A apresentar mensagens correspondentes à consulta "Cherno Suane" ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta "Cherno Suane" ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22816: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Enquanto Paulo arruma os trastes em Lisboa, deixando temporariamente a casa a dois filhos em trabalho precário, Annette escreve-lhe para lhe contar que acha que chegou ao fim do romance da Rua do Eclipse, coligiu as lembranças do período até 1999, ano em que se conheceram e começaram dois romances. Annette dirá mais tarde que foi uma trabalheira, papéis soltos, cartas vindas da Guiné, fotografias tiradas em Lisboa, antigos camaradas que tinham fugido ao pelotão de fuzilamento deixavam fixar a imagem onde pairava um semblante com uma infinita tristeza. Annette não entendia como tinha falhado redondamente aquela missão que ele vivera com tanto entusiasmo em 1991, parecia que tinha havido uma concordância desde o Palácio Presidencial aos diferentes ministérios, tinham passado vários programas televisivos sobre os desafios postos àquele milhão de consumidores e quais as respostas possíveis, juntando esforços entre as diferentes agências das Nações Unidas, e organizações não-governamentais que de bom grado acederam a cooperar.
Paulo confessava a Annette que fora uma das maiores amarguras da sua vida, ainda por cima ele se sentia ludibriado, tinha acreditado que no advento do multipartidarismo havia grandes oportunidades para as iniciativas de cidadania. O que Annette não sabe ainda é que meses depois de Paulo estar em Bruxelas irá fazer uma viagem, essa sim, o fecho de cúpula daquele romance. Porque o outro romance, em que eles já estão quase sessentões, esse não encerrou e possui ingredientes suficientes para continuar a ser lido à luz da vela ou ao sol fervente.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (83): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Paulo mon adoré, mon chevalier, ma joie de vivre, antes de regressares à tua casa na Rua do Eclipse quero fazer-te uma grande surpresa, já fiz uma sinopse da tua estadia na Guiné, vinte anos depois. Está concluído o resumo daquele período de adaptação logo a seguir à tua chegada a Lisboa, usei os teus apontamentos quanto ao tempo que passaste em Mafra, entre outubro de 1970 e finais de abril de 1971, vinhas nitidamente em forma e nem todos os recrutas receberam bem o entusiasmo, a forma impetuosa, com que os preparaste para as lides futuras. Estudaste, tinhas a vida simplificada num organismo chamado Agência Militar, manuseaste milhões de contos (ainda não fiz a conversão ao euro) e pagaste às famílias esses tantos milhões. Ficaste bacharel, logo concorreste ao ensino, quiseram-te como professor de História de Arte, a vida deu as suas voltas, foste parar ao Ministério da Economia, será aí, mais propriamente com o 25 de Abril, que irás descobrir a tua profissão. E cerca de vinte anos depois voltas à Guiné, imagine-se, para fazer cooperação, ali passarás alguns meses, dormes nas instalações de uma fábrica de cervejas, de nome CICER, e almoças e jantas na Pensão Central, na Avenida Amílcar Cabral, quem ali manda é dona Berta de Oliveira Bento, a quem irás chamar Avó Berta, nessa Pensão Central farás conhecimento do Dr. Francisco Médicis, será ele que te levará a Missirá num género de furgonete de caixa aberta. Felizmente que guardaste os apontamentos dessa viagem e dessa experiência sobre a qual escreveste quando entraste em Missirá e comovido até às lágrimas voltaste para Bissau, na caixa da furgonete, empertigado, vitorioso, vinha Cherno Suane, mais tarde virá para Portugal, aqui viveu e faleceu.

Não posso esquecer aqueles dias vibrantes que se seguiram ao teu regresso, as visitas de alegria e as de dor, neste caso à mãe do teu mais querido amigo, e aos teus sinistrados. Mas, primeiro os estudos, e depois a compulsão do trabalho, o casamente e os filhos, as recordações da Guiné pairavam num limbo, acompanhei cheia de curiosidade aqueles dias de adaptação a Lisboa em que voltaste aos alfarrabistas, ao departamento de mecanografia em que trabalhaste até 1967 e registei como Mafra foi determinante para as decisões que tomaras quanto ao rumo da tua vida. Escreveste em várias folhas o teu permanente espanto como aqueles oficiais passavam as tardes a jogar e a bebericar, juraste a ti mesmo que em circunstância alguma era fadário que te coubesse. Envolveste-te a sério nas duas recrutas que deste, deram-te como merecimento o encurtamento de um ano para seis meses. Mantiveste correspondência com a Guiné, encaraste sem amargura a diluição dessas responsabilidades. Chegava gente que trazia notícias e inopinadamente recebes uma carta do Benjamim Lopes da Costa se era possível ajudar o irmão, estava a estudar em Lisboa com uma bolsa, precisava de um suporte na disciplina de Filosofia, que foi dado pela tua mulher. Formavam-se companhias de Comandos e antigos soldados teus para lá foram.

Os anos passam, chegam notícias funestas, fuzilamentos, prisões arbitrárias, gente em fuga, gente que tu amas muito. Sofres mas a Guiné parecia uma gaveta a abrir e rapidamente a fechar, nem titubeaste quando se deu o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, há muito que descortinaras que o azeite não é miscível com a água.

Lá para os finais de 1989, os teus superiores informam-te que o Ministro do Ambiente, numa reunião com ministros do PALOP, recebera o mais inusitado pedido que seria suposto vir da Guiné, um protocolo de cooperação na área da defesa do consumidor. O ministro empenhava-se para afinar uma estratégia comum para a Cimeira da Terra, que se realizaria no Rio de Janeiro em 1992, disse logo que sim e o teu nome veio à cabeça, seria primeiro uma semana para avaliar a situação e aquilatar da viabilidade de tal missão. É assim que no segundo domingo de janeiro de 1990 tu regressas a Missirá, deixaste escrito um texto lindíssimo sobre essa viagem, o tumulto, o frenesim, os abraços, a gritaria a acolher o Branco de Missirá a quem os homens grandes as narrativas falam aos mais novos do N’Baké, um guerreiro de pele branca que faz parte daquele chão. Há mesmo um parágrafo em que tu descreves a viagem, muito gostava que este parágrafo viesse reproduzido no romance da Rua do Eclipse, vão pela estrada alcatroada e passam perto do Enxalé, vais completamente alvorotado:
“Via embevecido as culturas do arroz pam-pam, ao fundo nas lalas os majestosos tabás, os cipós, surpreendia-me com as culturas do cajueiro; do Enxalé para a frente, sentia a respiração entrecortada, os olhos suspensos no horizonte, à procura dos meandros do Geba, sentia-me desnorteado, o novo traçado da estrada afastara-se ligeiramente do rio, chegou-se a Saliquinhé, perguntou-se aos passantes onde estava o rio, que estava mais longe, agora não era fácil, com o crescimento do tarrafo, chegar próximo daquele lugar mágico que visitara todos os dias, não faz mal, atirara-se ao caminho mais pelos homens e menos pelos lugares, mas não resiste aos cheiros, ao oceano florestal, o importante é que regresse ao Cuor, sua pertença. É um dia de janeiro sem uma aragem e escorre pelos corpos um calor fervente, eleva-se a zanguizarra dos grilos, aqui e acolá, naquela estrada que fora o seu tormento e de que sempre fugira, na prevenção de minas e emboscadas, entra em transe, avista-se a curva de Canturé, mais adiante, no tormento daquela estrada alcantilada que atira os viajantes uns contra os outros dentro da cabine, passa-se ao lado de Mato Madeira, Missirá está pertíssimo, agora a estrada alarga-se, alguém aparece e explica que há gente a viver em Maná, Cancumba renasceu, a carrinha inflete numa picada, outro alguém, a caminho das hortas, confirma que é preciso tornear a nova tabanca para chegar a Missirá, e então reconheço os altos poilões e o mar de cajueiros, ouve-se perfeitamente o gralhar das crianças, começam a sair os adultos das moranças e naquele espaço que fora a parada do quartel a viatura sossega, cercam-nos com sorrisos, abraços, especado, quando se abre aquele círculo infrene, está Bacari Soncó, é emoção superior às minhas forças, este homem é meu irmão, viveu algumas das grandes agruras que o mundo nos oferece lado a lado, não posso mais esconder a emoção, encosto a cabeça no seu ombro, soluço sem parar, é verdadeiramente irrepetível este dia da ressurreição dos vivos”.

Voltaste no ano seguinte, li de fio a pavio o documento que elaboraste sobre essa missão, dedicaste a fundo em preparar uma estrutura para servir os mais necessitados, houve muitas promessas, até um despacho presencial, tudo acabou na água, nunca se saberá porquê. Deliberaste pôr ponto final no assunto, mas os silêncios africanos são de pouca dura, aí por 1996 chegou Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo Malam, era professor primário, viera para uma ação de formação em Setúbal, farto de privações com vários filhos para sustentar, tomara a decisão de aqui ficar, atirou-se às mais humildes tarefas da construção civil, retomava-se o contato com o Cuor, tinham reaparecido povoações que tu conheceras reduzidas a estacas calcinadas, Finete mudara de lugar, havia vida em Sansão, em Aldeia do Cuor, em Chicri, aparecera perto de Gambiel um local chamado Madina de Gambiel. Por Abudu, foi-te dado perceber que não houvera reconciliação, pairavam rancores, medos, muitas feridas por sarar.

Meu adorado Paulo, esta é a síntese desses papéis avulsos, de tudo quanto aconteceu até nos conhecermos, há ainda umas folhas avulsas da chegada de antigos soldados teus que escaparam a fuzilamentos e prisões. Caso tu entendas é aqui que se fecha o ciclo das tuas viagens, aqui Penélope pode pôr o termo ao extenso bordado, Ulisses não chegou a Ítaca, o seu domínio espalha-se por duas cidades, numa delas está a Rua do Eclipse para onde ele vem em breve, mais uma vez para se envolver no interesse público, de que tem longo lastro.

