Operação Macaréu à vista
Episódio XLI
UM MÊS NOS NHABIJÕES
Beja Santos
O BCaç 2852 parte, o BArt 2917 chega
A primeira semana de Junho é vivida na efervescência da sobreposição. Entre os dias 29 e 31 de Maio, presencio os preparativos e a organização azafamada de sacos, malas e pacotes de quem junta os trastes, os identifica com letra garrafais, vão todos seguir em embarcações que rumam do Xime para Bissau e daqui seguirão para o porto de Lisboa. São dias em que se misturam centenas e centenas de baús e outros haveres com os de quem acaba de chegar. Os novos militares vêm vestidos com fardamento a cheirar a goma, é o aprumo de quem chega ao teatro da guerra e não aceita displicências, a roupa vem vincada. Os que chegam vêm sorridentes mas retraídos, os que querem partir estão exuberantes, falam ainda mais alto, querem entregar tudo, ter os documentos da transição assinados, era o que faltava partir hoje e num amanhã não longínquo ser molestado porque se extraviou uma tesoura corta-arame, um capacete ou um lençol, nos intermináveis materiais à carga. É um período com muito pouca guerra, houve umas minas detectadas e que felizmente não fizeram vítimas, até as tabancas em auto-defesa foram poupadas. A CCaç 12 e o Pel Caç Nat 52 estão informados de que se conta com eles para a iniciação do novo batalhão: emboscadas, patrulhas, segurança ao transporte de vacas, colunas de reabastecimento ao Xitole e Saltinho, são estas as forças de intervenção que irão trabalhar conjuntamente com as forças do BArt 2917, reconhecendo as imediações dos três importantes aquartelamentos do Xime, Mansambo e Xitole. Com esta cooperação, novas amizades.
Prestes a findar a sua presença em Bambadinca, sou chamado ao comando e recebo instruções do major Herberto Sampaio: "Pá, temos informações feias sobre os Nhabijões, Mero e Santa Helena e até sobre Fá. A malta de Madina e do Buruntoni vai querer intimidar, aliás como já se viu com raptos e canhoadas sobre os Nhabijões, vão querer atacar Fá e os Comandos africanos. O reordenamento dos Nhabijões depende do comando-chefe que pressiona para tudo estar pronto o mais breve possível. Temos lá a engenharia, o trabalho não pode parar e não pode haver medo, temos que impedir as intimidações. Parta para lá imediatamente, vai em piquete durante todo o mês, vigia os movimentos de quem chega, patrulha as zonas de cambança, com as milícias de Amedalai percorre todos os dias a antiga tabanca de Samba Silate. Estes piquetes não podem prejudicar a segurança na ponte de Udunduma nem as emboscadas na missão do sono no Bambadincazinho nem as tarefas de apoio às populações em Badora e Cossé. É um tempo de desenrascanço, felizmente que o IN está pouco activo. Aguente-se, são mais dois ou três meses de trabalho que você tem pela frente".
E, nessa tarde, os Unimog seguiram com colchões, mantas, caixas de munições, tudo para um acampamento improvisado no reordenamento dos Nhabijões. À semelhança do que se passava na ponte de Udunduma, um burrinho trazia os tachos de comida da gente arranchada e os potes com a bianda dos caçadores nativos, um deles vinha diariamente tratar da mafé. Foi mais um tempo de nomadização, uma secção ia de manhã ao correio ou buscar os frescos ao Dakota, em Bafatá, outra secção vigiava o trabalho da equipa de engenharia e dos civis, a outra secção ia buscar doentes a Sansacuta, Candamã ou Afiá. E, quando necessário, seguíamos para o Xitole, para as acções conjuntas com as novas companhias, picava-se até Amedalai. Era a continuação da rotina da guerra, dava-se confiança aos periquitos, estava-se atento à hipótese de dias piores.
