sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Guiné 63/74 - P10221: Notas de leitura (387): Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História, entrevistas de José Vicente Lopes (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 18 de Junho de 2012:

Queridos amigos,
Graças à proverbial solicitude do António Duarte Silva, li estas importantíssimas memórias de Aristides Pereira, tanto quanto sei encerram as suas últimas declarações sobre a formação e a vida do PAIGC durante a luta armada.
Ao contrário do seu livro “Uma luta, um partido, dois países”, onde dissimulou muita coisa, aqui não se deixou de intimidar pelos enredos africanos, dá a sua versão dos acontecimentos, desde o que ele pensar ter sido o pensamento de Cabral até o que coligava a força que o executou em 20 de Abril de 1973. E não se intimida a falar do fator cabo-verdiano nos diferentes momentos desta longuíssima entrevista.

Um abraço do
Mário


Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História (1)

Beja Santos

“Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”, entrevistas dirigidas por José Vicente Lopes (Spleen Edições, Cidade da Praia, 2012) é uma obra de consulta obrigatória para o estudo do PAIGC. Aristides Pereira foi o número 2 na hierarquia do partido até ao assassinato de Amílcar Cabral. Devotou-se ao aparelho e à sua logística, do princípio da luta até à hora da independência da Guiné, terá sido porventura a pessoa que mais tempo conviveu com Amílcar Cabral. Em muito estas entrevistas excedem o seu livro “Uma luta, um partido, dois países”, memórias encerradas no formalismo das conveniências de quem procurava silenciar os gravíssimos diferendos que dilaceravam o PAIGC e que assumiram formas violentas na morte de Cabral e no golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. Aqui, o dirigente do PAIGC, mesmo cuidando da prudência, mesmo polindo as expressões, chama os bois pelos nomes, põe fim a certos tabus mantidos pelo seu cuidado silêncio. A entrevista é orientada por uma figura de relevo da cultura cabo-verdiana, José Vicente Lopes, autor de vários livros a que oportunamente se fará referência.

Não cabe aqui focar aspetos da infância e adolescência ou tomar em conta a sua atividade como dirigente cabo-verdiano e presidente do país. Este livro, explica o entrevistador, é o resultado de 30 ou mais horas de conversa, repartidas em mais de duas dezenas de sessões, feitas na sua maior parte entre Março e Junho de 2003. O que nos importa realçar é este Aristides Pereira de quem Basil Davidson descreveu como alter-ego de Cabral. Aristides chega à Guiné em 1948, prestou provas em Bissau e seguiu para Bafatá. Fala do seu dia-a-dia e da sua evacuação com o início de tuberculose. Regressa depois à Guiné e é colocado em Bolama. Nas perguntas e respostas começa-se a falar às escâncaras em antigo cabo-verdianismo. É sintomático que a Aristides referindo-se a José Lacerda, delegado do porto de Bolama ele fala da sua antipatia aos cabo-verdianos assim: “Nessa altura, o que era considerado elite da Guiné era o quadro administrativo. Administradores, chefes de posto entre outras funções, eram quase todos ocupados por cabo-verdianos (…) Os assimilados da Guiné tinham uma vantagem sobre nós, cabo-verdianos. Era gente que tinha familiares no Senegal ou na Guiné-Conacri, de modo que tinham conhecimento do que se estava a passar em África. O nosso processo político e cultural é diferente. A nossa elite estava virada para a Europa, mais precisamente para Portugal. A elite guineense estava mais informada”.

