1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.
Camaradas!
Esmiuçando “As Minhas Memórias de Gabu”, confesso que ao largo da minha comissão na Guiné, reduzida, entretanto, para 13 meses face à Revolução do 25 de Abril de 1974 que originou a libertação dos povos de Angola, Moçambique e Guiné, deparei-me com as mais dispares situações protagonizadas por um povo que me transmitiu, a espaços, autênticos sinais de alerta.
Viajando pelo seio de uma população onde predominavam as etnias fula e futa-fulas – o chão fula no seu verdadeiro êxtase – recordo alguns dos preconceitos tribais que impunham, e continuam a impor, caricatas leis num tabuleiro civilizacional de facto débil. É certo que as ditas leis do povo eram, e são, demasiado ténues e desprovidas de princípios humanos considerados minimamente aceites. Todavia, a comunidade, feita aos costumes, não se recusava em dar continuidade aos seus ancestrais saberes adquiridos na base de experiências acumuladas.
Os jovens da tabanca despertaram-me para ínvios caminhos que confluíram na contemplação de rostos de inocência. Não é fácil, e assumo, mexer com as sensibilidades do próximo, principalmente quando o tema recai sobre questiúnculas pessoais e sobretudo com imposições sobre crianças desprotegidas. O chamado fanado é, tal como sempre, uma temática que assenta numa difícil aceitação. Diria mais: inaceitável no contexto de uma sociedade livre e principalmente aberta ao conceito de múltiplas opiniões.
Aliás, a omnipotência do assumir da razão, a meu ver, cai normalmente por terra a partir do momento em que ao mais fraco lhe é retirado o direito em reclamar a sua própria inocência. E no caso do fanado a criança não possuía literalmente o direito de reclamar o acto ao qual forçadamente se sujeita (va).
Sei que o tema tem sido rebatido amiúde no nosso blogue. Serei mais um a tentar decifrar o rito indígena com o qual me confrontei, melhor, confrontámos. O secretismo do acto era religiosamente respeitado. Sabíamos da sua existência e nada mais. No terreno ficavam apenas imagens de jovens entregues aos seus rituais étnicos e transmitidos de geração para geração.
O texto que a seguir apresento faz parte de um livro que tenciono editar em breve, relatando experiências em solo guineense e que ainda hoje guardo escrupulosamente no meu interior. Será uma obra onde trago à estampa “As Minhas Memórias de Gabu – 1973/74”, sendo o prefácio do livro de Luís Graça, Fundador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
As crianças são pequenos seres que mexeram, e mexem, com a minha sensibilidade pura!
O seu olhar reflectia uma extrema inocência. Os seus rostos, meigos, imploravam uma paz que teimosamente se esvaziava no infinito do horizonte. As crianças são pequenos seres que sempre me despertaram múltiplos sentimentos. Gosto de crianças!
A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela minha inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados na tabanca escondida no mais denso mato ou na sua orla, mexeram, também, com a minha sensibilidade.
Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente desoladoras. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia condições às populações para uma sobrevivência alegadamente desumana.
Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era luz eléctrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem brinquedos Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… NADA!
À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!
Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum depararmo-nos com grupos de jovens no mato que iam ser submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que entretanto se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exacta que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, diziam.
Mas as coisas, porém, não eram bem assim. Se no caso dos rapazes a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos hoje que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente em Portugal e na Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são de resto realizadas em separado (rapazes e raparigas). Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (e em geral islamizadas). É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde, a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanadotradicional.
O método, francamente rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.
A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que entretanto tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.
As crianças conviviam, também, com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.
Um espelho de sobrevivência!
Camaradas!
Esmiuçando “As Minhas Memórias de Gabu”, confesso que ao largo da minha comissão na Guiné, reduzida, entretanto, para 13 meses face à Revolução do 25 de Abril de 1974 que originou a libertação dos povos de Angola, Moçambique e Guiné, deparei-me com as mais dispares situações protagonizadas por um povo que me transmitiu, a espaços, autênticos sinais de alerta.
Viajando pelo seio de uma população onde predominavam as etnias fula e futa-fulas – o chão fula no seu verdadeiro êxtase – recordo alguns dos preconceitos tribais que impunham, e continuam a impor, caricatas leis num tabuleiro civilizacional de facto débil. É certo que as ditas leis do povo eram, e são, demasiado ténues e desprovidas de princípios humanos considerados minimamente aceites. Todavia, a comunidade, feita aos costumes, não se recusava em dar continuidade aos seus ancestrais saberes adquiridos na base de experiências acumuladas.