Outra surpresa reservada é a readaptação dos espaços, vais ter o teu próprio escritório no quarto que foi da Noémie, pressinto que vais encontrar esta casa na Rua do Eclipse mais formosa à tua espera. Quantas vezes, na quietude da sala, me questiono dos muitos anos que aqui vivemos e dos outros muitos anos que a velhice nos poderá reservar na nossa bela casinha de Lisboa. Vem depressa, gosto muito daquela expressão portuguesa “paixão ardente”, o que importa é que já não sei viver sem a tua vibração, a tua voz, o teu corpo. À tantôt, ta chérie, Annette.

(continua)

Carvalho Araújo, nele viajei em outubro de 1967 para Ponta Delgada, de novo em abril de 1968 para Lisboa, e no regresso de Bissau, em agosto de 1970
Este é o rio da minha vida, é bem provável que por aqui naveguem barcos como estes, que nós protegíamos em Mato de Cão, vinham em comboio, tinham um cheiro caraterístico a mancarra e a coconote, rebocando-se uns aos outros nas curvas apertadas do Geba estreito
Agora, que procuro pôr um ponto final no acervo de recordações que me levaram a conservar algumas dezenas de imagens, aqui venho publicamente renovar a minha preferência por aquela que mais me impressiona. Contaram-me que o arquiteto Luís Saldanha fora a Varela acompanhar as obras do aldeamento turístico. No regresso, um jovem Felupe fez questão de posar, o arquiteto acedeu, tudo isto se terá passado perto do final da década de 1950, em 1961, depois do ataque a S. Domingos, o grupo dos Manjacos de François Mendy tudo vandalizaram
Perguntei em Bambadinca se ainda havia cemitério para soldados portugueses. Ainda restavam alguns túmulos, a informação que me davam era de que a Liga dos Combatentes gradualmente fazia a trasladação. Fiquei chocado com o que vi, espero que a esta hora este camarada da Guiné repouse em paz junto dos seus, ou perto dos vivos que guardam lembrança
A imagem é de um conhecido fotógrafo, Francisco Nogueira, foi ele o responsável pelas belas imagens de um livro dedicado ao património arquitetónico dos Bijagós, uma edição da Tinta da China. É um dos mais impressivos monumentos de Arte Deco em toda a África Ocidental, uma oferta de Mussolini para lembrar as vítimas de um desastre aéreo que ocorreu em Bolama, ainda na década de 1930
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (82): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22753: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
É bem provável que este fim de comissão coincida com a concretização de trabalho de Paulo em Bruxelas, seria uma verdadeira revolução, os cinquentões apaixonados juntos no ninho. Esta carta com apontamentos do quase final da comissão também deixa transparecer que Paulo, num curto lapso de tempo, terá que tomar decisões, é funcionário público, terá que pedir licença registada, seguramente que será deferido, são casos tratados como conveniência de serviço; dois dos filhos singram na vida, mas há aquele Ricardo que sofre de Síndrome de Asperger, é muito agarrado ao pai, há que adotar um procedimento de o deixar bem acompanhado, talvez mesmo haverá a necessidade de ele ir para Bruxelas, tudo isso vai pesar nas decisões de Annette e Paulo. Acontece que Annette trouxe uma questão nova para o romance: será que a comissão do Paulo acabou exatamente no dia em que ele desembarcou no Cais da Rocha do Conde de Óbidos? É possível acabar uma ligação que teve afetos tão poderosos? Não houve um depois? Então o Paulo não voltou à Guiné? Não seria melhor a Rua do Eclipse prosseguir por esse mar fora, dado que é notório a relação inquebrantável? Paulo cisma, é preciso ser prudente, tudo vai do trabalho que lhe vão propor em Bruxelas, e, francamente, agora não há caderninhos viajantes, há escassas memórias, talvez Annette pudesse encontrar agora um remate inspirador para o fim do livro. Vamos esperar.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (80): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma chérie, aí estarei amanhã ao fim da tarde, como, infelizmente, tenho viagem marcada dois dias depois, permito-me fazer seguir pelo correio todo o restante material que guardei do final da minha comissão em Bambadinca. Entrego-te com muito carinho o caderninho viajante que andava sempre comigo, aquelas últimas viagens no período de sobreposição com o Nelson Reis, as últimas fotografias tiradas nas tabancas em autodefesa, comoveu-me profundamente os abraços recebidos por chefes de tabanca e mesmo do régulo de Badora, de nome Mamadu Sanhá, andava sempre com os seus galões de tenente e viajava até Bambadinca numa motoreta. Registei que estava a partir e chegou Dauda Bari, era um cabo Fula que viera de Gandembel. Registei um comentário de Sadjo Seidi que se queixava das aulas de ginástica da escola, achava que já não tinha idade para aprender mais letras. Irei reencontrá-lo décadas depois, não esquecera o seu comentário, e manifestava pesar por não ter estudado. Como te disse na última carta, fiz um telefonema a Cherno Suane, que tu conheces, ele trabalha num estabelecimento de eletrodomésticos de um senhor que se chama Adolfo Brilhante, perto do Largo de São Paulo, pedira-lhe se ele podia escrever umas notas sobre os episódios da nossa vida entre julho e agosto de 1970, sabendo eu de antemão que o Cherno depois do seu duplo traumatismo craniano tinha falhas de memória. Apareci na loja depois de ter feito ginástica e fomos os dois para um café-restaurante ali ao pé chamado Pérola de São Paulo, o papel do Cherno segue nesta carta, ele relata emboscadas em Samba Silate, a nossa permanência na ponte de Undunduma, patrulhamentos em direção a Taibatá, noites na Missão de Sono, os dois dias que passámos em Mansambo, a vigilância que fazíamos na estrada alcatroada do troço Amedalai – Ponta Coli – Xime.

O Cherno tem um curioso contrato com o senhor Adolfo, este cede-lhe uma casa ali no Largo de São Paulo que o Cherno enche de gente que vem ou vai para a Guiné, um dia fui lá visitá-lo com o Abudú Soncó, a certa altura pensei que estava num terminal de aeroporto. E sempre com a sua voz ciciante e com aqueles olhos que volteiam e revolteiam, penso sempre que é uma questão de timidez não me olhar fixamente, falou dos dois últimos dias que passei em Bambadinca, não sei porquê perguntou-me se eu me lembrava de Damba Trilene, fui sincero com ele e disse-lhe que não me lembrava, depois fiquei a saber que fora fuzilado depois da independência, gritara desalmadamente que não tinha feito mal nenhum. É nisto que o Cherno me pergunta se o livro que eu estou a escrever já está pronto, e então perdeu a timidez quando eu lhe disse que o livro estava avançado, fez-me inúmeras perguntas sobre pessoas, se estavam incluídas no meu trabalho, fiquei atónito quando ele me perguntou se eu ia dizer que Serifo Candé fizera parte da 3.ª Companhia de Comandos, aquele meu amigo do coração que eu fora visitar à tabanca dele em 1991 e que julgou que eu o vinha buscar, como é que tu me deixas aqui a passar fome, não tenho comida para dar aos meus filhos? Eram pormenores sem conta, procurei suavemente explicar ao Cherno que não podia entrar em tanto detalhe, era um livro sobre a minha comissão, jamais poderia esquecer a lealdade e a fidelidade de todos aqueles que tinham combatido ao meu lado, mas este tipo de livros tem que respeitar as recordações. E pela primeira vez na vida o Cherno repreendeu-me: “Escrevi aqui tudo de que me lembrei porque pensava que tu querias que toda a gente ficasse a saber que combateste com um grupo de africanos que acreditaram sempre em ti, por isso nós devíamos constar da história desse teu livro”. Fiquei com a garganta seca, prometi-lhe que iria rever todo o trabalho já passado a escrito, estamos os dois de pé, e neste exato momento, estou na véspera da tarde da minha partida, ando na companhia do Cherno, do alferes Reis e do furriel Pires, despedi-me dos comerciantes de Bambadinca, visitei as famílias dos soldados, fui aos Correios agradecer todas as gentilezas de D. Leontina, foi penoso despedir-me de D. Violete e da sua mãe, subimos a rampa de Bambadinca e Cherno, como é seu hábito, ajuda-me carinhosamente a arrumar todos os meus trastes num caixote que foi feito na carpintaria, anda por ali o jovem Mamadu Soncó que teima em que eu o leve para Lisboa, continuo a olhar para o Cherno, agora seguro-lhe as mãos, já abracei quem fica no quartel, o rosto de Mamadu Soncó é uma máscara de inquietação, sei que me vais esquecer, eu estudei português, matemática, desenho e ciências naturais, deixa-me ir estudar… Fiz-lhe promessas, fui-lhe escrevendo ao longo do tempo, encontrei casualmente um aerograma que ele me enviou em setembro de 1973, já tinha feito a quarta classe, continuava a estudar, trabalhava como escriturário na Polícia Militar, sabia datilografia. Continuando a olhar este meu irmão Cherno Suane, estamos numa coluna que vai em direção a Xime, despedi-me de quem está na ponte de Undunduma, de quem faz vigilância nas obras do alcatroamento da estrada, cumprimentei quem me esperava em Amedalai, alguém subiu para uma viatura para me contar que o PAIGC celebrara o 3 de agosto flagelando o Enxalé, foi fogo de pouca monta porque houve a reação do fogo de obus do Xime.

