segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9539: (In)citações (37): O topónimo fula Tabassai (e não Tabassi)... e a lealdade dos fulas, aliados dos portugueses (Cherno Baldé / José Manuel Dinis)



Carta da Colónia da Guiné (1933) > Escala de 1 / 500 mil > Localização de Tabassá  

Fonte: Portugal. Ministério das Colónias, Comissão de Cartografia,  1933




Guiné > Zona leste > Carta de Pirada (1957) (Escala 1/25 mil) > Localização de Tabassi (ou Tabassai ?)


Guiné-Bissau > Mapa, 1981 (Escala 1/500 mil) > Edição do Instituto Geográfico Nacional de França (1981) > Detalhe > Posição de Tabassi (a vermelho)



1. Comentário de Cherno Baldé, técnico superior da administração pública da República da Guiné-Bissau [, foto a seguir, com os filhos, na festa do Tabaski], com data de 24 do corrente, ao poste P9522

Caro José Dinis e prezados Editores,



(i) Eu presumo que houve um erro de grafia [na carta de Pirada, de 1957], pois a fonia "Tabassai" é a mais conhecida. A palavra ou a junção das palavras (Taba e Say)é seguramente de origem mandinga como é o caso de quase todas as localidades da zona norte e leste (p.ex. Farim, Kaabu, Bafatá, Badjucunda, Kuntuba, Fadjunkito, Paunca, Tabató). 

De uma forma geral, todos os topónimos que começam com o prefixo "Can/kan/Gan", "Ba/Fa", "Man" e os que terminam com o sufixo "to/ta", "do/din", "cama/cunda",[ referem-se a localidades] conquistadas pelos fulas na segunda metade do séc. XIX.
(ii) Mudando de assunto, foi com alguma curiosidade que li as notas de apresentação do José Dinis relativamente à sua zona de atuação durante a sua comissão na Guiné e sobre o conhecimento que pretendia ter sobre as populações locais, fulas na sua maioria, penso que, certamente, já teve tempo e oportunidade para mudar de opinião em alguns aspectos.

Embora esteja de acordo com ele sobre as suas observaçõ
es em relação ao apego dos fulas à religião muçulmana, que não tem, nem hoje nem ontem, nada de reprovável em si a não ser do ponto de vista etnocêntrico de quem quer impor a sua ordem e sua lógica das coisas, que na altura se chamava "colonialismo" . 

Infelizmente, não concordo com ele quando diz que "as populações manifestavam colaboração mas assumiam uma posição neutral em relação ao IN, de maneira a, agradando a uns, não desagradar aos outros".

Caro José Dinis, o comportamento das populações camponesas em todos os teatros de guerra é quase sempre a mesma, ou seja,  de quase neutralidade com o conflito em si. Isto é válido tanto em África como na Ásia ou América-latina, o grande Che Guevara também observou e escreveu sobre o mesmo assunto.

Não obstante, a posição das populações fulas durante a guerra era muito clara, tão clara que ficou escrito nos anais da história do PAIGC, de Cabral e da Guiné; tão clara que, logo depois da independência, a primeira medida que tomaram foi cortar a cabeça, aniquilar as chefias tradicionais e militares que lideraram a oposição e tomaram o partido da aliança com os portugueses. 

Durante a guerra, eu vivi sempre na charneira entre a população nativa e os militares portugueses e sempre pressenti esta desconfiança latente da tropa em relação às populações, e quase sempre, de forma absolutamente injustificada.

Os fulas, à semelhanca dos portugueses, foram ingénuos e não conseguiram fazer a leitura correta do sentido da história e pagaram por isso. No caso especifico dos fulas pode-se mesmo dizer que vão pagar, ainda, por muito mais tempo, incluindo várias gerações, por uma aliança onde nem sequer tinham o crédito que mereciam pela sua fidelidade.

Um grande abraço a todos,

Cherno Baldé 


2. Resposta de José Manuel Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71) [ na mesma data, em comentário no mesmo  poste P9522 :

Caro Cherno, Camaradas,

Muito obrigado pelo teu comentário esclarecedor em duas vertentes.



A primeira parte tem a ver com a grafia toponómica de Tabassai, geralmente expressa nas cartas geográficas por Tabassi.

Concordo com a tua ilação sobre um erro gráfico nas cartas (serão só as de origem portuguesa?) , hipótese que já me tinha colocado, e por essa razão tem-se perpetuado. Assim, talvez se deva chamar a atenção, não só para o Instituto Geográfico e Cadastral, como para o Departamento congénere do Exércto, e a autoridade da Guiné.