O reordenamento dos Nhabijões
Os Nhabijões eram um dos motivos de orgulho dos criadores da política "Por uma Guiné melhor". Samba Silate fora, até ao início da luta armada, uma das mais florescentes tabancas do Leste da Guiné. Com o aparecimento das guerrilhas, as populações dividiram-se, umas partiram para a luta, outras entraram em diáspora em Bambadinca e diferentes regulados. Os seis Nhabijões (Nhabijão Bulobate, Nhabijão Mancanha, Nhabijão Mandinga, Nhabijão Imbume, Nhabijão Bedinca e Nhabijão Cau) viviam o desarrazoado de todas as fugas e partidas para o exílio, era por aqui que as gentes de Madina e do Buruntoni vinham abastecer-se, intimidar ou conquistar adesões, obter informações, até descansar. O plano do reordenamento era juntar os diferentes Nhabijões, tornar mais difícil o aliciamento pelo PAIGC, oferecer às populações alguns equipamentos sociais, enfim, permitir o cultivo tranquilo da fecunda bolanha que circunda de Samba Silate até Bambadinca. Extintas as antigas tabancas, escolhera-se uma posição estratégica junto de Samba Silate, com uma impressionante panorâmica sobre o Geba.
Era um empreendimento de vulto, havia um plano com os desenhos das casas, arruamentos, mesquita, escola, fontanários, tudo estava a ser desmatado à volta, as casas familiares assentavam em quatro pilares de cibe, as paredes eram feitas com blocos de adobe, fazia-se uma trama com rachas de cibe mais finas para o telhado, onde se pregavam chapas de zinco. Tudo cheirava permanentemente a fresco: o fresco do adobe em blocos, as reluzentes chapas, os pregos, até as caixas em madeira em que se preparavam os blocos. A todo o momento chegavam os camiões dos fornecedores, ouvia-se o ruído ensurdecedor dos caterpillar D7 e de algumas máquinas de rodas. A engenharia esteva sempre presente, respondia por todo o traçado da obra, eram eles quem marcavam os eixos do ordenamento, a qualquer momento chegava um dos majores responsáveis (creio que eram os majores Matos Guerra e Carlos Azeredo) que supervisavam, intimidavam, davam sinais de satisfação. Nós cirandávamos, mas, para dizer a verdade, totalmente incapazes de reconhecer forasteiros ao reordenamento. Estávamos há dois dias neste piquete quando num patrulhamento junto à bolanha de Samba Silate, em frente a São Belchior, encontrámos três canoas novinhas em folha enterradas nas lamas do tarrafe.
Sem lembrança do sucedido, pedi a Cherno Suane que me avivasse a memória. Marcou-me encontro na Pérola de São Paulo, no coração do Cais do Sodré.
Os acasos da fortuna na Pérola de São Paulo
Ainda há pessoas a almoçar no espaço das refeições ligeiras, quando me sento a uma mesa a beber uma bica, na companhia de Cherno. Primeira surpresa: Cherno extrai de um bolso do casaco uma folha larga onde arrumou os nomes de todos os militares do Pel Caç Nat 52 de acordo com o seu "chão" de origem. Leio: formação em Bolama, oito meses, chegou o Henrique Matos Francisco, o primeiro alferes, tudo em 1966. Seguem para Porto Gole, está-se no aceso da guerra em frente ao Morés, há emboscadas, flagelações, destruições, a estrada de Porto Gole para o Jugudul fica praticamente interdita. De Porto Gole vai-se para o Enxalé, colabora-se com uma companhia madeirense, Cherno escreveu: "Zagalo era o nosso herói". Missirá é praticamente riscada do mapa, o Pel Caç Nat 52 substitui o Pel Caç Nat 54, a estrada entre Enxalé e Missirá aos poucos vai abandonada. A folha de Cherno traz nomes de furriéis, cabos, soldados, nome de mortos e feridos, e até evacuados. Comove-me este cuidado do Cherno ao estabelecer os dados da sua memória. Lá o consegui apanhar em falta com dois ou três nomes omitidos, ele respondeu-me com o seu sorriso doce: "desculpa".
Quando o Cherno regressou da Guiné, há escassos meses, depois de cerca de 2 anos de ausência, pedi-lhe ajuda por razões fundamentadas. Ele acompanhou-me de perto durante toda a comissão, assumiu ser guarda-costas a tempo inteiro, ouviu conversas, viu a guerra ao meu lado, comunicava-me quem queria falar comigo, era a minha agenda ambulante. Quando me entregou esta folha no café «A Pérola de S.Paulo», no centro da má fama do Cais do Sodré, senti uma irrepremível onda de ternura pelo mais indefectível dos amigos: sabe-se lá com sacrifício ele garatujou as suas recordações, alinhou a tropa por «chão» de nascimento, procurou não se esquecer de ninguém, balbuciou quando lhe disse que o morto era Sadjo Baldé e não Sadjo Seidi, este um rabujento que uma vez até quis andar à porrada comigo... Era inevitável que eu passasse esta prova de muita estima para todos os camaradas da Guiné. Tive a felicidade de fazer amizades inquebrantáveis, assim dá gosto viver. (BS)
Falávamos em voz alta dos Nhabijões, de Chicri, de Mato de Cão, de Malandim e até de Finete. Estou a tomar nota das recordações daquele patrulhamento em que detectámos e destruímos três canoas das cambanças de Madina, quando fomos interpelados.
