domingo, 26 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9536: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (50): Bula, uma nova missão

1. Mensagem do nosso camarada Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 22 de Fevereiro de 2012:

Amigo Carlos Vinhal
Cá vai mais um passo na “Viagem…” acompanhado pelo meu agradecimento ao teu labor disponibilidade e amizade.

Ouvi um destes dias na TV, que finalmente a Guiné tinha ficado expurgada das minas malditas, ainda bem, fico muito satisfeito. Não de propósito mas curiosamente ao mesmo tempo que a minha ”Viagem…” chega até elas!!

Será que as plantadas pelas NT foram todas levantadas ao tempo ou a saída à pressa, pressionada ou não, inviabilizou de todo essa missão? Gostava na verdade de saber.

Pela parte que nos (me) toca, nesse grandíssimo campo em que trabalhamos não terá ficado uma única dessas miseráveis armas cegas, no mínimo estropiadoras e desmoralizadoras! Custou e de que maneira, mas foi conseguido.

Para ti e para todos um abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (50)

Bula – uma nova missão

A canícula de finais de época das chuvas aperta. De pé e talvez a fumar uma cigarrada para descomprimir observo o céu e o meu olhar fica preso num “jagudi” que volteia, talvez a “tirar azimute” a um qualquer petisco cá em baixo na planura. Qual T6 (?) a certa altura lança-se em voo picado e segundos depois, nas proximidades uma explosão atroa nos ares. O meu grito de “foi abutre”, já foi em destempo.

Estava em Bula e já nos “finalmente” da estadia por aquelas terras rubras e verdes de África, cores de sangue e de esperança.
Sem que minimamente o imaginasse são-me trocadas as voltas ao libertarem-me das noitadas aliciantes ao mosquito em emboscadas nocturnas e das longas e cansativas passeatas em grupo, por aquelas matas movimentadas pela concorrência.

Talvez como prémio pelo anterior desempenho, são-me oferecidos descanso aos fins-de-semana e folga nas tardes da semana. Fixe e talvez de meter inveja a muitos, só que e em contrapartida teria de começar a aplicar os conhecimentos adquiridos em aprendizagem anterior e reconhecidos em curso diplomado de nota razoável!

Assim a minha actividade recai de novo no extenso campo de minas, legado do antecessor BCAV 2868 e acrescentado ano e meio antes em cerca de 2 quilómetros (se não erro) pelo nosso BCAÇ 2928. Enquanto que da primeira vez por lá andei a plantá-las, agora a tarefa seria a inversa e “cú-de-boi”: levantá-las!

Nessas lides andei – integrando um pequeno grupo de Alferes e Furriéis “eleitos”, escolhidos não sei com que critério – até antevésperas do final da comissão, altura em que rumei ao Cumeré (de que pouco recordo) e onde há já umas semanas estava estacionada a “FORÇA”, aguardando embarque para regresso à Metrópole num “Boeing” dos TAM.

Para mim e julgo que para todos os “eleitos”, esta fase da desminagem foi talvez a mais desgastante por que passei em toda a comissão. E não era “piegas”como agora se ousa dizer!!! Nem eu nem os que por lá escorrermos suor e dor a que alguns, infelizmente muitos, acrescentaram sangue e partes do seu corpo, da “Razão” e até da Alma!

Tanto e tanto sacrifício para, ao que julgo saber, atrás de nós virem a montar novo campo!

Diz-se e julgava eu que este tipo de campos se passavam, como aconteceu para nós. Isso não aconteceu, talvez por validade ou segurança, não sei. Três ou quatro anos pelo menos, são bastante tempo na verdade, ainda para mais naquelas condições climatéricas e animais passíveis de alterar a morfologia do terreno, podendo deslocalizar por vezes significativamente os engenhos. Pessoalmente tive disso a prova nesse e em especial num outro campo de muito menor dimensão, nas proximidades do rio Cacheu (talvez a contar mais tarde, não sei!)

Nunca me passou pela cabeça que o Comando fosse capaz de nos envolver numa operação dessas, ainda para mais nos finais de comissão, sem forte motivo para tal, sabendo na certa que baixas iriam ser contabilizadas! Foram…e não poucas!!

A propósito veio-me à lembrança um “briefing” a que assisti no Comando do CAOP 1 aquando da preparação de uma operação (em que o comando do GCOMB seria meu). A dada altura ouço, dito de maneira natural pela “hierarquia mandante”, que eram expectáveis DOIS MORTOS nessa operação!!! Recordo que fiquei”gelado” e a pensar no valor que se atribuía a uma vida! Era (é) uma permuta contabilística no jogo das guerras: vidas por objectivos! Graças a Deus não se confirmou o expectável!