Estou agora a despedir-me do Cherno, ele vai voltar para o local de trabalho e eu vou apanhar o Metropolitano até ao Saldanha, o pelotão despede-se de mim e eu dele, depois de um aperto de mão a mão direita vai até ao coração, mais uma vez pedi a todos que ajudassem o alferes Reis, ajudam-me a levar a bagagem para dentro da lancha, mostro a guia de marcha, mandam seguir. E é neste exato momento , meu querido Cherno, que eu dei comigo a pensar como iria cumprir os meus sonhos, os olhos não param de se deslumbrar com aquele Geba que parece uma folha dourada, os tufos de vegetação de um lado e do outro, já passámos a embocadura do Corubal, então sento-me, rezo, oiço o ronronar dos motores, venho à amorada e avisto o Ilhéu do Rei, desembarcamos no Pidjiquiti e alguém me leva com a mala para o Vaticano III, um albergue de curta permanência já dentro do quartel de Santa Luzia, a mala seguiu para Brá, para o Depósito de Adidos, anoiteceu, sinto que todos os perigos da guerra estão passados, agora tenho que prospetar o futuro, mas há uma sensação muito dolorosa, minha adorada Annette, começara, eu estava a sentir, aquela dolorosa separação dos meus bravos soldados.

Não sei o que me reserva a reunião com o Diretor da Confederação Europeia dos Sindicatos. Falei telefonicamente com Paolo Adorno e Michel Renard, eles suspeitam que me vão propor um contrato até cinco anos, renovável mais um ano, intuem que me vão propor os pelouros dos Consumidores e da Saúde, já sabem que rejeito categoricamente as áreas da Concorrência e da Agricultura. Das informações que aqui pude obter, é possível obter uma licença registada, por conveniência de serviço em organizações comunitárias, vou ver as condições financeiras que me oferecem, espero que o destino nos prepare uma bonita surpresa. Parece que estou a sofrer daquela inquietação que relatei acima, quando eu sabia de ciência certa que já nada tinha a ver com os meus bravos soldados, não via ser difícil suspender todas as minhas colaborações, poderei até conservar alguns artigos em jornais e revistas, atendendo ao acesso a informações que no futuro disporei. Há a situação dos meus filhos, o Henrique tem presentemente trabalho, vejo-o muito estabilizado, ele e a mulher constituem um casal que vive em rigor orçamental; o Ricardo está presentemente desalentado, ele precisa muito de mim, gostaria de conversar largamente contigo se era possível encontrarmos algo em Bruxelas em que ele se inserisse perfeitamente, a Rita vai de vento em popa. Não quero acrescentar mais nada a esta carta, sei que amanhã vou ter a grande alegria de estar contigo, e que no dia seguinte, muito provavelmente, te transmitirei notícias que te encherão de felicidade. É bem engraçado escrever estas coisas e saber que tu as vais ler algum tempo depois de termos vivido o nosso presente, não achas? Bien à toi, bisous milles, comme toujours, Paulo.


Vejo vezes sem conta a rampa de Bambadinca, aqui cheguei extenuado, vindo de Missirá ou Mato de Cão, muito provavelmente com o Unimog 411 do outro lado da bolanha, pronto para receber bidons de gasóleo ou petróleo, sacos de cimento, rolos de arame farpado, as vitualhas possíveis, aqui se chegava e um pequeno grupo dividia-se com obrigações: uns para as munições, outros para o material de Engenharia, aqueloutros para equipamentos de transmissões, questões relacionadas com a manutenção de viaturas, o economato, o abastecimento alimentar, sempre discutido, por vezes com gritaria, não há isto nem há aquilo, tem latas de chouriço e barricas de pé de porco, umas latas de feijão-verde, e viva o velho. Por vezes tínhamos sorte, disponibilidade de viaturas àquele arremedo de cais, entrar na canoa de Mufali Iafai com as pernas na lama até às coxas, e nunca esqueço a noite de 28 de maio de 1969, viemos de Missirá a trote alta noite para apoiar os flagelados de Bambadinca, o Zé Maria Tavares trouxe-me até aqui, o Geba estava na vazante, tinha uns bons quilos de lodo em cima da farda, mas fiquei feliz, havia um pequeno sinistrado depois de todo aquele angustiante foguetório.

Aqui está a erosão do tempo, é capaz de ser uma daquelas fatalidades das alterações climáticas, a rampa achatou-se, até parece que a laterite se descoloriu, era um caminho vistoso até ao cais, passados todos aqueles anos dói que se farta ver a incúria e o abandono, todos aqueles edifícios podiam ser úteis para as populações, os armazéns estão destruídos, o porto desapareceu, fiquei especado junto à casa de Mufali Iafai, o jovem faleceu e o caminho da bolanha de Finete também desapareceu.

Quantos telefonemas vim fazer para Lisboa na estação dos CTT, era um edifício impecável, tinha pessoal garboso, gente atenciosa, vinha à procura de selos também, não só para a minha correspondência, mas havia quem me solicitasse, por hábitos filatélicos, as últimas edições. À chegada ou à partida cumprimentava este pessoal, de cortesia esmerada.

E também quantas vezes entrei nesta escola para cumprimentar Dona Violete e acertarmos uma hora do chá, ela fazia sempre questão, e apareciam papéis sobre a história da Guiné e recordações dos tempos em que ela fora professora em Gã Gémeos, no início da década de 1950, era um encanto ouvi-la e devo-lhe a iniciação dos estudos deste país fascinante, preso ao meu coração.

Neste dia parto do Xime na lancha de desembarque grande Alfange. Era um cais sólido, preparado para receber pesadas cargas, a navegabilidade do Geba ficou alterada a partir de outubro de 1969, os barcos mais possantes atracavam aqui, só as embarcações civis seguiam até Bambadinca. Ironia do destino, esperaram a minha transferência para Bambadinca para pôr este cais e porto operacionais, aguentei a pé firme as idas a Mato de Cão, ininterruptamente, de agosto de 1968 a outubro de 1969. O cais morreu, o porto também, ficou esta camada de alcatrão que a natureza se encarrega de atapetar, o Xime parecia fadado, com a independência, a ser um porto influente, ali perto está um silo monumental, que deve ter custado uns bons milhões de dólares, nunca foi usado, pode ser exibido como um dos elefantes brancos de gente que sonhava em grande esquecendo que era preciso cuidar dos pequenos.

Este homem que sorri com riso franco chama-se Samba Gebo, assim que me viu chegar a Bambadinca, antigo companheiro de armas, nunca mais me largou. Viemos até à velha ponte do rio de Undunduma, ali perto estava um destacamento infecto onde passei muito sobressalto, pelo temor de uma flagelação brutal, felizmente que nunca aconteceu. A guerrilha do PAIGC atacara Bambadinca vindo por aqui, a partir desse momento criou-se um destacamento onde passávamos a noite e se faziam uns pequenos patrulhamentos de dia, à volta de Amedalai.

Guardei as melhores recordações da Pensão Central, aqui almoçava e jantava durante os meses que fiz cooperação, em 1991. Comida gostosa, preços económicos, por vezes cooperantes interessantíssimos, caso dos holandeses do saneamento básico, os profissionais de saúde da Medicina Tropical, e numa mesa ao fundo, sempre com o seu sorriso doce, Dona Berta, uma senhora que fez milagres aí por 1977, quando não havia praticamente comida em Bissau e aqui nunca faltou a sopa, o prato e a sobremesa aos cooperantes. Um mistério que nunca se irá apurar.

A Fundação Mário Soares recuperou entre o material calcinado pelo vandalismo das tropas senegalesas imagens de rara beleza, que subsistiram das fogueiras feitas por estes colaboradores de Nino que destruíram a maior parte do acervo histórico da Guiné-Bissau. É uma imagem que foi publicada no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, um Mandinga prepara uma esteira.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22730: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Novembro de 2021

Queridos amigos,
São os derradeiros episódios em Bambadinca, ou quase. Porque umas boas décadas depois Cherno Suane encarregou-se de me revelar as suas recordações destes últimos tempos da minha comissão, por portas e travessas meteu férias e veio ter comigo a Bissau, que eu não esquecesse que era guarda-costas para toda a vida, como veio a acontecer. Contei a uma fascinada Annette a visita que ele me fez na primeira operação à L4, no Hospital de Santo António dos Capuchos. Apareceu-me com três garrafas de 1,5 L de água e aquilo que me pareceu um cacho de bananas, e quando protestei logo comentou que a água sempre faz falta e que a banana engana a fome, eu estava mesmo com aspecto de que andava a passar fominha, talvez exigências da operação, a banana tudo remedeia. Mas voltando àqueles acontecimentos, diluiu-se aquele primeiro choque da chegada do meu substituto e do protesto da tropa, foi no fundo a última manifestação a que assisti dos graves problemas raciais que não iludiam que a apregoada unidade Guiné-Cabo Verde não passava de um expediente de ocasião. Annette lá vai organizando metodicamente o final da comissão mas já por duas vezes perguntou a Paulo o depois, o que aconteceu depois, aquelas amizades inquebrantáveis, aquele fascínio pela Guiné era impossível extinguir-se. Paulo, meio a sorrir, perguntou-lhe se ela queria exercer o papel de Sherazade, fazer umas mil e uma noites de um afeto interminável e ela prontamente respondeu que se há amores para toda a vida eles merecem ser registados.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (79): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, mon adorée infiniment, de posse do último alinhamento que fizeste para aqueles últimos tempos de Bambadinca, imagina tu que me ocorreram, inopinadamente, imagens dolorosas da derradeira visita que fiz àquele local onde vivi em permanência de novembro de 1969 a agosto de 1970, o aquartelamento, incluindo a capela, a escola, a mãe de água, a residência do administrador, a messe e o refeitório dos soldados, a rampa para o rio, o edifício dos CTT onde até conseguia telefonar para Lisboa, o estanco do Rendeiro, o estanco do Zé Maria Tavares, onde se realizou o meu almoço de despedida com os meus soldados na véspera de partir para Bissau. Imagens dolorosas, explico porquê. Não vinha à espera de encontrar as instalações cuidadas que tinham sido as dos oficiais e sargentos, mas era um equipamento tão funcional que para mim era inimaginável encontrá-lo em derrocada, ainda por cima estava ocupado por uma unidade militar. Houve um coronel que fez questão de me acompanhar na visita, penso que este senhor a certa altura julgou que eu ia ter um enfarte, foi crescendo uma lancinante crise de choro, soltaram-se impropérios, uns quase uivos ao presenciar aquela inusitada degradação de que trouxe fotografias que te enviei, casas de banho destruídas, canalizações roubadas, a messe e a cozinha em estado escalavrado, toda a ira se avermelhou de cólera no meu rosto, era inacreditável ter-se votado ao abandalhamento um espaço que era aprazível, quartos dignos, boas salas e a comodidade higiénica que dava aquela casa-de-banho. Era uma memória um tanto diacrónica, eu estava a rever aquelas imagens de destruição e a recordar as instalações em que vivi, o quanto suspirava chegar do fornecimento de munições a Taibatá e Demba Taco e ter este aconchego à minha espera, ou do regresso de uma coluna ao Xitole, e depois de termos levado à arrecadação os cunhetes das munições poder limpar a pele e vestir roupa lavada.

