentemente mantínhamos.
Diversas vezes entrou em choque com o Serigado, nunca lhe perdoando; de tal modo que na primeira confraternização para a qual depois de já termos feito algumas, lá ter eu próprio convencido o Serigado a participar, tendo vindo acompanhado por um filho adolescente, e obrigando-me a tentar por em prática uma política de boas relações, o bom do Antonino quando nas despedidas o Serigado o pretendeu cumprimentar lhe disse na sua voz estentória: eu não conheço o senhor de lado nenhum, e assim ficou. É hoje este meu grande amigo o Barbeiro de Meruge – Oliveira do Hospital.
Aqui após o desembarque e posterior transporte por uma desesperante picada cheia de buracos e enlameada de tal modo que um dos unimogues que nos veio buscar se atolou, e em que um dos jovens desconhecedor como todos, das características da floresta bateu inadvertidamente com o corpo num arbusto ficando com uma comichão que o fez arrastar-se no chão para tentar suavizar o ardor; era, viemos a saber depois através dos velhinhos que íamos substituir o feijão-macaco. Chegados ao aquartelamento, um rectângulo rodeado de arame farpado e sem ligações com nada excepto este porto ou uma improvisada pista de aterragem, dentro do aquartelamento existiam algumas casas de antigos colonos e que serviam de messes enfermaria etc… e um refeitório e Bar, para além de já construídas duas casernas; no exterior havia uma tabanca e algumas casas abandonadas mas funcionando ainda um posto de correio, onde estava colocado um jovem cabo-verdiano que era o nosso companheiro de actividades e alinhando na fragilíssima equipa de futebol do sul, donde éramos meia dúzia e servíamos de batuta para o resto do pessoal. A nossa Companhia tinha como maior componente, pessoal oriundo das beiras.
Aqui começávamos a sentir a realidade de uma vivência em guerra cheia de agruras turbulências e peripécias algumas delas rocambolescas mas qualquer delas traumáticas e de inimaginável tensão; para além da tragédia da morte e desaparecimento de grandes amigos e camaradas. Na primeira noite ainda muito confiante e pouco avisado deixei-me adormecer numa cadeira tipo baloiço (de design militares das colónias - feitas com as tábuas dos barris do vinho), no alpendre das nossas instalações, só acordando por mor das milhentas picadelas de mosquitos que por ali pululavam aos milhões. Que banquete, eu já na altura era suficientemente anafadinho. Enfim fui o motivo para risada geral: os trastes hem!!!
Após poucos dias de estadia em Fulacunda e ainda sem uma completa adaptação ao meio, onde as noites eram passadas em sobressalto com os ruídos naturais tanto de algum movimento na Tabanca o natural rumorejar da floresta, e os guturais gritos dos macacos-cães, principalmente em dias de chuva e ventos, e que se tornavam verdadeiramente assustadores para estes neófitos e isolados guerreiros, saímos em patrulhamento no sentido de Uaná Porto. Esta tabanca ficava situada no terminus de um vale junto do rio Corubal e à beira duma mata intensa, sendo que por todo aquele vale/planície se via uma extensa plantação de arroz, vindo só junto ao rio a aparecer a povoação; era uma paisagem paraisidiaca, tendo nós assistido ao nascer do sol que era mesmo no sentido do Rio, é indescritível a beleza e sentido de paz que pairava etereamente no ar; no meio de um silêncio profundo, um camarada não se conteve, mandou às urtigas as recomendações de surpresa e disse em alta voz: “Oh meu Deus porque é que fazes guerras aqui”. A ansiedade era enorme, transformando-me numa autêntica pilha de nervos. Exceptuando uma rajada que um camarada nosso com menos auto-domínio executou e em que a espingarda logo encravou regressámos ao aquartelamento sem mais qualquer incidente. A sugestão do médico da Companhia, Dr. Dias Neves, do Montijo (era talvez o melhor atirador da Companhia; vi-o matar em pleno voo um pato bicanço), tinha pela sua maneira de ser um grande ascendente sobre o Cap. Caria e influenciava facilmente as decisões deste, toda a Companhia foi para a pista de aterragem fazer fogo para o mato a fim de testar as armas. Uma percentagem elevada estava inoperacional.
Hoje, por sobre o aquartelamento e redondezas desencadeou-se um tremendo temporal que faz desta noite um tempo de temores e sobressaltos, tal é a quantidade de água da chuva que mais parece uma catadupa permanente que se abate sobre tudo, acompanhada do mais rigoroso trovejar e com relâmpagos, com só vi na Guiné, e que são de tal modo que se vêem em sequência por centenas de metros iluminando tudo até para lá da pista de aterragem a ponto de se entreverem difusamente os contornos do início da floresta da Bianga.
Tudo se me afigura intimador e desconhecido. Entretanto já bastante tarde foi mandado chamar o nosso guia, Malam Sanhã. Era um homem já de idade (um Homem Grande) de porte altivo e forte presença, era muçulmano e usava os trajes condizentes, homem de poucas palavras, aceitava a missão de nos guiar e encaminhar para os locais onde pretendíamos agir sem o mínimo comentário; entendia-nos perfeitamente.
Reunida a Companhia, já transformada em três Pelotões, e mesmo em face aquelas inóspitas condições, lá tivemos que sair para o mato, sendo que apenas saímos com dois Grupos acompanhados dos sempre presentes elementos das milícias, com alguns dos quais estabeleci fortes laços de amizade, e alguns carregadores que sempre nos acompanhavam, (estes elementos eram recrutados entre a população e iam sem qualquer armamento levando em bolsas adaptadas as granadas de Bazooka e de morteiro e aos quais era pago uma quantia ridícula; desta vez tive, ao vir atrás trocar impressões com alguns camaradas, pois o meu lugar era como de costume o segundo, no caso logo atrás do Malan, a desdita de verificar que um destes pobres apresentava indícios de sofrer de poliomielite ou qualquer outra doença, pelo que lhe era bastante difícil caminhar; mas coitado pelos míseros pesos=escudos que iria receber lá ia sujeito a por ali ficar. Que desumanidades cometemos.
Lá avançámos a caminho do objectivo debaixo daquela tempestade do fim do Mundo, encaminhamo-nos, depois de atravessar a tenebrosa mata da Bianga, período durante o qual se afastou o temporal a que se seguiu um opressivo silêncio e escuridão de tal monta que tivemos de nos agarrar todos ao elemento da frente e onde amiudadas vezes caíamos ou batíamos com a cara na coronha da arma desse elemento, valeu-me nesta aflição ser o segundo logo atrás do Malan Sanha e as suas roupas serem mais claras. Aproximamo-nos do Rio Geba e ouviam-se nitidamente, para além de indecifráveis e misteriosos ruídos, uns estalos secos, que mais pareciam tiros à distância.
Questionei o Malan Sanha!
E este na sua superioridade cultural e calma placidez apenas disse: - É a mar… Rios, é a mar…
É verdade, os estalidos provinham do tarrafo que crescia a esmo à beira dos canais do Geba e em todas as enchentes de maré estalavam muitos e provocavam aqueles ruído seco.
Prosseguimos e ao alvor da madrugada entrámos no objectivo: afinal uma tabanca com todos os vestígios de ter sido abandonada recentemente e onde havia um imenso laranjal onde nos abastecemos, após o que regressámos sem incidentes e em menos de um quarto do tempo a Fulacunda.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9302: Fragmentos da minha passagem pela tropa (Carlos Rios) (5): Fragmentos Genuínos - 3
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