Tínhamos passado por muitos apertos, alguns dos quais bem “apertados” onde o receio e medo que se pudesse sentir, era dominado. Honestamente não seria talvez de morrer que sentia medo mas, isso sim, de ficar estropiado e dependente de terceiros, situação que não suportaria nem suporto… era esse o meu “medo real”, que por vezes aflorava em especial antes de saídas e que tinha de controlar e ultrapassar.

No levantamento das minas, em principio a morte não seria tão expectável mas em contrapartida, o estropiamento estava por norma latente e à espera da menor falha, distracção, facilitismo, euforismo, cansaço... até por vezes a reacção instintiva a umas abelhinhas ou um “meter os cornos no chão” ao som de um qualquer rebentamento ou tiro de proximidade relativa devia ser dominado, não fosse uma”maldita ferrar-nos”. Assisti a algumas situações que só por Graça não descambaram em desastre!

Ora como atrás referi, o insuportável para mim e na certa comum, era o estropiamento que me deixasse dependente. Talvez esse receio, esse medo me tenha feito actuar sempre, mas sempre mesmo com extremo cuidado, calma, concentração, segurança e autodomínio nos manuseamentos, aplicando o conhecimento adquirido, não facilitando e abstraindo-me por completo do que me rodeava nesses momentos.

Os cigarros “Português Suave” sem filtro, por vezes fumados de seguida, eram a minha panaceia nos momentos em que precisava de descontrair, de descomprimir até sentir de novo que estava em condições de continuar o trabalho. Só nós próprios podíamos sentir esse estado de espírito, não deixando lugar a influências, pressões e muito menos a imposições! Esta era a verdade, pelo menos a minha verdade!

Muito estava em jogo e não queria fazer parte do “espectável”, justamente agora em final de tempo dessa “jogatina de vida” que se arrastava há quase dois anos!

O “jagudi”, avistado mais à frente no campo, jazia estraçalhado. Prenúncios?!

Luís Faria

Uma equipa de Minas e Armadilhas da CART 2732 neutralizando uma mina anticarro no Bironque
Foto de Carlos Vinhal
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 13 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9478: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (49): Bula - Um acto de coragem

8 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Luís,

Louco que eu fui...um dia, em sobreposição, fui reconhecer algumas dos locais onde estavam plantadas algumas das nossas minas.

Num desses locais, alguém esqueceu-se de me avisar onde estavam elas.

Eram apenas três, plantadas em antigos rodados de viaturas. Valeu-me o facto de nunca ter posto um pé naqueles rodados.

Um abraço amigo,
José Câmara

Anónimo disse...

O Câmara teve a felicidade de nunca ter colocado um pé, naqueles rodados, a minha sorte foi maior.Tirei o mesmo curso que tiraste, tivemos classificação mais ou menos semelhante, (tu eras melhor), e talvez por isso me dispensaram desse petisco. Felizmente para ti, meu bom amigo, regressaste de lá, inteirinho mas camaradas nossos, que como nós tiraram o dito curso e que como tu, lá andaram, muito deles,sairam de lá em maca, por ou ficaram sem pernas ou sem pés.Eu posso dizer que fui um felizardo...

Meu caro, aquele abraço do tamanho do mundo.

JORGE FONTINHA

Hélder Valério disse...

Caro camarada Luís Faria

Impressionante testemunho!
A minha homenagem a ti, e a todos os que tiveram que lidar com essas armas miseráveis.

Um forte e sentido abraço.
Hélder S.

manuelmaia disse...

CLARO QUE COMO SERIA DE ESPERAR,NESSES TRABALHOS DE DESMINAGEM, ESTAVAM "SEMPRE PRESENTES" OS HERÓIS DE PACOTILHA COMO AQUELE QUE SABEMOS QUE CIRANDAVA NO "MATO",ENLUVADO ,DE GALÕES E ÓCULOS RAY-BAN, NÃO É VERDADE,lUÍS ???
abraço
manuelmaia

Anónimo disse...

