segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Guiné 63/74 - P9542: In Memoriam (112): Lembranças de Cherno Suane, falecido em 24 de Fevereiro de 2012 (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Fevereiro de 2012, lembrando a memória do nosso camarada Cherno Suane falecido recentemente em Lisboa:

Lembranças de Cherno Suane

Em 24 de Fevereiro, nos cuidados intensivos do Hospital de Santo António dos Capuchos, Cherno Suane, depois de 20 dias em coma induzido, tudo produto, ao que parece, de uma infeção respiratória que o prostrou, fartou-se de lutar com as máquinas e deu a alma ao Criador.

Era cidadão português, grande deficiente das Forças Armadas, antigo soldado da 2ª Companhia de Comandos Africana e pertencera ao Pel Caç Nat 52, foi formado pelo nosso confrade Jorge Rosales, no CIM de Bolama, teve como 1º Comandante o nosso confrade Henrique Matos Francisco, andou por Porto Gole, Enxalé, Missirá, Bambadinca e Fá Mandinga. E percorreu toda a Guiné enquanto Soldado Comando.

Dei pelas qualidades deste soldado valoroso em 6 de Setembro de 1968, na primeira flagelação que sofri em Missirá, tinha chegado há pouco, todo aquele foguetório me escapava um pouco ao lado, procurava atinar com as melhores medidas na resposta ao fogo, corria entre abrigos e apercebi-me que havia um apontador de morteiro 60, perlado de suor, que percorria o perímetro sem desfalecimento, fazia o espetáculo sozinho, transportava prato e tubo e uma fieira de granadas ao pescoço. No final da refrega, pedi explicações ao Saiegh sobre tal procedimento e a resposta foi incisiva: o Cherno não tem medo de nada, não precisa de instruções debaixo de fogo.

Em meados de Outubro, Ieró Baldé, conhecido por Nova Lamego, que voluntariamente se propusera a intendência de ser meu guarda-costas, anunciou que ia pedir transferência para a região do Gabu e informava-me que encontrara a pessoa mais idónea para defrontar a Binta Sambu, a temível lavadeira destruidora de roupa de todas as cores, para limpar a G3, para arejar a morança e vir chamar nosso alfero a qualquer hora do dia ou da noite, estava assegurado que onde andasse nosso alfero Cherno Suane colava-se à sua sombra. Começava uma estima profundíssima que vem retratada nas memórias que escrevi neste blogue e que passaram a livros. Foram, tais livros, também dedicados a Cherno Suane. Quando nos separámos, em Agosto de 1970, o Cherno alistou-se na 2ª Companhia de Comandos Africana, se bem que tivesse sequelas de um duplo traumatismo craniano, por obra e graça do acionamento de uma mina anticarro dentro do Cuor (Canturé), a sua folha de louvores e condecorações era impressionante, foi prontamente incorporado.

Com a independência da Guiné-Bissau, iniciou-se o calvário do Cherno, preso sem culpa formada no Cumeré, foi sujeito a humilhações e atrocidades até ao golpe de Nino, em Novembro de 1980, conseguiu depois regressar ao Cuor, onde tinha constituído família e laços profundos ligavam-no aos Soncó e aos Mané. Trabalhou na região de Gambiel na empresa Socotram, unidade de corte e processamento de madeira, um daqueles empreendimentos ruinosos que vinham da era Luís Cabral. Em 1990, volto a Missirá e aí o encontro. Trabalhei depois mais de quatro meses na Guiné, em 1991, consegui tratar dos papéis, o Cherno veio e aqui se radicou. Todo o dinheiro que juntava era para a família, vivia permanentemente à míngua, tiranizado pelas obrigações familiares. Visitávamo-nos regularmente, para ele era sempre um prazer um almoço numa tasca na região de S. Paulo, era ali que comíamos polvo panado. Nos grandes eventos, dava-me a alegria da sua presença, ele, o Queta Baldé, o Mamadu Camará e o Abudu Soncó.

