sexta-feira, 30 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9679: Notas de leitura (346): A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné, Gandembel/Ponte Balana, de Idálio Reis (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 27 de Março de 2012:

Queridos amigos,
É difícil imaginar o sofrimento que acompanhou a redação deste texto. Um grande escritor poderá fazer deste historial de sofrimento uma narrativa sublime, um libelo acusatório à irresponsabilidade de certos decisores militares que lançam seres humanos para posições indefensáveis, num esquema de ficção de que ocupam o território só porque estão homens dentro do arame farpado.
O nosso confrade Idálio Reis desvenda Gandembel em toda a sua grandeza e miséria: os limites da resistência física, moral e psicológica esticada até à linha da destruição, por isso quem resistiu devia merecer a nossa gratidão e sair do anonimato, é este o resultado sublime deste livro; miséria e vergonha para quem inventou aquele ponto ermo que serviu a propaganda do PAIGC.
O Idálio merece ser felicitado pela sua narrativa bem elaborada e original.

Um abraço do
Mário


A epopeia dos 296 dias no octógono de Gandembel

Beja Santos

“A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné” é um livro original, a diferentes títulos. O narrador, um dos seus alferes milicianos, surge como responsável pelo historial da companhia e depois apaga-se, volatiza-se na surpresa de um punhado de homens a quem atribuíram ma missão inacreditável, uma dobadoira de sofrimento constante, desde que abriram as primeiras fundações até ao dia da retirada. O narrador socorre-se de um português vernacular, usa sem artifícios um léxico luxuriante, cinzela a primor tudo o que nos vai aproximar de uma tragédia anunciada, descreve os acontecimentos da fundação e depois do desaparecimento de Gandembel e Ponta Balana, foi aqui que esteve o clímax da comissão da CCAÇ 2317, o que se irá passar em Buba e Nova Lamego é encarado como meramente acidental, é um correr da pena, quer-se o leitor preso e de tal modo que aqui se entretece mais uma dimensão dessa originalidade: Idálio Reis insere todos os acontecimentos da CCAÇ 2317 no amplexo de toda a guerra da Guiné, não nos explica exatamente porquê, mas o produto final acaba por contribuir para esta narrativa pungente deixar o leitor mais desassossegado. Afinal, dentro de um ecrã gigante de todos os factos e feitos da Guiné o que se passou em Gandembel/Ponta Balana é quase ou mais irracional de todo aquele cortejo de sofrimentos que levaram ao sofrimento atual daquele povo e à indignação (ainda presente) de quem combateu na CCAÇ 2317.

Idálio Reis não esconde a sua indignação: os documentos oficiais são parcimoniosos, parece que Gandembel foi uma redundância, mesmo com bastantes mortos e feridos. E temos uma singeleza para o corpo militar que se formou nos finais do Verão de 1967, no R.I. 15, a CCAÇ 2317 fazia parte do BCAÇ 2835. Em outubro tinha o destino traçado, rumo à Guiné. Finda a instrução especial, uma passagem por Santa Margarida. Em meados de Janeiro partem do cais de Alcântara no velho Quanza. Passam três semanas em Brá, na altura o presidente Américo Tomás chega a Bissau. Segue-se o treino operacional em Mansabá e Olossato. Os mandantes consideraram que a companhia amadurecera e podia partir para o Sul. Para uma terra de ninguém da região do Forreá. Esporadicamente, o narrador desaperta a neutralidade e clama em voz alta o seu protesto. Um exemplo: os acontecimentos de sofrimento, passados em Gandembel/Ponta Balana foram em tal quantidade, que desapareceram de modo significativo nos documentos oficiais conhecidos. E é por isso que nos sentimos profundamente chocados com esta provocante atitude, que em nada enobrece a instituição militar (…) Em seu nome, dos que tiveram a desdita de nos acompanharem neste longo pesadelo, em memória dos que vimos afastarem-se precoce e compulsivamente do nosso seio, procuraremos dar sinal dos amargos momentos vividos”.

A CCAÇ 2317 desembarca em Cacine e segue para Guileje. O narrador descreve os itinerários ali à volta do Cantanhez. Logo em 28 de Março, na proteção a uma coluna a unidade sofre duas baixas. Chegou a hora de partir para a criação de um quartel, em terra de ninguém. Antes, numa tentativa de desalojar o PAIGC das suas bases poderosas, vagas sucessivas de helicópteros lançam os para-quedistas em Cafal e Cafine e aniquilam um bigrupo. Em 8 de abril dá-se a partida, o narrador esmiuça os pormenores, teria havido nas imediações deste quartel que se iria fundar uma tabanca, de há muito abandonada, que se chamava Gandembel, bem pertinho do corredor de Guileje. Encetara a via-sacra, os soldados disfarçam-se de operários da construção civil, não basta os abrigos, são necessárias latrinas, desmatação, a criação de um posto de primeiros socorros, uma cozinha de campanha, ir buscar água ao rio Balana. Um pormenor: a água era infecta mesmo após alguma filtragem. Os guerrilheiros do PAIGC não tardam a apresentar-se com saudações de morteiros 82. Abriu-se o diário das flagelações, na noite de 30 de Abril houve 6 flagelações. A época das chuvas aproximava-se, foi uma autêntica corrida contra o tempo pôr de pé o destacamento de Ponta Balana. Ir buscar água ao Balana podia acarretar destruição, logo em 15 de maio um furriel aciona uma mina antipessoal e perde as duas pernas. Nessa data, a unidade militar está entregue a si própria quem ali tinha estado a dar proteção durante as primeiras semanas regressou a quartéis.