Quanto à segunda parte do teu comentário, apesar da tradicional colaboração, ou pretensa proteção dos Fulas em relação à antiga autoridade portuguesa, tive essa experiência por via de diferentes contactos, mas também me lembro de termos sentido alguma dificuldade em relação a alguns elementos da população, apesar de, no geral, serem de grande alegria e afabilidade as relações da tropa com a população. 

Por acaso, reporto-me a Tabassai, para referir que for transformada em aldeia em auto-defesa e, para o efeito, recebeu algumas armas G-3, praticamente novas. Todavia, apercebi-me de que as armas não eram vistas. Nunca observei algum popular com a sua arma. E tive até uma chatice com o chefe da tabanca, porque, mostrando-se solícito em busca dos elementos da auto-defesa, nunca encontrou algum, nem armas. 

Um dia, que tínhamos aprazado para o efeito,mostrou-se desdenhoso comigo, pelo que lhe retirei duas granadas que, na ocasião, ostentava à cinta. Dei conhecimento do facto ao capitão e desinteressei-me do caso. Sei que desautorizei uma autoridade, mas constava que as armas tinham levado sumiço, e contavam com a tradicional displicência dos portugueses. 

Seria de considerar, neste caso, pelo menos, uma atitude de diplomacia na aceitação das armas para a prática da auto-defesa, que nunca se concretizou enquanto lá estive.

Também sei que havia tropa que roubava bens à população, pelo que admito que houvesse diferentes estados de espírito nas relações da população com os portugueses.

Além disso, havia aldeias mescladas de raças, ou condicionadas por factores assistenciais ou de ordem económica e social, mais ou menos determinantes de emoções que condicionavam as relações. 

Mas registo a informação que prestaste, e afirmo a minha repugnância pelos actos de vingança gratuita que incidiram sobre famílias tão sofridas.

Um grande abraço
JD



3. Comentário do editor:


3.1. Na carta da "colónia da Guiné", de 1933, de que se publica acima um detalhe, o topónimo que está grafado é Tabassá... Em 1957, ficou grafado Tabassi, possivelmente por gralha tipográfica... A ser erro, como se deduz depois da convincente e erudita explicação do nosso amigo Cherno Baldé, a grafia tem-se mantido até hoje (nos mapas da Guiné-Bissau, nos mapas do Google...). Seri abom que alguém tomasse as necessárias porvidências para corrigir este erro.


Encontrámos duas fotos, com referência à Tabanca de Tabassi (sic), da autoria do nosso camarada Luís Guerreiro, publicados no blogue do Batalhão de Artilharia nº 2857 (Piche, 1968/70), a cujos editores (Pereira da Costa, Francisco Pereira e José Rocha) mandamos um fraternal abraço, extensivo ao Guerreiro, fotógrafo. (Recorde-se que o Luís, hoje a viver em Monte Real... do Canadá,  foi Fur Mil, CART 2410,  Gadamael, Ganturé e Guileje, e Pel Caç Nat 65, Bajocunda e Buruntuma, 1968/70).



Tabassai, 1970: uma terra de belas mulheres

Fotos: © Luis Guerreiro (2010). Todos os direitos reservados. (Por cortesia do blogue do Batalhão de Artilharia nº 2857 )

3.2. Sobre eventuais brechas na aliança dos fulas com os portugueses, leia-se o que escreveu o comando do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na história da unidade:
Nota do editor:

(...) "As facilidades de transporte, o contacto íntimo com o militar europeu começa a desenvolver na juventude fula (os nossos milícias, os nossos soldados) uma certa atitude de contestação contra a sua situação de subalternidades no grupo social, apesar de constituir a principal fonte de recursos desse mesmo grupo social. E, na medida em que, por conveniência, apoiamos as suas estruturas, pode tal juventude de hoje, seus dirigentes de amanhã, acusar-nos de travar o seu progresso, apoiando o despotismo a que as estruturas a sujeitam, e criando assim uma brecha potencial por onde o PAIGC pode penetrar na lealdade Fula".(...) [Vd.  poste P6437]
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Último poste da série > 30 de novembro  de 2011 > Guiné 63/74 - P9117: (In)citações (36): Para melhor compreendermos a África... (Artur Augusto Silva, 1963)