Não sei o que devo escrever para gritar esta ausência. Ele era zeloso, dedicado e grande companheiro. Estou a vê-lo a procurar aplacar o meu choro convulsivo, na minha morança, quando o Cabo Paulo Ribeiro Semedo ficou estropiado na região do Chicri, “Alfero, tem paciência, é a vontade de Deus!”, retirou-me a camisa com pastas de sangue do Paulo e abraçou-me. O que se passou na mina anticarro foi um verdadeiro milagre, basta ver a fotografia e perceber que com o fragor da explosão desapareceu o guincho, onde ia sentado o Cherno. No fim daquela tormenta, quando apontei um foco à procura dele e não o encontrámos, suspeitei que se tinha volatizado, a verdade é que foi descoberto quase a 20 metros de distância, como nos números do circo o sopro atirara-o para bem longe, teve sorte em cair em cima de vegetação, mas veio completamente destroçado, rasgado, demorou meses a recompor-se. E estou a vê-lo na hora da despedida, no Xime, onde fui tomar a LDM para Bissau. O Cherno desapareceu e alguém comentou: “Não gostamos que nos vejam a chorar. O Cherno não voltará a ser guarda-costas de mais ninguém, nosso alfero era para ele um irmão, ele vai ficar à espera que o chame”.

E assim estes homens valorosos vão desaparecendo, deixando buracos negros na consciência de quem perde o seu afeto, fica a memória, a recordação de uma dignidade e postura irrepreensíveis.

Peço desculpa de partilhar convosco esta mágoa sem fim.

Mário
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9516: In Memoriam (111): Joaquim Fernando Ferreira Martins, ex-Fur Mil Inf.ª de Armas Pesadas que cumpriu a sua comissão de serviço no CTI da Guiné entre 1961 e 1963

6 comentários:

Anónimo disse...

Paz à tua alma Cherno! E que os Irâns te protejam, onde quer que estejas!.
E tu Mário mais que ninguém, o recordarás, sempre.

Francisco Godinho,

Anónimo disse...

É tão triste ver desaparecer aqueles que nos são queridos que a lei da morte vai libertando.

Também eu recordo com grande tristeza e amargura o Mamadu Seidi, meu soldado, que em várias ocasiões demonstrou ser capaz de dar a vida por mim.

É tão triste.

Caro camarada Beja Santos, o meu abraço de solidariedade, sinto e sei como te sentes.

C.Martins

Luís Graça disse...

Adeus a um amigo

As montanhas verdes
bordejam as muralhas do Norte,
as águas claras
circundam as muralhas do Leste.
Aqui nos despedimos.
Tu serás a erva
estendendo-se por dez mil li.
Pensarei em ti,
acompanhando o voo das nuvens.
Recorda teu velho amigo
ao pôr do dol.
Acenamos um último adeus
e, no momento da partida,
ouve-se apenas o relinchar dos cavalos.

Li Bai (Séc. VIII)

In Poemas de Li Bai - Tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, 2ª ed. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1996. p. 157.
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A gratidão, Mário, é um dos mais nobres sentimentos de que o ser humano é capaz. O Cherno Suane merece esse testemunho da tua gratidão e amizade.

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Luís Graça

Agradeço-te, do melhor que tenho no coração, teres-te lembrado de publicar este Poema do Li Bai, esta despedida a um amigo. Podia ser este Cherno amigo do Mário Beja Santos, será sempre um nosso companheiro que parte para sempre.
E a vida é curta, sabê-la viver é uma arte. Como escreveu Camões

“Porque enfim tudo passa,
não sabe o tempo ter firmeza em nada,
e a nossa vida escassa,
foge, tão apressada
que quando se começa é acabada.”

Luís de Camões, Odes


Abraço forte,

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Como poderei esquecer o meu pelotão
de 60 homens a quem dei instrução em Bolama, no ano de 1966.
Foi a última missão na Guiné.
No mesmo dia do seu juramento de bandeira, fui para Bissau para regressar a Lisboa.
A despedida no cais de Bolama, foi dos momentos mais marcantes na minha vida.Descansa em Paz, meu amigo.
Jorge Rosales

Anónimo disse...

Conheci e convivi de perto com o nosso amigo e camarada em "Bissau II", guardo dele a imagem de um homem calmo, simpático e amigo de ajudar os outros, pois tenho provas desse seu carácter.
Apresento a minhas condolências a todos os seus familiares
Paz à sua alma
Carlos Silva