Há momentos em que sentimos que Idálio Reis quase nos obriga a descer àquela mata que se adubou de sangue, a descrição com que se constroem os abrigos, o nascimento da ansiedade em torno das colunas de reabastecimento e depois a forma exaustiva como ele menciona os ataques, dia após dia. As colunas são um suplício, víveres e munições custam um martírio a muita gente até chegarem a Gandembel. Spínola inteira-se da situação, tudo levava a crer que se Beli fora prontamente um quartel a abandonar por maioria de razão Gandenbel devia ser erradicado do mapa. Mas não, o número de mortos e feridos não para de crescer. Há datas horríveis, como 4 de Agosto, dia em que a companhia perde 4 elementos, descrevem-se ataques brutais, há cenas de solidão e de desespero, chega ali um alferes que prontamente entra em estado de choque, dali parte numa evacuação. O jornalista César da Silva, do Diário Popular, ali passa a noite de Natal, publicará uma reportagem audaciosa, inexplicavelmente a censura deixa passar as sequências de calvário que ali se vivem. E o narrador continua: “É na zona de Gandembel que o inimigo possui o maior potencial de fogo e foi contra esta posição que utilizou, pela primeira vez, o morteiro de 120 mm. Foi, também, na mesma zona que plantou o maior número de fornilhos (mina reforçada com torpedos de TNT que se destina a cortar itinerários, pois tem grande poder destruidor). No decurso de duras flagelações noturnas, o inimigo tentou penetrar no aquartelamento. Foi sempre repelido. Os para-quedistas deixaram 4 mortos em Gandembel e levaram alguns feridos, mas foram capazes de façanhas como a seguinte: numa nomadização orientada até algumas centenas de metros da fronteira, surpreenderam, certa madrugada, um bigrupo inimigo. Dizimaram-no completamente em menos de uma hora”.

Lê-se com consternação tudo quanto Idálio Reis escreve sobre as colunas de reabastecimento, aqueles três trajetos Guileje/Gandembel, Aldeia Formosa/Gandembel e Buba/Aldeia Formosa foram palcos de diferentes tragédias, tornaram-se caminhos de pesadelo e carnificina.

A ordem de retirada chegou finalmente, em Fevereiro rumam para Buba, a unidade vai ser ocupada nos trabalhos de vigilância da estrada. E mais tarde são destacados para um quase oásis, Nova Lamego. Balanço: “A bordo do Uíge, navegando de 5 a 10 de dezembro de 1969, sob o comando de um único oficial (este escriba), chegámos à unidade mobilizadora, 121 militares, com 11 sargentos, 29 cabos e 80 soldados. Perdas: 9 mortos (1 alferes, 1 furriel e 7 soldados), 18 evacuados para Lisboa”. Passadas estas décadas, o historial da unidade é apresentado ao público e deste modo: “Com imenso gosto e muito prazer, procurámos corresponder ao que um dia tínhamos prometido. É uma narração sucinta, indubitavelmente singela, mas que procurámos, à medida da nossa humilde pena de escrita, pormenorizar as múltiplas e diversificadas facetas em que a Companhia esteve inserida”.

É um relato que não deixará nenhum veterano de guerra insensível. Se Shakespeare voltasse à terra teria aqui pasto para uma das suas tragédias: a demência do poder, a impotência dos figurantes, a insensibilidade dos decisores, almas em desatino, uma permanente cena única em que os atores estão cercados por todos os lados.

Num relato inesquecível, mais uma riqueza testemunhal para o nosso blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9664: Notas de leitura (345): O Boletim Geral do Ultramar (4) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Torcato Mendonca disse...

Por isso eu disse:não é um livro,é, isso sim, um Guião para um filme.
São palavras que nos descrevem a guerra, pura e dura. são palavras que nos transportam lá para aquele local - ou será outro? Ainda ontem á noite li mais um pouco e parei. Li-o todo a correr, a sentir depressa todo aquele viver...depois fui lendo pausadamente.
Foi bom teres feito a recensão. Há, um ou outro ponto que não te acompanho. Noutros, iria focar mais certos acontecimentos. A leitura, por vezes arrepia-me, amarrota-me, diacho...ainda?
O Idálio Reis veio comigo no regresso a Portugal ou ao Continente para não me chatearem.

Que tudo tenha decorrido bem na apresentação do "Adeus até ao meu Regresso". Fala-se pouco na "Mindjer Garandi" Mulher Grande o da escultura Nalú.

Abraço T.