terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9396: Memórias de Manuel Joaquim (5): Raios e Carícias


1. Mensagem de Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 6 de Janeiro de 2012:

Meus queridos camaradas
Na sequência da resposta que dei à mensagem do Luís Graça, com data de 17/janeiro, envio este pequeno texto.

Um afetuoso abraço
Manuel Joaquim


Guiné, 1965/67 – RAIOS E CARÍCIAS

Raios das tempestades que nos cegavam e, ao som dos trovões, pareciam dizer que não éramos benvindos.
Raios de sol dourados, belos e acariciantes, furando a copa da floresta para beijarem o seu chão, mas impotentes para nos afastarem do medo, da dor e da morte.
Raios saídos da boca das armas violando, inesperada e despudoradamente, os silêncios da floresta ou das suas sagradas clareiras, feitas altares de sacrifício em favor de um qualquer deus desconhecido.
Raios dardejantes vindos do deus Sol para nos crestarem, raios sedentos e impassíveis que nos roubavam a água sem pejo em nos matarem.
Raios suaves do luar que, parecendo banharem-nos com carinho, nos abandonavam de repente, atirando-nos para a escuridão ameaçadora da noite.
Raios que fulminavam, mas não a triste solidão nem as espessas trevas que por vezes nos envolviam a alma.
“Raios” inesperados saídos do amor, da amizade e da camaradagem que nos davam força e coragem para aguentar.
“Raios” de palavras que tentavam atingir certas ideias, achadas estranhas e perniciosas.

Carícias que saravam, outras agravavam a dor.
Carícias inesperadas vindas de olhares inesperados, sinais de que ainda havia mundo para além da “nossa guerra”.
Carícias traiçoeiras vindas dos lodos do tarrafo ou da neblina da bolanha.
Carícias dos poentes flamejantes saturados de cores púrpura, vermelho e ouro que nos deixavam esmagados com tanta beleza.
Carícias do crepúsculo que em vez de apaziguarem nos aumentavam o temor da noite próxima.
Carícias das gotas de chuva escorrendo-nos pelas faces, lentamente namorando as de suor, envoltas nos aromas fortes e fecundos da terra.
Carícias ausentes quando delas precisava a nossa alma, ao ver-se vergastada por medos e angústias e mesmo pelo horror.
Carícias recebidas nas palavras dos entes queridos que nos amparavam em momentos de solidão e desamparo.

Raios e carícias, ainda me lembro bem. Foram um fortíssimo tempero naquela famigerada “comida” que me serviram na Guiné. E acho esquisito ver-me hoje a acariciar estas recordações. Com mil raios, aguentei e ainda por aqui ando!
Raios partam as guerras! Raios partam os governos que as alimentam! Raios me partam se não foi verdade tudo isto!
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9374: Memórias de Manuel Joaquim (4): Que parvo que eu fui, e uma mãe que apanhou um grande susto

2 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Raios que tenho que te enviar um abraço.
Li, voltei a ler e deixei-me embalar nas palavrideias que me iam surgindo.

Dava para muito falar, escrever e recordar. Raios partam que "coisa" esta que nos persegue, nos atormenta, nos faz sentir lá regredindo décadas?

Carícias...no meio daquela bestealidade havia. Havia e eu vejo-a hoje como ontem...

Raios partam vou fechar esta merda.
Amanhã se abrirá.
Abraço T

antonio graça de abreu disse...

O comentário não é meu, é do Padre António Vieira (1608-1697) e está logo a seguir à Introdução na pag. 11 do meu "Diário da Guiné":

"É a guerra aquele monstro que se sustenta de fazendas, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta."