sábado, 28 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 - P9411: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (13): Vícios ou frutos da época

1. Em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2012 o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua "outra" memória:


Outras memórias da minha guerra (13)

Vícios estranhos ou
Frutos da época

Regressei de Angola, onde estive a trabalhar, logo após o 25 de Abril/74. Vim de férias (“graciosa”, 4 a 5 meses com prolongamento). Como funcionário camarário, beneficiava de todas as regalias da função pública, às quais se juntavam ainda os benefícios de compensação pelo isolamento e/ou perigosidade.
Para receber os vencimentos tinha que me deslocar a Lisboa, ao Ministério do Ultramar (ou Defesa Nacional), ali para os lados de Belém.


Naquele dia, como cheguei mais tarde a Lisboa, aproveitei para almoçar na zona ribeirinha e esperar pelas 14,30 para ir receber o vencimento.

Após o almoço, abeirei-me do Tejo, onde me chamou a atenção um jovem Cabo Miliciano, que olhava o horizonte, lá para o Farol do Bugio.

- Então, como vai essa peluda? – perguntei-lhe.
- Peluda, não. Direi mesmo que estou aqui f….. com a p... da tropa.
- Não me digas? Agora que se deu o 25/A, em que andais por aí à balda, de cabelo à Beatle e livres de ir para a guerra! – Interpelei.
- Pois, pois, mas isto ainda está muito confuso. – respondeu o jovem, que continuou:
- Ainda estão militares a ir lá para fora e o filho da p… do meu Sargento quer mandar-me para lá.
- Mas o Sargento não tem assim tanta força para isso? – perguntei.
- Este tem. É que eu há dias, no comboio, entusiasmei-me com esta coisa do 25/A e contei a um Furriel a marosca em que o sargento andava envolvido. Pensei que o Furriel era miliciano e, afinal, era outro chico e amigo do Sargento. – confessou o militar preocupado.

E continuou:
- Estava a contar sair por estes dias, tenho a namorada já grávida, lá na terra, perto de Amarante, e o Capitão, que também deve mamar, já me avisou:
- Ganha juízo, se não ainda levas com uma guia de marcha especial.

E continuou:
- Os chicos protegem-se uns aos outros.
- Também nunca gramei esses gajos. – disse eu e acrescentei:
- Estive na Guiné e passei por muitas merdas, mas procurei afastar-me sempre dessa cambada. Embora tenha de confessar que, afinal, havia alguns a merecer alguma consideração. Mas, afinal, como é possível essa preocupação?
- Trabalho no SPM – Serviço Postal Militar. É por ali que passa toda a correspondência militar, incluindo as encomendas. Aquilo presta-se a muita vigarice. Há cartas em que o dinheiro sai com facilidade e, nas encomendas, há uma percentagem grande que fica por ali. Por outro lado, há encomendas de contrabando que não entram nos registos. E como eu não queria nada, deixaram-me em roda livre, sem serviço e sempre desenfiado. Só que agora, meti o pé na poça e eles não perdoam.

E continuou:
- Há lá um grupo de Sargentos e Furriéis com o vício de jogar. E jogam forte. Este Sargento, quando mete a mão ao bolso, até diamantes lhe aparecem nas mãos. Ele tem um colega que está nos Adidos, ali na Travessa da Calçada, atrás da Ajuda, junto do Lanceiros 2, que, muitas vezes, vai lá jogar. Ainda é mais viciado do que o meu Sargento. Mas, agora, anda como uma barata, devido à diminuição de mortes no Ultramar.

- O que é que isso tem a ver com o assunto? – perguntei. Ele logo respondeu:
- O gajo deve ser o responsável pelo armazém onde passam os militares mortos. Já estava muito habituado ao rendimento das madeiras caras, que vêm a servir de caixões. Ele deve vender bem essas madeiras exóticas.

**********


Uns seis anos depois, por altura das festas do S. Gonçalo, participámos numa prova de canoagem no Rio Tâmega. A largada, acima de Fridão, lançava-nos, em pequenas pirogas, para os vários perigos, bem patentes em quedas, rápidos, correntes e redemoinhos. Vencê-los era um prazer incrível. A nossa chegada junto da ponte, era um espectáculo. Logo que cortávamos a meta, deleitávamo-nos a olhar para o publico ruidoso que ocupava todos os espaços envolventes. Grandes momentos da minha canoagem!