E a memória ainda foi mais longe, naquele fim de julho, quando regressei de algures a Bambadinca e alguém me anunciou que chegara o substituto e qual o meu espanto quando encontrei no quarto um jovial cabo-verdiano que não deve ter percebido muito bem a minha inquietação, seguiram-se aqueles momentos que já descrevi, a gente guineense em fúria, propagara-se como rastilho a notícia de quem me vinha substituir, depois de mudar de roupa desci a rampa do quartel e fui com o Nelson Wahnon Reis até à loja do Rendeiro, ali ficámos a bebericar um uísque e a formular as primeiras perguntas e a receber com avidez as primeiras respostas. Era um homem de formação europeia, quis saber quem iria comandar e eu fiz-lhe o gosto, não regateando que iria ter pela frente homens destemidos, a primeira água do valor militar. Tal como eu, tinha estudos interrompidos, quis depois saber o tipo de atividades que nos estavam destinadas, ouviu atentamente os tais destacamentos que havia no Cuor, os aquartelamentos do Xitole e do Xime e Mansambo, desfiei o nome das tabancas em autodefesa, as idas a locais que davam pelo nome de Samba Juli ou Sinchã Mamajã ou Saré Adè, regulados como o Cossé ou Badora, havia também as emboscadas no Bambadincazinho, as noites na ponte do rio Undunduma e as vigilâncias nos Nhabijões e, claro está, de vez em quando uma operação dentro deste vasto setor.

Ouvia-me atentamente, com leveza e discrição levantei o véu dos problemas raciais e ele respondeu com gentileza: “Gostaria muito de ser bem recebido, vê se me podes ajudar junto do pelotão, procurarei fazer o meu melhor, sabendo que há desconfiança da minha origem. Tenho que aceitar a decisão de me terem posto aqui. O que não tem remédio, remediado está”. Seguiu-se mais um uísque, era para desejarmos as maiores felicidades um ao outro. Irei acompanhar nos primeiros meses da nossa separação a vida daquela minha gente. Foram para Fá, não era propriamente um merecido descanso, ali ao lado formavam-se fornadas de Comandos africanos, havia que lhes prestar segurança. Escrevi várias vezes ao Nelson, fez-me a vontade de um pedido especial, que festejasse o Natal, foi cumpridor, enviou mesmo fotografia, enviei-te com o último maço de documentos. Conseguiu-se quebrar naquela última semana de sobreposição o pior das reticências dos soldados, pelas informações colhidas acabaram por se dar bem embora em março de 1971 por razões que nunca alguém me explicou, o Nelson partiu de Fá, com paradeiro incerto.

Adorada Annette, segue também uma folha com uma visita que ocorreu, eu penso que a 24 ou 25 de julho, apareceram em Bambadinca deputados da Assembleia Nacional, quando entrei no bar estava ali sentado e com um copo na mão José Pedro Pinto Leite que eu tinha conhecido nas minhas andanças da Juventude Universitária Católica. A sala completamente vazia, pediu-me para eu me sentar e responder a algumas questões. Com frontalidade, disse-me que queria absoluta franqueza, o governador dera-lhe conta da gravidade da situação, pedia o meu ponto de vista sobre a guerra em curso, falei-lhe do que tinha vivido, lembro-me que até quis saber se havia por ali regiões libertadas, pedi licença e fui buscar vários mapas, mostrei-lhe em concreto onde vivia a população e atuavam as milícias e a tropa da PAIGC na região de Madina e Belel, bem como a partir da mata do Poidom e descendo o Corubal era impensável desalojar civis e guerrilheiros daqueles pontos para nós quase inatingíveis, uma coisa era chegar àqueles abarrancamentos e deitar-lhes fogo, outra coisa ali estacionar, esta era a lógica da guerrilha; e o que me parecia mais grave é que se via perfeitamente que aqueles guerrilheiros não quebravam e que tinham cada vez mais armamento sofisticado.

Agradeceu-me as informações, por duas vezes me deu a saber que iria informar o Presidente do Conselho da gravidade de tudo quanto lhe fora dado ver. Dias depois, veio a notícia da sua morte, seguia num helicóptero que foi tombado por um tornado sobre o rio Mansoa, morreu ele e outros deputados. E tens aí a narrativa de tudo quanto aconteceu nessa última semana, sempre ao lado do Nelson Reis houve um pouco de tudo em patrulhamentos, visitas a tabancas, vigilâncias. Do novo comandante de Bambadinca recebi a anuência de louvar alguns dos meus bravos, guardo os louvores que me saíram do punho e que foram dados a Benjamim Lopes da Costa, Domingos da Silva, Queta Baldé, Manuel da Costa Victória, Quebá Sissé, Cibo Indjai, António da Silva Queirós, minha adorada, enviei-os também num maço de documentos, para meu orgulho impante vieram todos a ser dados por oficiais-generais.

Rememorando todos estes aspetos da sobreposição, fiquei felicíssimo, como disse atrás, por se ter quebrado tão rapidamente o gelo entre os soldados e o futuro comandante, fiz todo o possível durante essa semana em que andámos todos juntos em apresentar um por um as praças e os sargentos ao Nelson. E assim chegou aquela noite da inevitável despedida, já me foi entregue uma guia de marcha, no princípio da tarde do dia seguinte tomarei a lancha Alfange no Xime. Enternecido, ouvirei cumprimentos de despedida e numa curta cerimónia o segundo comandante leu uma proposta de louvor que seguia para Bissau, ouvi tudo de cabeça baixa e as lágrimas a dançarem-me nos olhos. Tens aí a fotografia daquele jovem, Mamadu Soncó, filho do antigo guia e picador Quebá Soncó, há semanas que montou tenda no nosso quarto-camarata, estranhei não ter havido nenhuma queixa dos outros alferes, creio que eles se aperceberam que o jovem estava plenamente convencido que eu o traria para Lisboa, o Mamadu já conversava com toda a gente, era um dado adquirido que o nosso alfero cumpria as suas obrigações com a família Soncó, a que se vinculara.

Na derradeira manhã em Bambadinca passei o termo de responsabilidade para o Nelson, assinámos a papelada necessária, o mesmo fiz na secretaria. E na hora aprazada a coluna saiu de Bambadinca, já me despedira das famílias dos meus soldados, daquela gentil professora primária que tanto apreciava conversar comigo sobre o passado recente da Guiné, ela fora professora no Cuor, quando me dirijo para a coluna vejo o insólito de levar a bandeira portuguesa hasteada, toda a gente fardada num brinco, tudo solicitude, vieram ao quarto buscar as caixas e as malas que transportarei comigo. Haverá muitos acenos pelo caminho, os que estão na ponte do rio Undunduma exigem abraços, o régulo de Amedalai, toda a milícia, um ror de população, veio cumprimentar-me. O mesmo acontecerá no Xime, estou emocionalmente dividido, a guerra acabou, está a entrar por uma nesga da minha alma a saudade inextinguível, despeço-me de todos, noto que o meu guarda-costas desapareceu e explicam-me que ele está em grande sofrimento, o seu maior amigo vai desaparecer da sua vida, nós, os africanos, nosso alfero, não quero que nos vejam a sofrer e muito menos a chorar. Tomo o meu lugar na Alfange, é o último aceno para terra, a lancha começa a viagem, estou terrivelmente só, espacialmente perdido entre aquele passado turbilhonante, a inquietação do presente, os sonhos ardentes do futuro.

Minha adorada, vou agora contar-te um encontro que tive com o Cherno Suane aqui há uns dias atrás, perto do local onde ele trabalha, almoçámos na Pérola de São Paulo, o Cherno fez-me uma surpresa de ter passado a escrito aqueles últimos tempos em Bambadinca, espero que fiques maravilhada com as recordações deste homem que eu amo como um irmão.

Parto dentro de três dias, estou ansioso por saber o que o destino nos reserva, sem qualquer ponta de exagero acho que merecemos que esta oportunidade de trabalhar em Bruxelas se concretize, a despeito da multitude de problemas que tenho para resolver em Lisboa, só que tu, e a felicidade dos meus filhos, se sobrepõem a estes pequenos obstáculos. Vou telefonar esta noite, para te dizer que sonho viver contigo e, quando tu quiseres, casarmos. Un quilomètre de bisous, Paulo.