Refere-se ao despertar político e à constituição de movimentos e partidos que praticamente não tiveram continuidade. Mais adiante, fala-se no gueto cabo-verdiano, que ele define assim: “Não havia convivência com os guineenses, sobretudo os da cidade. Não só havia a desconfiança do guineense assimilado em relação a nós, cabo-verdianos, havia um sentimento de superioridade em relação aos guineenses”. Amílcar Cabral chega à Guiné em 1952, Amílcar começa por se rodear de um grupo de cabo-verdianos que se alargou aos guineenses. Amílcar regressa a Lisboa e é depois do massacre do Pidjiquiti que o PAIGC levanta voo, em Setembro de 1959. Cabral considera que a luta pela independência percorrera caminhos errados, não se podia atuar na cidade mas no campo. E todos, por diferentes vias, partem para a clandestinidade. Em 1960, Aristides chega a Conacri, onde também o MPLA assentava os seus arraiais. São as vicissitudes do recrutamento, a necessidade de vencer muitos preconceitos sobre o PAIGC em Conacri, começam a chegar armas via Marrocos, os movimentos rivais não param de intrigar, descreve as reticências por parte de Senghor e chegamos a Agosto de 1962, quando o PAIGC declara a luta armada: “Cabral agiu de acordo com o plano traçado, que era a mobilização, a conscientização das massas e a organização, como devia ser, das nossas forças. Ele dividiu o território da Guiné em zonas e espaços controlados por determinados responsáveis, principalmente os estagiários que tinham estado na China: Osvaldo Vieira, Rui Djassi, Nino Vieira, Chico Mendes… eles iam fazendo esse trabalho e tinham instruções sobre que ações desencadear, que eram puramente de guerrilha, isto é, desassossego do inimigo. Depois, começa a implementação das bases de guerrilha, no interior, com gente que tinha passado pelo Lar de Conacri. Tinham noções de como falar com as populações, como também alguma preparação militar. Se bem que ainda eram coisas rudimentares, porque não tínhamos grandes armas. Com o estabelecimento das bases, os chefes de base e os guerrilheiros, começam finalmente as primeiras ações com o ataque ao quartel de Tite. Os guerrilheiros atacam e de imediato procuram-se esconder na floresta”.

Aristides Pereira não esconde que a importância da ilha do Como fora inflacionada pelo PAIGC, fizera-se tanta propaganda sobre o domínio do território que as autoridades portuguesas desenvolveram uma formidável operação que não resolveu coisa nenhuma. Ao tempo da batalha do Como ocorre o congresso de Cassacá: “Cabral, sempre com a visão dele, aproveitou para fazer uma das coisas mais importantes que tivemos na luta, que foi a criação do exército, as FARP (…) Além da estruturação das Forças Armadas, é também em Cassacá que aparece a ideia da administração das zonas sob o nosso controlo”. Com subtileza, Cabral institui o controlo político sobre o controlo militar que só desaparecerá com o golpe de Nino Vieira. Especula-se muito sobre o terão sido as conversas entre Amílcar e Che Guevara, certo e seguro Guevara não gostou muito do que viu em África e nunca escondeu que o único líder de gabarito que encontrou tinha sido Amílcar Cabral.

Confrontado com a pergunta de que só estava a falar da Guiné e quase nada sobre Cabo Verde, Aristides responde sem equívoco de que viam Cabo Verde como uma missão impossível, a geografia nada facilitava, havia muita hostilidade nas colónias cabo-verdianas, a começar pelos EUA, os cabo-verdianos de Dakar eram ferozmente contra, mesmo quando Pedro Pires chegou a Dakar cedo houve uma grande desmobilização.

O fator Spínola vai provocar uma tormenta no PAIGC. Vivia-se uma situação de impasse. Por essa altura um dirigente vietnamita expressou o seguinte ponto de vista: “Vocês, do ponto de vista de guerrilha, já fizeram tudo, já conseguiram fixar o inimigo no terreno; agora, ou vocês têm condições de preparar gente e ter material apropriado para desalojar o inimigo dos campos fortificados ou então a guerra vai ficar num impasse e isso é extremamente arriscado, porque eles, com outros meios, poderão chamar as populações para o seu lado”. Spínola trouxe a africanização da guerra, acelerou as operações com forças aerotransportadas e o helicanhão tornou-se no instrumento de guerra mais temível pelo PAIGC. Comenta a situação: “Tivemos revezes bastante sérios nessa altura. Havia gente desesperada, pensando que tudo estava perdido”. A resposta foi criar bases mais maleáveis. A sorte também jogou a favor do PAIGC, havia falta de tudo e foi nessa altura que os suecos passaram a mandar mantimentos, medicamentos e camiões. As populações à volta das bases passaram a dispor nos armazéns do povo de artigos de qualidade superior.

(Continua)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10208: Notas de leitura (386): O 25 de Abril e o Conselho de Estado - A Questão das Actas, por Maria José Tiscar Santiago (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Antº Rosinha disse...

Os assimilados da Guiné tinham uma vantagem sobre nós, cabo-verdianos. "Era gente que tinha familiares no Senegal ou na Guiné-Conacri, de modo que tinham conhecimento do que se estava a passar em África". (Diz Aristides e diz bem)

Esta coisa dos "familiares no Senegal e Conacri", é a principal causa da instabilidade crónica da Guiné-Bissau.(digo eu pelo que vi mais tarde)

Era comum os guineenses do povo demarcarem o comportamento das chefias militares por serem de origem da Gambia, de Senegal, Conacri e até de mais longe.

Talvez Amílcar, Aristides e outros de origem verdiana entrassem nesta guerra por antecipação a uma previsível e possível exclusão deles próprios num futuro da Guiné, ou até por preverem que Portugal não salvariam este futuro PALOP.

Na realidade estão definidas (não aceites mutuamente) as fronteiras geográficas, mas não etnicamente.

Sem Spínola, Amílcar e de muitos guineenses e portugueses a Guiné havia só uma como dizia Sekou Touré.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Meu Caro Amigo Beja

Estou a terminar a leitura do livro, que é vendido em Cabo Verde e que um amigo me enviou.

Da leitura que fiz até agora, constato muitas divergências entre eles dirigentes do PAIGC. Aristides Pereira dá pancada [desanca] em todos desde o Luís Cabral, Osvaldo, Pedro Pires; Francisco Mendes; Abílio Duarte, Nino Vieira; Silvino da Luz e tantos outros, apenas não beliscando Amilcar Cabral e ele refugia-se na actividade dele, na logística. Fala da divisão entre os guineus e os caverdianos, aqueles actuavam no mato e estes na sua maioria trabalhavam no ar condicionado, salvo algumas excepções. Na divisão entre caboverdianos PAIGC que tomaram o poder e os que actuavam nas Ilha, bem como, entre aqueles que não queriam a independência de Cabo Verde e eles do PAIGC e muito mais. Aliás, tenho outros livros também de caboverdianos, David Hoppfer Almada; Pedro Martins, arquitecto e que foi preso pela PIDE no Tarrafal, os quais testemunham e narram n divergências. Enfim, era bom que a rapaziada conseguisse ler tanto como tu, para se aperceberem que a unidade entre eles não existia e a verdade dos factos é que se vêm matando eles próprios uns aos outros e agora não podem descarregar na PIDE, pois não existe. Também a Unidade Cabo Verde Guiné é salientada, pois os caboverdianos não aceitavam e o Amilcar Cabral se sobrevivesse não conseguiria levar por diante o princípio que tanto propagava.... Enfim... só lendo
Recebe um abraço
Carlos Silva

JD disse...

Camaradas,
Estas recensões são um importante reforço do blogue enquanto fonte histórica sobre as questões ideológicas, os envolvimentos e acontecimentos que se referem à guerra de África, particularmente na Guiné, bem como ao 25 de Abril, e ao processo de descolonização.
Hoje, podemos anotar um desprezado nível de consideração sobre aqueles planos da investigação histórica, enquanto negação das propostas ideológicas que suportaram as lutas emancipalistas, consignadas pela recusa da maioria popular no apoio aos movimentos que lhes propunham uma pátria, mais felicidade, riqueza e organização social mas mobilizavam pela força (raptavam?), e apropriavam-se de alimentos, para além de outras reprováveis condutas.
De facto, diz a recensão, que algumas comunidades cabo-verdeanas não manifestavam sentimentos emancipalistas. Se tivermos em conta, que, também, outras comunidades de guinéus, de angolanos e moçambicanos, já para não me referir aos autóctones de São Tomé e Princípe e de Timor, enquanto maiorias dos territórios colonizados não foram apoiantes activos dos movimentos de libertação, apesar dos erros graves da administração colonial portuguesa, podemos afirmar, ou, pelo menos especular, que essas lutas decorreram , não só contra a presença portuguesa (como em outras regiões se lutou contra outros colonizadores), mas, principalmente, à revelia dos interesses das populações.
O despoletar da guerra de África até se compreende, tendo em conta o nível de atraso no desenvolvimento sócio-económico dos territórios e residentes, nas diferenciações normativas, que condicionavam os estatutos de brancos e pretos autóctones, em relação aos europeus, em confronto com as correntes emancipalistas que advogavam melhores condições de vida depois da expulsão dos europeus. Foram os americanos os primeiros e mais activos a estimular a revolta nos territórios sob administração portuguesa, a que mais tarde se juntaram a URSS, a China e os seus satélites. Nos últimos anos da guerra assistiu-se a um franco abrandamento do apoio dos americanos e dos soviéticos, com excepção destes no apoio à Guiné.
Do que antecede, pode, igualmente, suscitar-se nova questão, a do argumento da solução política para o desfecho da guerra de África, e o consequente desvio das razões dos capitães - com novas perspectivas a averiguar . para terem desencadeado o 25 de Abril, de cuja desorganização resultaram diferentes e graves perturbações em todos os segmentos do antigo império.
Abraços fraternos
JD

JD disse...

Camaradas,
Estas recensões são um importante reforço do blogue enquanto fonte histórica sobre as questões ideológicas, os envolvimentos e acontecimentos que se referem à guerra de África, particularmente na Guiné, bem como ao 25 de Abril, e ao processo de descolonização.
Hoje, podemos anotar um desprezado nível de consideração sobre aqueles planos da investigação histórica, enquanto negação das propostas ideológicas que suportaram as lutas emancipalistas, consignadas pela recusa da maioria popular no apoio aos movimentos que lhes propunham uma pátria, mais felicidade, riqueza e organização social mas mobilizavam pela força (raptavam?), e apropriavam-se de alimentos, para além de outras reprováveis condutas.
De facto, diz a recensão, que algumas comunidades cabo-verdeanas não manifestavam sentimentos emancipalistas. Se tivermos em conta, que, também, outras comunidades de guinéus, de angolanos e moçambicanos, já para não me referir aos autóctones de São Tomé e Princípe e de Timor, enquanto maiorias dos territórios colonizados não foram apoiantes activos dos movimentos de libertação, apesar dos erros graves da administração colonial portuguesa, podemos afirmar, ou, pelo menos especular, que essas lutas decorreram , não só contra a presença portuguesa (como em outras regiões se lutou contra outros colonizadores), mas, principalmente, à revelia dos interesses das populações.
O despoletar da guerra de África até se compreende, tendo em conta o nível de atraso no desenvolvimento sócio-económico dos territórios e residentes, nas diferenciações normativas, que condicionavam os estatutos de brancos e pretos autóctones, em relação aos europeus, em confronto com as correntes emancipalistas que advogavam melhores condições de vida depois da expulsão dos europeus. Foram os americanos os primeiros e mais activos a estimular a revolta nos territórios sob administração portuguesa, a que mais tarde se juntaram a URSS, a China e os seus satélites. Nos últimos anos da guerra assistiu-se a um franco abrandamento do apoio dos americanos e dos soviéticos, com excepção destes no apoio à Guiné.
Do que antecede, pode, igualmente, suscitar-se nova questão, a do argumento da solução política para o desfecho da guerra de África, e o consequente desvio das razões dos capitães - com novas perspectivas a averiguar . para terem desencadeado o 25 de Abril, de cuja desorganização resultaram diferentes e graves perturbações em todos os segmentos do antigo império.
Abraços fraternos
JD

João Sacôto Fernandes disse...

Não sou africano, nem balanta. Fui amigo de Fulas, mas, acima de tudo sou PORTUGUÊS. E tenho muito orgulho naquilo que os meus antepassados fizeram, desbravando o MUNDO, "Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal...
Repugna-me lêr escritos enaltecendo atuações inimigas, e subrepticiamente, denegrindo acçoões portuguesas.
Na história de qualquer povo há motivos de regosigio, assim como momentos menos felizes. Deixemos que os nossos inimigos se ocupem dos segundos.