Camaradas,
É revoltante a hipótese formulada de se perderem dois homens durante uma acção. O Luís não refere, mas o prelector, provavelmente, não foi lá. Seria, talvez, um desses heróis de pacotilha, que carecem de vidas e sangue para "justificarem" as medalhas que ostentam.
Por vezes, quando não podemos evitar a dependência de incompetentes, tratando-se de risco de vida, mais vale contestar e desobedecer.
Essa de, em final de comissão, ir levantar as minas alheias, não lembra ao diabo. Mas o diabo, lá no remanso do gabinete, como não tem saber para fazer, manda quem sabe, e lava as mãos sobre o assunto. As paredes dos seus castelos eram erguidas com minas e restos humanos. Era assim, e pronto!
Deixem-me citar:
"O medonho desperdício de vidas devia-se à ignorância, à falta de iniciativa e de inventiva, a uma arrepiante negligência no que respeita à preparação (e experiência) militar dos quadros,e ao medo de ofender as autoridades superiores.
A segunda espécie de desperdício de forças humanas é a que envolve baixas devido à acção do inimigo como resultado do planeamento inccompetente. O terceiro e mais oneroso tipo de desperdícios humanos é o que resulta de uma política deliberada da desgaste, adoptada por comandantes que consideram os soldados como algo que é para gastar".
Façam o favotr de referir se isto tem algo a ver com o que se passou na Guiné.
Abraços fraternos
JD

Carlos Vinhal disse...

Caro José Dinis
Estou admirado com a tua admiração.
Não sabias que em Bissau ou noutro gabinete de operações qualquer, em qualquer lado, quando se faziam os planos, os mesmos contemplavam as baixas prováveis, alicerçadas em relatórios anteriores?
No dia 23 de Fevereiro de 1972, tinha eu já as malas em cima de uma viatura para ir definitivamente para Bissau, vieram ter comigo para ir levantar uma mina anticarro reforçada com um qualquer explosivo que já esqueci. Não me recusei porque não podia, mas reclamei da minha situação de quase saída e de aquele dia que era o meu último em Mansabá por ser também o meu último de vida se algo corresse mal. O Capitão bateu-me nas costas e desejou-me muitas felicidades.
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Confesso que sinto uma admiração especial pelos "minas e armadilhas".

Do que eu tinha mais medo era precisamente das minas.

Quando foi feito o levantamento dos campos de minas em volta de Gadamael, fui convidado por um furriel para ir ver...e não é que fui.
A determinada altura ouvi um grito ..."QUIETO...NÃO MEXE".
Claro que não me mexi, julgo que até nem respirava...tinha colocado um pé a cerca de 10 cm de uma a/p colocada por cima de uma a/c.
Retirei-me quase sem por os pés no chão e já em zona segura dei aos calcâneos o mais rápido possível.

Que estupidez(minha).

Um alfa bravo para todos os "mineiros e armadilheiros".

C.Martins

António Matos disse...

Compadre Luís, as minas perseguem-me !
Calcula que não venho ao blog há longo tempo mas hoje, via facebook, vim endereçado direitinho a este cantinho estórico para logo te ouvir contar sobre elas !!
Não podia, claro está, deixar de te cumprimentar nesta altura pelo teu texto, quer pela forma quer pelo conteúdo, pois igualmente vivi o que relatas.
Aliás fizemos parelha em muitos dos levantamentos alguns dos quais se afiguraram derradeiros e até chegámos a elaborar um diálogo como se do além nos fizéssemos ouvir um pouco como os perús quando se lhes corta a cabeça e eles continuam a correr pela cozinha até finalmente lhes acabar, quiçá, o reflexo de Pavlov e deitam-se para o chão fulminados.
Quem não conhecer a estória pensará que este discurso será premonitório da loucura que me possa assaltar, mas não !
Acontece camaradas, que eu e o Luís Faria, entre muitas outras peripécias, demos de caras com uma mina ( nossa, a portuguêsa, um calhau imenso de trotil e pregos e ferros )que estava literalmente impregnada de bagabaga.
Decidimos que a levantaríamos.
A operação levou bastante tempo pois a minúcia dos movimentos e a mão certa e não tremelicante, eram imprescindíveis ao sucesso da neutralização.
Finalmente conseguimos desobstruir o pequeno orifício onde colocaríamos a cavilha de segurança !
E começámos a introduzi-la ....
A meio do percurso, porém, o mundo caíu-nos em cima !
O suor saía-nos como se se tivessem aberto as torneiras ....
Olhámos um para o outro e começámos a falar e a perguntarmo-nos como foi possível termos morrido se tudo estava a correr tão bem ?
Passou-se uma eternidade ....
O percutor foi accionado fêz clic ! e nada mais aconteceu ...
A mina estava pôdre !
Levantámo-nos, fomos à estrada, fumámos 2 ou 3 cigarros, e voltámos ao campo para terminar a jorna !
Algures em Bula, na Nave dos Loucos ( sala de operações ) ninguém teve a mínima noção do que se passara ...
E mesmo neste relato à distância de 40 anos, faltou um pormenor : a cena passa-se a um palmo das nossas caras !!!
Abraços