Aqui houve o bar da messe de oficiais, estamos em Bambadinca
Aqui houve uma cozinha equipada
Aqui funcionou no espaço da cozinha a zona dos fogões
Imagem do corredor que ligava a entrada para os quartos e que se prolongava até à messe dos oficiais
Aqui houve chuveiros e uma casa-de-banho perfeitamente equipada
Foi neste lugar, no início de agosto de 1970, no estanco do Zé Maria Tavares, que ofereci o almoço de despedida aos bravos do pelotão
Rua Oliveira Salazar. Bilhete Postal, Coleção "Guiné Portuguesa, 135". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte, SARL)
Outra imagem do Bissau Velho, quase na atualidade
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22712: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (78): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22669: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2021

Queridos amigos,
Estamos no pico da época das chuvas, há muitas entradas e saídas no pelotão de Paulo, parte gente muito amiga, irá ficar uma saudade irreprimível, curiosamente algumas dessas relações terão futuro. Depois de uma vida nómada, é distribuída uma tarefa de responsabilidade mas num quadro de mais acalmia, há que garantir a segurança de quem anda a pôr macadame e tapetes de alcatrão numa estrada que ficará conhecida como a de Xime-Bambadinca. Primeiro desmatou-se, e muito, para dissuadir emboscadas em pontos que outrora deixaram recordações sinistras, como Ponta Coli. O único senão são as tremendas chuvadas, e é numa dessas situações que lembravam o dilúvio universal que Paulo vai conhecer uma dimensão do ódio da boca de um homem civilizado, ouvirá um discurso alucinante que descreveu a Annette com o pedido de o registar por inteiro, era um ódio que depois se soltou na vida da Guiné e em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (76): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adorable Annette, fiquei estonteado com o telefonema do dirigente da Confederação Europeia dos Sindicatos e do seu convite para vir dirigir o departamento dos consumidores. Ao que consta, o meu trabalho voluntário tem sido muito apreciado, a atual dirigente, a italiana Rossana Vittorini regressa a Itália para funções no seu sindicato nacional, devo ir a Bruxelas dentro de uma a duas semanas para conhecer a proposta da confederação, fiquei de orelha arrebitada quando me perguntaram se eu podia meter licença e fazer um contrato até cinco anos. Não embandeiremos em arco, mas, meu amor adorado, vislumbra-se a possibilidade de nos juntarmos. Quando ontem à noite te telefonei senti perfeitamente o eco da tua legítima alegria e comunguei com o choro que se seguiu. Vamos fazer figas e, entretanto, avancemos para o que ainda falta desta comissão. Imagina tu que a mexer nestes últimos papéis encontrei esboços dos preparativos da Operação Beringela Doce de que já falámos, caso tu consideres útil, poderás utilizar estas folhas.

Então, deixa-me ainda falar das saudades que eu sentia naquele tempo. Apareceu Cherno Suane, estava a recuperar do seu duplo traumatismo craniano, tudo tinha a ver com a minha anticarro de Canturé, de outubro de 1969. Foi uma alegria abraçá-lo, deram-no como capaz para o serviço, mas eu sinto que se instalou uma limitação na sua vida, fala mais lentamente e não tem a afoiteza que lhe conheci no andar. Vamos ver. Como recordarás, foi este querido amigo que te apresentei nas férias de verão, fomos visitá-lo no local onde trabalha, no Largo de São Paulo, veio depois jantar connosco. Fiquei com uma enorme gratidão com o Teixeira das transmissões, colaborador impecável, revelou-se incansável na reconstrução de Missirá, nunca recusou andar com aquele rádio monstruoso às costas nas operações. E partiu igualmente o Barbosa, era conhecido pelo Boina Verde, era o seu verdadeiro fetiche. E contei-te também que depois de termos feito uma operação de que resultou uma emboscada com sucesso, já teríamos retirado pelo menos uns dez quilómetros, caminhávamos em direção a Missirá e ele veio dizer-me que tinha que voltar nem que fosse sozinho àquele local, dera agora pela falta da boina, lembrava-se que a tinha posto no chão ao lado onde estava deitado, foi o cabo dos trabalhos convencê-lo que não nos podia obrigar a tal violência, comprometi-me a que voltaríamos no dia seguinte, foi nova operação, temíamos encontrar um grupo do PAIGC naquele local, felizmente nada aconteceu e ele recuperou a boina. E reapareceu também Albino Amadú Baldé, a quem eu ternamente chamava o Príncipe Samba, mantinha a pose de um aristocrata, olha bem para esta fotografia que te envio, a pose natural de alguém que tem linhagem nobre. Fiquei magoado com a decisão de o passar à disponibilidade, ele que teve fraturas e ficou diminuído pela mina anticarro, em Bambadinca entendeu-se que ele podia ficar em regime de colaboração mas sem vínculo nem direito a reforma ou a qualquer tipo de pensão, bem procurei dialogar com os novos senhores do mando em Bambadinca, o Albino está presentemente a dar aulas, mas acho uma tremenda injustiça esta marginalização, ele foi efetivamente o comandante da milícia de Missirá, valoroso e de uma fidelidade sem mágoa. Irei visitá-lo anos depois e sabe Deus o que me custou ouvi-lo dizer que vivia numa discreta miséria, estendia-me a mão a pedir ajuda.

E começou o meu mês de julho, a minha incumbência é a de montar segurança permanentemente não só à equipa da TECNIL como aos trabalhadores que acompanham o alcatroamento da estrada, estamos na fase de trabalhos já depois do Xime e em direção a Amedalai, qualquer coisa entre 8 a 9 quilómetros separam estes dois locais onde decorrem os trabalhos. Junto ao Xime já se alcatroou, desmatou-se tudo à volta até um local que no passado deixou sinistras lembranças, Ponta Coli. A maquinaria é pesada e por isso é obrigatório todos os dias recolher a um porto seguro, decidiu-se que fica toda instalada em Amedalai ao fim da tarde, e com o despontar do dia daqui se parte quer para aprontar o macadame quer para atapetar com alcatrão. Uma parte da equipa do TECNIL parte ao amanhecer do destacamento do Xime, o grosso dos trabalhadores permanece em Amedalai, é daqui que eu e cerca de 20 homens (não mais, estamos em plena época das chuvas, há muita gente a sofrer de malária) os acompanhamos, montamos segurança em áreas desmatadas, tudo com os primeiros alvores do dia, sempre da mesma maneira: na primeira linha um grupo de cinco picadores, depois dois Unimog pejados de trabalhadores, seguem-se as máquinas, das mais potentes às mais ligeiras, nós seguimos os flancos, aqui começa a nossa vigilância de águia.

Nunca te esqueças que a época das chuvas nos reserva a mais completa incerteza, o amanhecer tem sempre alguma neblina, às vezes há uma chuva intensa e depois o dia aquece sufocando-nos as gargantas e as narinas, é quase sempre um tempo de estufa, e por ali andamos como suor a empapar-nos a farda. Às vezes os imprevistos do tempo obrigam a paragens, os trabalhadores estão a lançar o cascalho, cai aquela água toda dos céus, e toda aquela pedra britada escorre para as bermas, dá o seu trabalho ir buscá-la para a fixar na futura estrada. Por ali andamos a patrulhar, só posso falar por estes primeiros dias, não há flagelações, não encontramos indícios da presença de guerrilheiros, na verdade desmatou-se em profundidade em ambos os lados, não nos interessa o que andam as máquinas a fazer nem nos apegamos à barulheira dos trabalhadores, o que nos interessa é detetar a presença guerrilheira e neutralizá-la, nada mais.

Cada um leva a comida no bornal, não há tempo para folgar à mesa, e quem vigia não deve perder-se em cavaqueiras com quem trabalha, mesmo no período da manja. A exceção que abro é quando aparece o responsável pelas obras, um engenheiro que deve ser cabo-verdiano, é de trato afável, um homem que deve estar próximo dos 35 anos, pelo que me é dado ver impõe-se pela sua competência, nada de gritarias nem de insultos, desloca-se entre os grupos que trabalham, dá ordens, presta esclarecimentos aos capatazes, para para retificar, vê-se a olho nu que é respeitado. E assim passam os dias, aproximadamente quando se aproxima o lusco-fusco já estamos todos em Amedalai, temos nessa altura a garantia de que a estrada está picada até à ponte de Undunduma, e assim se chega a Bambadinca e temos quase metade do dia por nossa conta. De vez em quando há exceções, havia uma semana de idas e vindas ao alcatroamento da estrada quando recebemos indicação para seguir para Mansambo dois dias, os de lá partiam para uma operação, competia-nos dar segurança a quem ali ficava. Tudo correu bem e voltámos à rotina de Amedalai. E veio um capricho dessa época das chuvas que me vai arrastar para um episódio que ainda hoje me faz pensar no ódio que vive dentro dos homens, bem camuflado até que chega a circunstância de um desabafo. É o que eu te vou contar a seguir, e permite-me, minha doce Annette, é suficientemente impressivo para constar do nosso romance.

Tive hoje um dia estranho em casa, imagina tu que olhei as coisas com uma certa distância, como se já tivesse a criar o sentimento de que vou viver para Bruxelas. Bom, há que controlar os sonhos para não haver os amargores da deceção. Tenho agora uns dias de muito trabalho com as aulas em Santarém e na Caparica, mas não deixarei de telefonar. Bisous, mas também besinhos para a mulher mais formosa da Bélgica e arredores, ton amoureux, Paulo.

(continua)


Uma vista da tabanca de Amedalai, fotografia de 1997, tirada pelo meu estimado amigo Humberto Reis, seguramente que aqui houve estabelecimento comercial, sabe-se lá se de mancarra ou de venda a retalho
Desculpa as cartas brutais que por vezes te mando (inclui excerto de aerograma de Mário Beja Santos), aguarela de Manuel Botelho
Quando visitei o meu inesquecível Albino Amadú Baldé, há uns bons anos
Cherno Suane, o guarda-costas e o irmão
Entre grandes amigos, Bissau, outubro de 1969, Barbosa, o da Boina Verde, é o primeiro à esquerda, o Teixeira está ao meu lado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22652: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (75): A funda que arremessa para o fundo da memória

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22518: Notas de leitura (1378): José Jamanca, Ussumane Baldé, o eterno retorno dos meus bravos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
São coisas da vida, uma mudança de casa obriga a mexer em papéis e é neste insano guardar ou deitar fora que se atiça a memória, num contexto quase improvável, tudo se julgava já no seu devido lugar, o caso da correspondência que se entregou ao camarada Luís Graça, não se conhecia melhor prova de confiança e dedicação ao entrar de corpo inteiro no blogue. E aqui se fazem desabafos e se pede fraternalmente desculpa por alguma lamechice nesta polvorosa de recordações, cada um tem direito às suas, o absurdo (ou talvez não) é como elas estão tão vivas, pois a dedicação a tais pessoas, mesmo enviesada pelos alcatruzes da vida, foi e é plena.