- Desculpem, estão a falar de Enxalé, Nhabijões e Mato de Cão. Não é possível haver mais coincidência, são nomes de locais da Guiné onde combati entre 1971 e 1973. Vocês estiveram lá nessa altura? É que não me lembro de vos ter visto.
É um homem magro, de estatura média, cabelo esbranquiçado, olhos atentos, perscrutadores. Tem modos calmos mas revela assombro pelo que ouviu, curiosidade sincera pelo que quer saber. Apresento-nos, conto-lhe o que estamos a fazer, ele entusiasma-se e fala da sua comissão.
- Fui alferes da CCaç 12, comandei o 4º pelotão, substitui o Rodrigues que já faleceu. Quando vos comecei a ouvir a curiosidade dominou-me, era coincidência a mais, vocês falavam como veteranos da guerra. Fomos nós que fizemos o destacamento de Mato de Cão, íamos ao Enxalé, fizemos todas essas colunas e patrulhamentos que referiram. Só não fui a Missirá.
À nossa volta pararam as conversas, é inusitado uma conversa destas, gente que combateu há cerca de quarenta anos, juntos por feliz acaso. A conversa prossegue, calorosa, e recebo um cartão-de-visita no termo destas recordações, ele tem de partir e eu estou impaciente por registar as recordações de Cherno. Ele chama-se Jaime Pereira, é engenheiro e trabalha numa empresa de nome histórico, ali na Av. 24 de Julho.
Aquelas três canoas, lembrava-se Cherno, não enganavam ninguém, a época das chuvas não podia encobrir os sinais de passagem de quem atravessava a extensa bolanha por carreiros que discretamente se elevavam naqueles antigos arrozais férteis, era madeira nova, notava-se ainda o talhe das ferramentas. Foram destruídas à bala, mas antes pediu-se a presença de dois chefes de tabanca, que garantiram peremptoriamente nada saber, muito provavelmente, justificaram, era gente que vinha de Madina e ia em direcção da foz do Corubal… Nessa altura, eu ainda engolia estas explicações e não havia reacção possível. Era a força do sangue dos povos divididos que eu desconhecia.
Partem amigos muito queridos, tenho leituras anglo-saxónicas
Transportamos em coluna o primeiro contingente do BCaç 2852 até ao Xime. Vão ali o tenente Pinheiro, o alferes Reis, uma parte importante dos pelotões de morteiros, sapadores, básicos, cozinheiros. O Vacas de Carvalho segue à frente com uma Daimler, grita para o primeiro Unimog onde vai o tenente Pinheiro, assusta-o com os locais de possíveis emboscadas. Na véspera, agradeci-lhes todas as ajudas recebidas, o Reis ainda tentou uma questiúncula, não lhe dei troco. Dentro de dias, haverá coluna semelhante para o resto do batalhão.
Escrevi um poema falhado, "25º Aniversário". Citei Apollinaire, o poeta combatente das trincheiras, autor de «Caligramas»: "L'amour a remué ma vie comme on remue la terre / dans la zone des armées. / J'atteignais l'âge mûr quand la guerre arriva / Les mois ne sont pas longs ni le jours ni les nuits / C'est la guerre qui est longue / Je salue la chemise rouge".
Falo na "abicagem da galáxia numa cabana", em "palmeira ao desbarato" e também em "ano versado, na parede brota o palavrão: guerra. / amor mudado, altar, elegia. / uma mulher chegou, reconheceu". Definitivamente, poesia mais frustre não há. Condicionado pelo tempo (tenho que devolver o livro com urgência a D. Violete), leio e tiro notas do assombroso relatório do administrador da circunscrição de Geba, Vasco Calvet Magalhães. A ver se para a semana tenho o trabalho completo, depois dou-vos conta do entusiasmo que ele imprime às descrições, os registos ingénuos sobre os povos que habitam o Geba, as lutas, a religião, a língua e a cultura. O que pasma é a autenticidade e a informalidade, ele é cáustico com a corrupção e com a exploração dos indígenas, com a impreparação dos funcionários. Nunca li nada até agora tão verosímil, com tanta vontade de informar mesmo com míngua de informações, ingenuidade e omissões culturais.