8 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Antes de mais, quero corrigir duas coisas do atual Poste. Em primeiro lugar, ha um erro no meu comentario anterior, pois deve-se ler "segunda metade do Sec. XIX e nao XVIII e, em segundo lugar fazer uma pequena nuance no titulo do Poste que fala de "...amargura dos fulas..." Bem, nao sei se, por acaso, o meu comentario induz a esta conclusao um tanto ou quanto generalista?... Seja o que for a conclusao nao é minha. Mais importante, para mim, é compreender as causas, proximas ou distantes. Os erros fazem parte da caminhada rumo ao futuro. Todos os dias, eu rezo, para que, da proxima vez que nos reencontrarmos, seja aqui na terra ou algures nos infernos, (espero que seja em paz), estejamos melhor preparados para enfrentar a astucia e o cinismo que até hoje caracterizou os europeus nas suas relacoes com os outros.

Por outro lado, aproveito felicitar as excelentes observacoes do Comando do BART 2917 (1970/72) que, na minha opiniao, sao bem fundadas. As futuras geracoes dos fulas que conviveram de perto com os portugueses nunca seriam tao servis como as velhas geracoes de "auxiliares" de fundilho branco e pés descalcos que se contentavam com os despojos de guerra e isto era visivel a olho nu. Penso que é logico e faz parte da evolucao normal das sociedades, tanto mais que ja eram geracoes letradas.

Entre 1974/75, a escola secundaria de Bafata, foi invadida, literalmente, por uma avalanche de estudantes (mais de 1000 criancas)que tinham vindo de localidades por onde tinham passado militares portugueses (aquartelamentos), inclusive representantes de Tabassai, onde pela primeira vez ouvi este nome. A maior parte dos quadros do pais pertence aquela geracao.

Um abraco amigo sem amargura.

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Camaradas,
Fico surpreendido com a ausência das Dingas, um conjunto de 3 (?) pequnas aldeias que se situavam a sul de Copá, talvez a uma latitude abaixo de Canquelifá, e que terão tido o seu termo com as investidas do PAIGC em 1970.
Provavelmente foram aldeias de curta duração e formadas em ocasião posterior à carta de 1933.
Sobre a jovem fotografada pelo Luís, parece-me uma que habitava na primeira morança, do lado esquerdo, da aldeia. Será?
Abraços fraternos
JD

Antº Rosinha disse...

É por estas e outras que devíamos ler escritores africanos a escrever sobre eles próprios.

E escreverem de maneira a que todos os europeus que passaram por lá compreendessemos aquilo que vimos.

Mas esses escritores não aparecem nem pela lei da porra! Nem em francês nem inglês.

Cherno, eu sei que tu sabes que eu não sei nada nem crioulo consigo falar.

Mas vou-te contar uma história passada nos Mamhuilas, comigo e vários colegas, alguns antigos estudantes da casa império dos tempos de Amilcar e outros.

Andava eu e vários colegas a fazer o mapa de Angola na região do Lubango.

Uns colegas iam para sul outros mais para norte e outros para outras direcções.

No fim da campanha, os trabalhos de uns deviam unir com os dos outros.

Fazer o "mosaico"!

E qual não é o espanto que vários colegas tinhamos registado o mesmo nome de rios, em várias latitudes.

Esse nome era simplesmente traduzindo para português "Não sei"
"Ká sibi" em crioulo.

Cherno, eu tinha pouco mais de um ano de Angola, mas muitos dos meus colgas tinham nascido lá, só que não eram de nenhuma tribo.

José Diniz, nós portugueses, com jeitinho até seremos europeus, como diz o Cherno fomos cínicos para com os africanos.

Mas no nosso caso específico, nós tugas até se poderá dizer que fomos pouquíssimo cínicos, porque colonizamos muito pouquinho.

Se não fossem os 13 anos de guerra, muitas populações continuariam sem conhecer o cinismo europeu.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Como eu gosto do comentário do camarada António Rosinha!
José Brás

Luís Graça disse...

Cherno, meu amigo e meu irmãozinho:

1. O erro factual está corrigido: o fim dos reinos mandingas do Gabu, com a tomada da Kansala pelos conquistadores futafulas djalonkés, é de 1867...

Meu amigo e irmãozinho Cherno: Sabemos muito pouco da história dos nossos amigos fulas, pastores nómadas oprimidos na sociedade mandinga feudal... Fico-te grato pelo que tenho aprendido contigo sobre os teus antepassados...