Um abraço do
Mário



José Jamanca, Ussumane Baldé, o eterno retorno dos meus bravos

Beja Santos

Tudo começou com uma mudança de trastes, sai-se de uma casa e entra-se noutra, parece que nasce uma nova ordem, o que estava emparelhado pede agora uma outra configuração. Com a estante dos livros, é relativamente simples: o que está a mais, o que não se voltará a ler, é para oferecer, o resto aproxima-se entre a Literatura, a Arte, a História e tudo o mais. O pior são os papéis, as pastas de plástico com notas de viagem, até bilhetes de entrada em museus ou concertos, programas disto e daquilo, há que rasoirar, não se pode acumular tudo e portanto há que selecionar o que irremediavelmente vai para o lixo e aquilo que tem valor estimativo ou até mesmo sacramental, está metido na pele, deve conservar-se até ao último dia das nossas vidas, justifica a nossa presença, tem a ver com a nossa memória.

É nisto que se encontram papéis que já deviam estar noutros sítios, noutras mãos, coisas da Guiné, que falam alto de afetos, de gente desaparecida. Uma carta de Cherno Suane, o guarda-costas de alfero, o irmão que quis vir para Lisboa, que aqui trabalhou numa loja de eletrodomésticos, vivia no Largo de São Paulo, bem perto do Cais do Sodré. Desaparecido, uma terrível doença do foro respiratório liquidou-o em lume brando.

Cherno Suane.

Uma carta garatujada de Mamadu Camará, o 221, um turbulento Dom João que arranjava problemas na tabanca Mandinga, sempre endividado, a cobiçar os sapatos de alfero, a pedir adiantamentos, um soldado destimidíssimo, foi incorporado na 2.ª Companhia de Comandos, em Salancaur um tiro desfez-lhe um calcanhar, tudo se tentou até se chegar à amputação da perna. Vive entre a Pontinha e várias casas em Belfast, como ele diz, vai visitar os netos cor café com leite. Deve ser um tique irlandês, em qualquer estação do ano anda de gravata e colete, o que vemos aqui com pé firme no capim já não existe, temos agora um gentleman, um avô bondoso, de cabelo integralmente branco.

Mamadu Camará.

Entre folhas desirmanadas, solta-se esta fotografia do José Jamanca, uma saudade larvar toma-me por inteiro, regresso a Missirá, regulado do Cuor, em agosto de 1968, depois de Albino Amadu Baldé, o sargento que de facto comandava o pelotão de milícias n.º 101, quem falava o melhor português era Mamadu Baldé, o 86, que tinha vindo quase um ano a Lisboa, fazer cirurgia a um braço metralhado, e José Jamanca, que estudara numa escola missionária, com aproveitamento excecional. Exprimia-se soltando as sílabas todas, oferecendo-se para dar aulas aos meninos de Missirá, ainda na falta de professor, por decisão própria seguia à frente do nosso alfero, tal como aconteceu naquele dia de dezembro de 1968, em Chicri, num súbito encontro com uma coluna que vinha de Madina. Adorava conversar, queria continuar os seus estudos. Um dia partiu, rescindira o seu contrato como milícia. E anos depois, bateu à porta de alfero, em Lisboa. Tirara um curso de eletricista em Leningrado, trabalho em Lisboa não lhe faltava, explicava minuciosamente o que fazia e pediu ao alfero para passear com ele pela cidade. Os anos passaram, veio anunciar que estava tuberculoso, não queria ir tratar-se sem despedir-se, foi um encontro memorável, duas memórias ao desafio, e neste preciso instante estou a vê-lo a caminhar com uma bolsa de pano a tiracolo, com andar pausado, pés em sandálias de plástico, sorri-me em Mato de Cão, chove copiosamente, viemos sem poncho, tem que se estar naquele ponto alto na observação, não se preocupe, alfero, depois vem aí o sol, tudo seca, e vamos comer as laranjas de Canturé. É uma saudade imensa, ter consciência de uma dedicação que não se tratou por igual, registar este olhar com o seu pequeno estrabismo no olho direito que em nada compromete a força de caráter que salta da imagem. Fotografia que andava desviada, José Jamanca vai ficar no meu escritório para me lembrar a qualquer instante a verdadeira cor da amizade.

José Jamanca.

E por fim a mais esquecida das cartas, veio de Ussumane Baldé, o 104, o meu soldado prussiano, quando abordado empertigava-se, punha-se em posição rígida, os braços colados às pernas, as mãos com os dedos todos fechados, ao princípio parecia que falava a medo ou que se sentia atemorizado, com os anos a tensão diminuiu, confiava na fraternidade, fora permanente a camaradagem. A carta vem datada de perto do Natal de 1991, talvez mesmo no dia em que nosso alfero regressara a Portugal depois de uma cooperação cheia de vicissitudes, com êxitos e desastres. Ussumane fala do querido pai, da confiança que ganhara nos anos de tropa em comum, pede para vir trabalhar em Portugal, tinha perdido os seus documentos, como se fosse necessário envia-me o número mecanográfico 820332/66, estivera também na 2.ª Companhia de Comandos, manda referências de todos os seus documentos e pede a este seu querido pai que satisfaça o pedido daquele filho, pede resposta urgente, que nunca chegou.

Uma nota final. Quando, em 2010, combinei com Fodé Dahaba a viagem ao Cuor para me despedir dos meus soldados, ao chegar a Bambadinca fez-se um exame de quem fora abordado ou faltara abordar. E vieram os disparos brutais: Mamadu Silá morrera há pouco tempo, outros havia que viviam longe e não tinham dinheiro para tal viagem. E Ussumane, vive ainda no Cossé? Ao lado de Fodé estava Sadjo Seidi, outro dos bravos, a viver em Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, e sussurrou: morreu súbito, de paludismo, o ano passado, falava muito em ti.

É este o meu eterno retorno, a despeito de pensar ter todos os papéis arrumados e a carga emocional em ordem, há sempre estes imprevistos, na arrumação dos trastes todos os bravos, ou quase, reaparecem, têm este precioso condão de trazer ânimo ao presente pois se lembra que foram anos intensos e ali se lançou à terra uma semente de camaradagem para esta memória de longo porte, sempre a pedir mais água, os troncos das árvores sobem até às nuvens. E ponto final.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22513: Nota de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Guiné 61/74 - P22453: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Pode parecer bazófia, mas é pedir muito à memória que reconstitua, quase ao milímetro, a operação Tigre Vadio. Paulo Guilherme é um cinquentão maduro, bateu-lhe a felicidade à porta, adora o trabalho, propôs à mulher que ama profundamente que ela operasse como uma cronista de acontecimentos pretéritos, marcantes, agora revividos na grande angular de dois anos de comissão, sem intervalos nem desfalecimentos, narrados tal como ele os recorda. E o que é mais surpreendente é que ele pode, a partir das decisões tomadas na sala de operações, descrever o que se passou, os preparativos que não foram tão minuciosos como isso, cometeu o erro palmar de se esquecer dos jerricans de água, coisa que não passou pela cabeça dos capitães, mas isso também não o alivia, ao escrever a Annette o que mais o confunde e perturba é a memória fotográfica do tempo e dos lugares, revê feições, contempla panoramas, percorre novamente Cancumba, Paté Gidé, Sancorlã, Salá, tem diante dos olhos uma monumental queimada que vem de Madina, e que tudo vai alterar, e chega-se a um trilho que foi indicado lá dos céus por um major de operações, são duas horas tórridas, impensável que alguém se possa aproximar do centro nevrálgico de Belel e trazer a besta do Apocalipse. Pois aconteceu.

Um abraço do
Mário



Rua do Eclipse (65): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette adorée, ma fidèle chroniqueur, mesmo enquanto me desenvencilho das últimas frequências que estou a classificar, e pressionado pelos prazos imperativos de dois documentos que esta semana a Associação Europeia de Consumidores tem que enviar para os serviços da Comissão Europeia, não posso furtar-me de dizer que estou cheia de saudades tuas, que já estão esboçadas as primeiras duas semanas de férias, tu pediste-me dois dias em Lisboa para irmos ao Parque das Nações, ver a exposição das joias de Goa, conhecer o Museu da Cidade e voltar novamente aos Jerónimos e Museu do Chiado, encontrei duas casas maravilhosas numa freguesia do concelho da Lourinhã, perto de tudo, iremos a Óbidos, às Caldas da Rainha, a Alcobaça, às praias, comer peixe a Peniche, na primeira semana, e penso ficarás feliz por esta iniciativa, Jules andará connosco por Lisboa e pela chamada região do Oeste, hesito se não devíamos visitar o Porto e o Douro demoradamente. Se não te importas, é assunto que trataremos telefonicamente dentro de dias, quando eu tiver dado as classificações dos meus alunos.