Li "O Homem que era Quinta-Feira", de Chesterton, de quem só conhecia os ensaios de carácter religioso. É apresentado como uma obra de humor, mas a classificação parece-me errada. É um mundo às avessas, um grupo de anarquistas que afinal não o são, a bondade subitamente transforma-se em maldade, o que parece ser caos logo é apresentado como harmonia, os anarquistas são polícias e até filósofos, o temível chefe dos anarquistas, Domingo, tido como um tipo feroz, um carniceiro, afinal vive obcecado com o sofrimento dos outros. É uma paródia moralista em que o leitor é convidado a reflectir sobre a transitoriedade dos conceitos e os juízos apressados que fazemos dos outros.
Tradução de Domingos Arouca, capa de Tóssan, Portugal Editora, 1960, Biblioteca dos Humuristas. Chesterton adorava o mundo às avessas, cheio de desconcertos, de verdades que se tornavam imediatamente mentira, de saltos bruscos que alteravam profundamente a estabilidade do leitor e sua confiança no escritor. Lucian Gregory apresenta-se como revolucionário e anarquista. Aliás para ele um anarquista é um artista. O seu amigo Syme mostra-se profundamente céptico mas acaba por entrar na direcção do temível grupo anarquista, como Quinta-Feira em que o chefe é Domingo. Os criminosos são polícias, os anarquistas são bondosos, o mundo está longe de ser mau, entre no plano de Deus. Esta obra-prima de Chesterton não é uma paródia, é uma fábula, a vida é tensão, é este axaltante concílio dos dias, é esta constante descida aos infernos, onde somos livres da redenção ou da ignomínia. (BS)
Também não foi fácil nem muito estimulante a leitura de "O Insuspeito" de Charlotte Armstrong, uma conceituada escritora policial norte-americana. Ela parte de uma ideia poderosa, um caçador de fortunas, homem de prestígio cultural, acima de qualquer suspeita, educa meninas casadoiras que fazem testamento a seu favor. Há estranhas mortes, o noivo de uma das vítimas investiga e descobre o plano maquiavélico. Aí a obra perde o nervo, o suspense anda à deriva, o desfecho é fantasioso, a arquitectura da obra desigual. Paciência, não se pode acertar sempre, há decepções em todos os géneros literários.
N.º 66 da Colecção Vampiro, tradução de Elisa Lopes Ribeiro e capa de Cândido Costa Pinto. Charlotte Armstrong parte de uma ideia brilhante mas deu-lhe um desenvolvimento tosco. Um caçador de fortunas, disfarçado de mestre e pai espiritual de ricas casadouras, desfaz-se das suas vítimas depois destas terem feito testamento a seu favor. O noivo de uma das vítimas introduz-se neste círculo restrito e descobre as maningâncias do insuspeito. Quando tudo parece perdido para a denúncia do miserável, o insuspeito consegue o seu sequestro. É uma das futuras vítimas que encontra o local do sequestro e o monstro acaba por morrer. Bem escrito mas com pouco nervo, com muitos altos e baixos no suspense. (BS)
Mesmo no Pel Caç Nat 52 partem e chegam soldados. Gosto da personalidade do novo comandante, Domingues Magalhães Filipe. A rotina prossegue, passei a dar aulas, fazemos colunas ao Xitole, Mamadu Soncó, um dos filhos de Quebá, pede-me para vir comigo para Lisboa, irrompeu brutalmente a época das chuvas. Tenho consciência que é um tempo de transição, faço de estafeta, de polícia, inclusive andámos a varrer à vassoura a missão do sono no Bambadincazinho. É um tempo bom para leituras, vou escrever à família e aos amigos, agarro-me à ideia de recomeçar os meus estudos muito em breve. Discretamente, o meu espírito começa a partir para Lisboa.´
Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 2 de Maio de 2008
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Nota de CV
(1) - Vd. poste de 24 de Julho de 2008 >
Guiné 63/74 - P3091: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (40): Operação Beringela Doce: Da cabeça não me sai aquela mulher morta...