Enquanto aguardava a distribuição dos prémios, sinto uma mão no ombro esquerdo:
- Não se lembra de mim?
- Não, não estou e ver… como. – respondi

Ele continuou:
- Há uns anos estivemos a conversar em Belém, junto ao rio, estava eu f….. que não sabia que fazer à p… da vida.
- Sim, sim, já me lembro. - respondi e aproveitei logo para perguntar:
- E então, como é que te safaste?
- Olha, tenho a agradecer muito o teu conselho. Acabei por contar tudo a um oficial de confiança e bem identificado com a revolução. Não o fiz como acusação, mas sim como defesa do que me poderia vir a acontecer.
- E depois? – Perguntei, bastante curioso.

E ele continuou:
- Foi porreiro! Deixaram-me em paz, tratavam-me como um lord e mandaram-me logo embora. As coisas correram de tal maneira bem, que ainda hoje estou convencido de que foi milagre. Todos os anos aqui venho, ao S. Gonçalo, para agradecer essa graça, juntamente com a mulher e este rapazola que já quer ir para a canoagem. “Nasceu antes do tempo”, mas vai ser um grande campeão!

Silva da Cart 1689

Foto da Torre de Belém retirada do site Sir burro nem tanto, com a devida vénia
Foto do Farol do Bugio retirada do site Jornal da Região, com a devida vénia
Foto do Rio Tâmega em Amarante ©: José Ferreira da Silva
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9331: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (28): A guerra em Dunane

Vd. último poste da série de 23 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9260: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (12): Madrinha de guerra e... amor

5 comentários:

Anónimo disse...

Já há muito tempo que não visitava o blog. Em má hora aqui vim para ler esta posta onde um "chico" (neste caso sargento)andava com diamantes no bolso e fazia fortuna com madeira exótica (dos caixões?)! E é isto "uma memória de guerra"! Haja tino!
João Mendes

Unknown disse...

Pode ser um romance histórico, Zé, mas todos sabemos como eles se governavam. Cá e lá. Sei do que fálo, não é verdade ?

Anónimo disse...

estou de acordo com o João Mendes gostava de ver boas anedotas bem contadas mas esta saíu ao lado, gostava de ver alguem dizer que foi a Bissau fazer ezame para a carta de condução lista branca e ter de dar mil paus ao 1º para passar mas isso não interça a que o fez um dia quando for para a reforma conto mais anedotas reais um abraço muito grande porque já somos grandes J. Eduardo Alves

Anónimo disse...

Nunca podemos nem devemos esconder de nós próprios o «xico-espertismo» nacional.

Somos capazes do melhor e do pior, caso contrário não eramos nós, e talvez nem existíssemos como país.

Podemos contar as anedotas que quizermos, que nunca retratam todo o «nazionalismo», (xico-espertismo)que carregamos dentro de nós.

Houve muitos "xicos" na guerra do Ultramar, mas não foi apenas sargentos.

Antº Rosinha

Silva da Cart 1689 disse...

Caros Camaradas
Mais de uma vez já referi que não gostaria de contar algumas histórias. Não as escrevo por prazer nem para gozo de ninguém. Porém, elas existem e, quanto a mim, devem ficar registadas. O nosso silêncio não anulará nenhuma delas.
Ao falarmos dos “chicos” da tropa (militares do quadro permanente – predominantemente da classe de sargentos), vêm-nos logo à memória imensas histórias, onde testemunhámos chico-espertismo, abuso de poder, vigarices e autênticos roubos.
Todavia, teremos que salvaguardar que:
1º - Não devemos generalizar;
2º - Conhecem-se comportamentos reprováveis, no seio de outras classes militares.
Nota: Se verificarem a Caderneta Militar destes servidores da Pátria, notarão o registo dos louvores que sempre lhes foram atribuídos, em cada comissão de serviço,Afinal, Eles é que eram os profissionais.
Um abraço