Não quero iludir que me estás a pôr questões que exigem respostas bem dolorosas, até porque mantenho a memória em carne viva. Continuava combalido pela notícia da morte daquele que foi o meu mais querido amigo da juventude, entregue a rotinas, coisas como montar a segurança à volta do Bambadincazinho, isto quando o Ministro do Ultramar, o comandante-chefe e o comandante de Bafatá visitavam o reordenamento dos Nhabijões. O que antes era seguro deixara de o ser. Apareceram minas entre a ponte de Undunduma e Amedalai. Num local chamado Fá formava-se a 1ª Companhia de Comandos Africana, destacavam-se mais efetivos para montar segurança no Cuor, e nós fazíamos parte destas andanças que, regra geral, nos eram ditadas em cima da hora. Tens aí os documentos, meu adorado amor, guardei o calendário dos preparativos que conduziram à mais sangrenta das operações em que intervim, a Tigre Vadio. Foi na manhã de 28 de março que o major das operações me convocou, compareceram os intervenientes, duas companhias reduzidas sediadas em Bafatá, companhia de caçadores de Bambadinca, dois pelotões de caçadores nativos, duas esquadras de morteiro, adicionando grupos de milícias. O que o Sr. major nos queria dizer era que o objetivo da operação seria o de bater a região Ocidental do Cuor e procurar destruir os acampamentos de Madina e Belel, se possível trazer prisioneiros e armamento. Sabia-se da existência de um bigrupo bem equipado que protegia as populações em Madina, Quebá Jilã, Belel e talvez em Sinchã Banir, à entrada do Oio, com ligação ao corredor de Sara-Sarauol, no voo de reconhecimento aéreo ele próprio verificara uma extensa rede de vias de comunicação. Há poucos dias, na região de Madina, fora desencadeada uma operação de paraquedistas, incendiaram um conjunto de barracas e havia sinais evidentes de vida organizada. Pediu sugestões para a organização de duas colunas, em seu entender não fazia qualquer sentido pormos tão grande contingente a irem uns atrás dos outros quando os objetivos da destruição e aniquilamento distanciavam cerca de dez quilómetros. Lembrado do desaire do ano anterior, daí a sugestão de que os dois destacamentos podiam partir separadamente, um do Enxalé em direção a Madina, o outro de Missirá para Belel, ou então partirem conjuntamente de Missirá e bifurcarem na região de Quebá Jilã, a retirada ficaria condicionada à evolução dos acontecimentos, devia pôr-se sempre a hipótese de que, ultrapassado o fator surpresa, qualquer uma das forças retiraria para o ponto de onde partiu. Senti-me feliz quando me disseram que os dois destacamentos se iriam autonomizar. E quero confessar-te, eu adorado amor, que nesse momento em que eu discutia com todos, as transmissões, as munições, os carregadores (falo de seres humanos que nos ajudariam a transportar os morteiros 81) esvaiu-se-me da memória os carregadores para jerricãs de água. Enquanto te escrevo, parece que sinto os lábios ressequidos, ando aos tombos num helicóptero com vidros estilhaçados, jamais me sai da memória aquele momento em que o piloto, numa lala completamente desconhecida e sem vivalma me convidou a sair com os jerricãs, ele deve ter percebido no meu olhar que não me lançaria em tão dementada operação.

Mas voltemos atrás, tens aí nos documentos a descrição detalhada dos preparativos, se houvesse informadores em Bambadinca eles seguramente que ficariam desorientados e gente a caminhar para Fá, gente a caminhar para Finete, gente num Sintex a subir o Geba estreito, não houve percalços, ao anoitecer do dia 30 de março entramos todos sossegadamente em Missirá, disfarço emoções, preparei-me para entrar aqui como em qualquer outro teatro de operações, claro está que abracei todos os meus amigos, pedi licença para descansar em cima de uma manta, mastiguei umas coisas de uma ração de combate. É nesse momento que se fez luz, estava em Missirá comigo o melhor conhecedor de toda a região, Cibo Indjai, faço-lhe a proposta de que ele seja o batedor com Queta Baldé, seguir-se-ão os meus bazuqueiros de elite, eu e Cherno Suane e depois os meus habilidosos apontadores de dilagrama, Sadjo Seidi e Tunca Sanhá. Não podia prescindir de Quebá Soncó e do meu querido amigo Bacari Soncó. Estamos juntos e ficou acordado que o ponto de separação seria perto de Quebá Jilã, então Cibo seguiria connosco para Belela, Quetá Baldé, Bacari e Quebá Soncó seguiriam na testa do destacamento que iria em direção a Madina.

Annette, talvez pela adiantada hora, talvez porque neste momento sinta incendiada a minha memória fotográfica, estamos a sair de Missirá ainda não é meia-noite, a temperatura excecionalmente elevada, seguimos para Cancumba, daqui para Paté Gidé, falta aqui um detalhe, depois de conversar com os guias fui falar com os capitães e com o meu camarada Alferes do pelotão 54, o capitão dos caçadores de Bambadinca, o capitão Brito, deu-me logo inteiramente luz verde para a escolha do itinerário. O capim é elevado, marchamos silenciosamente, todo aquele calor atabafa, seguimos para Sancorlã, graças à lua dou comigo embevecido, maravilhado, é uma vegetação frondosa, não sei como foram parar ali aqueles poilões gigantes, misturado com palmeiras, em dado momento entramos num túnel de vegetação, a luz altera-se e é com os alvores do dia que chegamos ao extremo do território onde por vezes fiz reconhecimentos, sabendo que a escassos quilómetros estamos em Quebá Jilã, paramos em Salá para um curto descanso, não se veem trilhos, não se ouve nenhum ruído nas proximidades. E inopinadamente sou procurado por Cibo Indjai, o caçador ágil, que tem uma visão de águia, encontrou um trilho, bem dissimulado, por vezes andamos por ali atarantados no meio de um terreno alcantilado, ainda não se sabe se já entrámos no corredor do Oio, que do avião nos dê indicações sobre a orientação dos trilhos. Amanheceu completamente, nunca se viu àquela hora da manhã um calor de frigideira, meu adorado amor neste exato momento parece-me que está a escorrer o suor em bagas e nesse momento, enquanto não se recebe qualquer informação de quem anda ou poderá vir a andar nos ares ficamos estarrecidos por uma extensa cortina de fumo. Paramos, embaraçados. O que fora gizado na sala de operações é contraditado pelo imprevisto daquela imensidão de fogo. Neste ínterim, somos sobrevoados pela avioneta quando o major de operações nos manda contornar a queimada e determina que os destacamentos devem continuar juntos, em direção a Belel, estou junto ao cabo das transmissões, António Fernando Ribeiro Teixeira, nos céus vem indicação de que um pouco mais à frente há um trilho, é para aí que nos devemos dirigir. Dou instruções aos guias, Sadjo Seidi segue na vanguarda, é de facto um trilho largo, são duas horas da tarde, ninguém pode imaginar que em breve vai começar o inferno em Belel. Peço-te perdão, é tudo fruto da idade e do trabalho, acredita que estou neste momento num trilho, estou a ver um rodado de bicicletas, volto àquele dia de 1970 em que disse para mim que felizmente estávamos protegidos pelo arvoredo denso, chegara alguma frescura. Amanhã continuo, espero que estejas preparada, já que leste os documentos que te enviei, para o turbilhão de fogo que se vai seguir.

(continua)


Abdulai Djaló, mais conhecido por O Campino, alguém lhe ofereceu um barrete de homem das lezírias, nos momentos de ócio vestia-se à paisana, um perfeito galã embarretado. Um bazuqueiro destemido, competia em heroísmo e bravura com Mamadu Djau, mas superava-o como galã, quando aceitou ser fotografado colheu a pose, nada aqui está por acaso, a mão delicadamente assente no joelho, fazendo jus à sua fama de cavalheiro sem rival.
Dir-me-ão que é uma imagem banal, como esta há aos milhões, só que o sentimento, a apreensão e a expetativa de quem vai nesta caminhada não é transmissível. Nesta imagem estamos todos os que atravessaram lalas, neste oceano de capim jovem, sabendo de antemão que há imponderáveis, surpresas, a hipótese de um morteiro fazer estalar aqui o caos, fracionar a coluna, desmotivar quem se apresta para o combate. Uma imagem do nosso blogue, seguramente que nela todos nos revemos.
Bendito helicóptero que traz notícias de quem amamos, nos evacua os feridos ou transporta generais ou coronéis que falam zangadamente, admoestando. Foi numa destas máquinas que vim a Bambadinca numa tarde num dia de abril de 1970 buscar 27 jerricãs de água que desafortunadamente não chegaram ao seu destino, o piloto lá teria as suas razões por ter os vidros estilhaçados, eu ia feliz com os sopros do ar, experiência irrepetível. E fui largado no Xime com toda esta carga de água enquanto os meus camaradas viviam o horror da sede.
Em novembro de 2010, em dia de emoções descomunais, na motocicleta de Lânsana Sori, entrei em Belel cheio de vontade de me reconciliar com o que aqui aconteceu num dia de abril de 1970, dia de luto para quem vivia no mato, pois a operação Tigre Vadio destruiu muitas vidas, deixou múltiplos sofrimentos. Encontrei antigos combatentes e conheci camponeses, houve quem pensasse que eu era médico ou fazia parte de um projeto de água potável, trazia uma bomba de água para Belel. Se houve dia de reconciliação na minha vida foi este, experiência inaudita, abraçar alguém que seria meu inimigo 40 anos antes e que me convidou a regressar. O que ainda não foi possível.
Os meus velhos soldados, a alegria do encontro, mas neste momento saúdo particularmente o homem que está ao centro, Sadjo Seidi, quando nos reencontrámos foi um abraço de choro convulsivo, Sadjo foi o único ferido do Pel Caç Nat 52 na operação Tigre Vadio, ele será o primeiro a entrar em Belel, o sentinela ainda tentará matá-lo, a granada rebentou na palmeira, ficou com o peito estilhaçado, será evacuado no mesmo helicóptero que me levará a Bambadinca para vir buscar água que não impediu que centenas de homens vivessem o inferno da sede.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22437: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (64): A funda que arremessa para o fundo da memória

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22355: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
Annette interroga Paulo Guilherme quanto à natureza dos seus relatos, pergunta-lhe se tudo quanto ali se diz é a clara certidão da verdade, de acordo com o que a memória permite e os papéis guardam. A resposta surpreende-a: há omissões, há segredos invioláveis, há papéis enganadores, caso de relatórios de operações que não podem ser tomados a sério. E dentro daquela vivência intensa manda o pudor que nem tudo se conte, viu-se gente com muito medo, havia um canalha que procurava permanentemente guias médicas, doía o dedo ou doía o ouvido, sempre doente, por coincidência adoecia na véspera da operação. E há histórias secretas, como a daquele oficial que até se quis mutilar para não aturar quatro alferes que o achincalhavam. Nem tudo se conta, dentro e fora da guerra. Parece que Annette ficou um tanto desconsolada, mas convicta que há segredos sobre os quais ninguém se atreve a escrever.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (60): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Mon adoré Paulo, proporcionaste-me ontem à noite, na longa conversa telefónica que tivemos, momentos intensos de meditação. Quando procurei voltar ao teu passado na Guiné e te pedi que tivesses a maior das franquezas comigo, queria saber se estavas a contar integralmente, e de acordo com as tuas lembranças, tudo o que efetivamente acontecera no período em que foste militar. Surpreendeu-me a tua pronta resposta: há a verdade histórica, há omissões, silêncio mais ou menos absoluto sobre certos factos, em consciência não pretendi adulterar ou perverter a sequência cronológica dos acontecimentos nem dos seus protagonistas. Mas nunca ultrapassei, por razões de pudor, a decisão de os pôr por escrito. Dou às pessoas silenciadas o dever do arrependimento e a liberdade de consciência.