Os jovens da tabanca despertaram-me para ínvios caminhos que confluíram na contemplação de rostos de inocência. Não é fácil, e assumo, mexer com as sensibilidades do próximo, principalmente quando o tema recai sobre questiúnculas pessoais e sobretudo com imposições sobre crianças desprotegidas. O chamado fanado é, tal como sempre, uma temática que assenta numa difícil aceitação. Diria mais: inaceitável no contexto de uma sociedade livre e principalmente aberta ao conceito de múltiplas opiniões.
Aliás, a omnipotência do assumir da razão, a meu ver, cai normalmente por terra a partir do momento em que ao mais fraco lhe é retirado o direito em reclamar a sua própria inocência. E no caso do fanado a criança não possuía literalmente o direito de reclamar o acto ao qual forçadamente se sujeita (va).
Sei que o tema tem sido rebatido amiúde no nosso blogue. Serei mais um a tentar decifrar o rito indígena com o qual me confrontei, melhor, confrontámos. O secretismo do acto era religiosamente respeitado. Sabíamos da sua existência e nada mais. No terreno ficavam apenas imagens de jovens entregues aos seus rituais étnicos e transmitidos de geração para geração.
O texto que a seguir apresento faz parte de um livro que tenciono editar em breve, relatando experiências em solo guineense e que ainda hoje guardo escrupulosamente no meu interior. Será uma obra onde trago à estampa “As Minhas Memórias de Gabu – 1973/74”, sendo o prefácio do livro de Luís Graça, Fundador do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
As crianças são pequenos seres que mexeram, e mexem, com a minha sensibilidade pura!
Jovens da tabanca
Rostos de inocência
A minha passagem pela Guiné – Gabu – ficou também marcada pela minha inequívoca afeição aos miúdos guineenses. Num flash às minhas memórias a sensibilidade das garotas e garotos, nascidos e criados na tabanca escondida no mais denso mato ou na sua orla, mexeram, também, com a minha sensibilidade.
Deparei-me com rostos que me transmitiam visões verdadeiramente desoladoras. Crianças que não conheciam o prazer de brincar. A guerra, essa maldita realidade constatada no terreno, impingia condições às populações para uma sobrevivência alegadamente desumana.
Crianças que não conheciam o prazer de saborear um pudim flan e que não sabiam o que era luz eléctrica e a água canalizada. A tabanca, o seu doce lar, apresentava condições muito débeis. Não tinham camas e nem brinquedos Os seus corpos descansavam sobre um pano garrido que apelidavam de colchão. No interior da tabanca pouco existia. Não havia móveis nem talheres de prata para receber um ilustre convidado. Olhava e via-se… NADA!
À porta da tabanca, os cuidados da mãe passavam por bater a mandioca enquanto as crianças, por vezes infestadas de moscas, esperavam encarecidamente pelo momento em que as migalhas lhe caíssem a jeito. Noutras ocasiões era o arroz que atendia os seus desejos. Comiam com as mãos!
Nas alturas do fanado, uma festa tradicional nalgumas etnias indígenas, era comum depararmo-nos com grupos de jovens no mato que iam ser submetidos a um rito de passagem, um processo cultural, de resto, fundamental em qualquer sociedade humana que é a iniciação dos rapazes e das raparigas à idade adulta. A minha ideia inicial sobre o fanado - minha e de muitos dos meus camaradas na época - era de que se tratava de uma espécie de operação primária, feita por métodos obsoletos utilizados pelos homens e mulheres grandes aos jovens que entretanto se preparavam para despontar para uma vida sexual futura, isto é, na fase exacta que implica a passagem da puberdade para a idade adulta. Sabíamos vagamente - já que a cerimónia era secreta - que os seus órgãos genitais, pénis e vagina, sofriam pequenos cortes focais, sendo a sua principal finalidade manter a tradição dos antepassados. Era uma pequena cirurgia dolorosa, diziam.