2. Tens toda a razão quanto ao subtítulo inicial...A expressão "amargura dos fulas" não respeitava o teu pensamento, era "enviesada", logo abusiva...

Substitui "amargura" por "lealdade"... que é isso que me parece estar em questão, para além da "ingenuidade" (de uns e outros, fulas e tugas)...

Deixa-me dizer-te que, como sociólogo, tenho como princípio nunca confundir as "elites" com o "povo", nem as Nações com os Estados...

Faço um esforço, por outro lado, por não ser "etnocêntrico" (que é o princípio do racismo, ou porta aberta para o racismo...). A aceitação do princípio da universalidade do género humano impede-me (impede-nos, a todos nós, seres humanos) de ser (sermos) "etnocêntrico(s)"...

Mas, convenhamos, não é fácil: caímos com relativa facilidade no estereótipo, no preconceito, nas ideias de senso comum... Mas fazemos isso, ao falar dos "fulas", dos "tugas", etc., ignorando ou escamoteando a forte estratificação social que existia nas nossas sociedades...

Estamos a aasistir, todos os dias, ao regresso do etnocentrismo na Europa, na União Europeia, com a atual crise... Há sinais de alguma crispação entre "europeus do norte" (protestantes, luteranos, calvinistas, trabalhólicos, formiguinhas...) e "europeus mediterrânicos" (católicos ou cristãos ortodoxos, perdulários, cigarras)... O racismo não tem a ver com a cor da pele, é muito mais profundo...

Fica bem, em paz, com saúde... Grato também pelas tuas orações, mesmo não sendo eu um crente.

Luís

Anónimo disse...

Caríssimo Mais Velho,
Já aqui referi antes que os portugueses tarão sido os mais peculiares dos colonizadores, porque, muitas vezes, se confundiram com os colonizados, e com eles partilharam idênticas dificuldades, sem a contrapartida pecuniária de exploração, de poder e de subordinação, que caracteriza a colonização.
Mas ao nível da representação da Pátria, dos seus argumentos e dos seus procuradores, houve seguramente astúcia e cínismo, que, repito, envolveram naturais e emigrados. Porque o poder só tem uma preocupação: a reprodução do poder.
E tu Mais Velho, que palmilhaste os recônditos de duas colónias, deves ter encontrado alguns homens e casais, que viviam humildemante, rodeados de filhos com ranho nas narinas, a brincar com os filhos da vizinhança local.
Esses, certamente, não mereciam o epíteto de astuciosos e cínicos, e em parte estariam aculturados.
Mais tarde, com a expansão da emigração branca, e no pressuposto de governos aglutinadores, aquelas sociedades poderiam ter consolidado projectos de desenvolvimento social, que ainda tardam a manifestar-se.
Na Guiné, parece-me, há ainda que atentar na alteração económica e estrutural ocorrida, com consequências sociais notáveis, mas que ainda não permitem o melhor aproveitamento das gentes e dos recursos.
Abraços fraternos
JD

Cherno Baldé disse...

Luis Graca, meu amigo e irmao,

Aceite as minhas sinceras desculpas pela dureza das minhas palavras. Eu sei que voces, antigos combatentes de maneira geral, nao merecem ouvir estas palavras que, no fundo, nao sao dirigidas ao humilde povo portugues e muito menos a voce, um amigo, irmao maior e um mago dos tempos modernos. E também nao fica bem quando estas palavras menos simpaticas vem de alguém que sempre vos estimou e admirou a coragem, a expontaneidade da alegria, da bondade..., e sobretudo beneficiou da presenca portuguesa que, em tempos dificeis, permitiu a sua escolarizacao e educacao em bases que, sem falsa modestia, se pode considerar universais.

A mensagem vai sim, inteirinha, para a europa dos ricos que, verdade seja dita, nos tempos que correm, nos faria um grande favor se, em vez de tentar impor regimes e liderancas em regioes longinquas, se tratassem de curar e curar-se da profunda crise financeira e societal que os afeta, nao deixando que extravase, como sempre acontece, para as periferias e zonas adjacentes.

Muito obrigado a todos pela compreensao e p'los afetos.

Cherno Baldé

Juvenal Amado disse...

Que posso eu dizer sobre isto?
Só posso dizer que gostei, aprendi e que espero mais.
Diferentes sensibilidades que aqui se completaram, é bonito e faz acreditar que há muito mais para falar e dizer, do nosso passado comum.
Pela minha parte obrigado.

Um abraço