Sentada, enquanto conversávamos, fui tomando notas dos esclarecimentos que prestavas, foste mesmo ao início da tua preparação militar em Mafra, tudo te parecera positivo ali, menos a comida, desnecessariamente abominável, não havia necessidade de aparecer um caldeiro com arroz de frango que metia patas e cabeças, um nojo. Foi ali que descobriste satisfação de te saber capaz de ir a trote até Mafra e voltar, adaptaste-te às marchas, rias-te interiormente das justificações ideológicas para a guerra colonial dadas pelos instrutores. Sentiste benefícios do período da especialidade em que foste exposto a muita dureza. Guardas a melhor das lembranças do período em que foste dar recruta na ilha de São Miguel, vejo nos teus papéis inúmeras referências a um certo deslumbramento quanto à descoberta de que possuías capacidade para liderar, há mesmo uma expressão curiosa que retive de uma carta enviada a um familiar: “Descobri que sei comandar, faço-o sem rispidez ou teatralidade, mas não ponho esse princípio da liderança como primordial quando voltar à vida civil, agora é vital que o aceite e desenvolva, pois irei acabar naturalmente com essa voz de comando”. Não escondes mesmo que houve algum choque adaptativo na vida da caserna e que a primeira noite em Missirá foi determinante para as decisões que tomaste nos dias seguintes, ias formar uma mentalidade ofensiva, procurar melhorar as condições de vida de quem ali vivia. Mas logo nessa noite te confrontaste com o furriel que mostrava frascos com dedos e orelhas, disseste-lhe sem hesitação que tal não voltaria a acontecer enquanto estivesses ali. Quando te falei neste assunto, respondeste que tinha ficado escrito não por razões de moralidade de última hora, era o princípio que exigias a ti e de ti para os outros, somos militares, iremos combater a sério, mas não somos torcionários.

Quando te abordei sobre questões de sexualidade, e tendo tu descrito num documento um episódio passado com um soldado branco e um africano, foste perentório: só me interessou explicar àquele homem as consequências da impulsividade, ele teria que pensar o que sucederia ao outro, daí não ter registado o nome deles, tudo decorreu na confidencialidade, ninguém soube da história. Falaste na complexidade do mando: fazer a guerra, cuidar do abastecimento de militares e civis, zelar pela segurança, em casos extremos fazer a justiça com o apoio do régulo, ser confidente, e disseste ter recebido muitas confissões, ouvido muito desespero, procuraste zelar pelos outros, usando sempre, quando possível, da absoluta discrição.

Viste gente cheia de medo em vários teatros da guerra, jamais contarás a conversa havida com um comandante de Bambadinca que contou a história de um comandante de unidade, altamente deprimido por se sentir desautorizado pelos seus alferes, e tu foste enviado para subtilmente pôr aquela gente a fazer guerra e só ali não voltaste mais porque te garantiram que o dito oficial seria doravante respeitado. Impossível contar a história, trazer nomes à baila. Entendeste que devias passar sumariamente pela profunda depressão de um teu colaborador que teve que ser evacuado e sujeito a tratamento psiquiátrico durante anos, aliás confessaste que te sentias altamente responsável de ter estado desatento a certos sinais e sobrecarregá-lo com tarefas que agudizaram o seu estado depressivo.

De algum modo deixaste-me alarmada quando me falaste no interesse muitíssimo relativo que têm os relatórios das operações e deste-me o exemplo concreto daquele que escreveste sobre o acidente da mina anticarro em Canturé, em outubro de 1969. Ninguém te perguntou nada sobre o relatório que, aliás, viria a ter aspetos úteis no futuro, na medida em que falaste nos sinistrados que ali viste ao duplo traumatismo craniano de Cherno Suane, teu guarda-costas, foi graças a esse relatório que conseguiste muitos anos depois que o processo dele fosse reexaminado e Cherno obteve o estatuto de deficiente das Forças Armadas. O que concretamente me disseste é que em muitos relatórios há referências despudoradas a mortos, que nunca ninguém viu, e também deste o exemplo concreto que te ofereceste para inserir em material destruído durante flagelações a Missirá e Finete as quantidades de material que te pediam em Bambadinca, inclusivamente tiveste um inquérito, veio um coronel a Missirá perguntar como é que tu tinhas desassombro em pôr tantos cobertores, lençóis e fronhas, capacetes destruídos durante as tais flagelações, tudo aquilo somado dava para três contingentes de Missirá e Finete? Tu contaste a verdade, a história acabou por ali.

Terrível é o que igualmente contas do processo de averiguações com aquela criança queimada por uma granada incendiária deixada abandonada num carro de apoio em Finete, em 1966 (dois anos antes de chegares à Guiné), a criança tirou a cavilha e ficou com as costas e pernas literalmente queimadas, era uma granada de fósforo. Recebeste ordens para orientar o processo, inquiriste a mãe da criança, ela própria também queimada quando procurou ajudar o filho, ela confirmou que a granada estava numa viatura militar, mandaste deprecadas para capitão, alferes e sargentos da dita unidade militar, uns não se recordavam de nada, outros não sabiam o que se tinha passado exatamente, alguém se lembrou que houvera evacuação da criança e da mãe, a culpa morreu solteira. E Abudu Cassamá, a criança sinistrada, nunca teve direito a qualquer indemnização de um ato de negligência militar. E em conversa ao telefone, meu adorado amor, tu disseste-me que nada mais podias fazer, para quê trazer nomes à baila, quantos atos desumanos foram cometidos assim, faltando ao dever de justiça?

Continuo, meu amor, a pensar em tudo quanto me disseste, no fundo, a vida em atmosferas tão intempestivas como aquelas que enfrentaste possui as suas conspirações de silêncio, guarda em poços fundos histórias imundas, segredos em que ninguém quer mexer. E, felizmente, como me é dado ver até agora da tua comissão militar não houve horrores de violações, brutalidades dementadas, barbaridades sobre as vítimas da guerra. Estou absolutamente convicta de que esses horrores, a terem existido, nunca te calarias.

Oh, ainda faltam dias para chegares, sei que estás cheio de trabalho, parto amanhã para Bruges, é uma surpresa, uma itinerância com os novos intérpretes, tenho a certeza absoluta que tu adorarias andar comigo nestas viagens. Mas eu depois conto-te tudo. Bisous, meu cavaleiro andante, meu estrénuo senhor do meu coração. Bien à toi, Annette
Quando concluía o meu livro "Nunca Digas Adeus às Armas", os primeiros três anos da guerra da Guiné, Húmus Edições, 2020, pus-me à cata de imagens elucidativas e com as quais eu me identificasse, não só pela qualidade como espelharem factos históricos do referido período. Assim cheguei ao contacto com o João Sacôto, que me autorizou a usar imagens suas estampadas no blogue. No conjunto disponibilizado, duas impressionaram-me muito. A primeira representa a partida do Cachil, um ponto da Ilha do Como onde depois da Operação Tridente criara um destacamento. A segunda notoriamente tem a ver com a partida de regresso, estamos no Pidjiquiti, os militares indumentam-se com a farda que precedeu a cor de sardão, uma imagem serena, trocam-se impressões antes do batelão os transportar para o navio. Como eu gosto destas imagens!
Foi em 2015 que estive pela última vez com o Benjamim Lopes da Costa, meu antigo 1.º Cabo do Pelotão de Caçadores Nativos 52. Zanguei-me com ele seriamente na noite de 3 de agosto de 1969, o Benjamim perdeu a cabeça durante um encontro com uma coluna de abastecimento que apanhámos, na noite escura, desatou aos impropérios, dei-lhe ordem de prisão. A cordialidade que nos unia foi mais forte, restabelecemos a amizade sempre que ele vinha a Lisboa tratar do seu problema canceroso fazia festa. Infelizmente, nunca mais tive notícias do Benjamim.
Pedi ao João Crisóstomo fotografias da sua passagem por Missirá. Como me agrada vê-lo ao lado do régulo Malam Soncó, de quem guardo uma saudade sem consolo, foi um interlocutor espantoso, e o que me surpreende é vê-lo aqui ainda tão viçoso e dois anos depois, quando o conheci, era verdadeiramente um homem grande, cabelo todo branco, ainda direito, mas a amarrecar, os olhos iam perdendo brilho. Mas a lucidez e bom-senso surpreendiam-me a qualquer momento do dia.
O meu mais recente desgosto, preludia seguramente outros que por aí virão, desaparecimento de gente que marcou a minha vida. Mas o que devo a Mamadu Camará não tem qualquer forma de recibo, quer pela dádiva da sua vida, prontificou-se para se sacrificar salvando-me dos estilhaços de uma granada de morteiro 82, em julho de 1969, estávamos em Missirá. Adorava os seus fatos completos, fizera-se um cavalheiro que ia visitar a família à Irlanda. Muçulmano heterodoxo, adorava a atmosfera dos pubs…
O porto de Bambadinca em dia de azáfama
____________

Nota do editor
Último poste da série de 2 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22335: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (59): A funda que arremessa para o fundo da memória