Mas as coisas, porém, não eram bem assim. Se no caso dos rapazes a microcirurgia se resumia ao corte do prepúcio, no caso das raparigas trata(va)-se de uma autêntica Mutilação Genital Feminina (MGF). Sabemos hoje que a excisão do clítoris e dos grandes lábios nas meninas, era, e é, uma prática inaceitável à luz dos direitos humanos, e como tal um crime, penalizado pela lei dos Estados modernos, designadamente em Portugal e na Guiné-Bissau. Porém, a lei está longe de ser cumprida na Guiné-Bissau, face ao atavismo desta prática milenar e ao secretismo das cerimónias, que são de resto realizadas em separado (rapazes e raparigas). Por outro lado, as fanatecas (mulheres que fazem a excisão feminina) têm ainda, em termos simbólicos e materiais, um grande peso nas comunidades mais tradicionais (e em geral islamizadas). É, no fundo, uma prática - para a qual é necessário encontrar alternativas - de há muito denunciada e combatida pela Organização Mundial de Saúde, a que acresce as suas graves implicações para a saúde sexual e reprodutiva das mulheres que são submetidas ao fanadotradicional.
O método, francamente rude, era feito com facas de mato entre outros apetrechos caquécticos e as feridas curadas com mesinhos caseiros, asseguravam os antigos sofredores.
A juventude da tabanca era cordial. Recebiam-nos com carinho. Acontecia, e disso sou testemunha, que, com chegada da tropa branca a algumas das tabancas, a miudagem parecia “coelhos” a correrem directos às suas tocas. Deparávamo-nos, então, com os seus pequenos olhos luzidios a espreitarem do interior das tabancas os intrusos que entretanto tinham chegado. Depois tudo voltava à normalidade, os miúdos aproximavam-se e o convívio conhecia um novo rosto.
As crianças conviviam, também, com as agruras da guerra. Trabalhavam no campo a par das suas mães. O pai descansava. Semeavam o milho, a mancarra, criavam galinhas, cabritos e colhiam os frutos que a Natureza gentilmente lhes oferecia.
Um espelho de sobrevivência!
Crianças da tabanca encantavam-me
Uma criança da tabanca transporta um irmão às costas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
2 comentários:
Caro José Saúde
Continuo a acompanhar com interesse este teu repositório da memória.
E vê-se, como em outros artigos, como a tua postura foi sempre um pouco 'mais além' da mera presença militar, estiveste sempre a observar, a procurar conhecer, a aprender (porque não?), a comunicar.
E o teu humanismo não se faz rogado em aparecer ao longo destas tuas intervenções.
Continua, amigo.
Abraço
Hélder S.
Amigo José Saude,
O tema que hoje trazes a estampa é muito importante e oxala tivesse eco junto dos demais, em especial da nossa populacao e assim contribuir para ajudar a neutralizar esta pratica em africa.
A necessidade de acabar com a pratica da mutilacao genital feminina, devido as consequencias negativas na saude da mulher, é hoje tao consensual que deveria ser automaticamente aceite e aplicado por todos, de forma generalizada.
Mas, se isto nao se verifica é porque existem razoes internas, profundas, enraizadas na cultura ancestral (social e religiosamente falando) é verdade, mas também, existem outros motivos e um deles é o facto de esta campanha mundial ser de iniciativa europeia, mais uma e logo suspeita!!! E porqué?
ha um proverbio africano que diz: - Quem ja teve um encontro com um "kancuran" de certeza que tera medo do bagabaga, que é mesmo que dizer: Gato escaldado tem medo de agua fria.
Depois de tudo o que (de bom e de mau) aconteceu no encontro entre europeus e africanos o que garante que as ideias vindas de europa sao completamente isentas, humanistas e desprovidas de "arriere pensé"?
Sem necessidade de voltar muito atras na historia, lembro simplesmente que na Nigeria, e provavelmente em toda a africa, ja se viram campanhas de vacina (para a saude das criancas!?) transformar-se em campanha para servir-se de cobaias humanas.
A africa deve acreditar?!...
A africa deve acreditar na europa e na ciencia!?.. Entao nao é essa mesma europa e a sua ciencia que, em tempos, considerava o africano ligeiramente superior ao macaco das florestas tropicais e digno de ser obrigado a trabalhar!?..
A africa deve mudar?!...
Para que sentido!? Norte, sul, leste...ao capricho e gosto dos europeus?!
Apesar de tudo, ainda ha pessoas que ficam admirados pelo facto de os africanos resistirem e nao aceitarem factos cientificamente comprovados. Mais que uma simples teimosia de carater cultural das nossas populacoes, na minha opiniao, é a confusao e o desnorteamento que criam a resistencia a mudanca e nao ajudam os voluntarios das boas intencoes (atencao, de boas intencoes...)
Um grande abraco,
Cherno Baldé
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