DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (43)
A manhã não estava muito quente, regressavam de tomar banho nos três furos de água que havia a sul do aquartelamento, de onde vinha uma água quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa parecida. Traziam já o cigarro “três vintes” na boca, e o Curvas, alto e refilão, dizia ao Cifra:
- Tu não sabes o que é guerra, cala-te, tu és “tropa fandanga, tropa manhosa”, gostava de te ver a atravessar uma zona de lodo e tarrafo, sempre com o coração nas mãos, à espera de uma emboscada!
O Cifra ouvia e nada dizia, pois sabia que era verdade.
O Setúbal, acrescenta:
- Tenho mais medo de caminhar no lodo do que, às vezes, enfrentar uma emboscada, tens que caminhar, direito e sempre com todos os sentidos de alerta e equilíbrio, pois se cais, e não vai mais do que um companheiro a teu lado, é um grande problema para saíres, quanto mais força fazes, mais te enterras, e o companheiro que vem até a ti para te ajudar, se também se enterra, então é um desastre, tem que ser alguém a estender-te algo a que te possas agarrar para que aos poucos te vás safando. Então, nossa querida G-3, mais todo o equipamento que carregamos, fica com o dobro do peso. Quando se tem o azar de cair, é melhor não haver contacto físico, a maldita lama parece que tem cola, quando colocas o pé e o enterras na lama, ao tirá-lo, faz vácuo e quando se tenta mover os pés, fazemos muito mais esforço do que o normal, daí um substancial cansaço, e se não se tem os cinco sentidos apurados, entramos em pânico.
O Cifra continuava a ouvir, e compreendia que aquilo era verdade. E o Curvas, tirando o cigarro da boca, continuava:
- E não te quero dizer nada do que sucederia se ficasses enterrado na lama e a maré começasse a encher, depois logo a seguir à lama vem o maldito tarrafo, que é toda aquela vegetação, seca por baixo e verdejante por cima, que quando a maré está cheia, vista de longe é muito linda, mas quando não há água, até mete medo. Vem logo a seguir à lama, e temos que ter força para o atravessarmos, sempre arredando para o lado aquela vegetação tinhosa, cheia de mosquitos, e dizem que é lá que se metem os crocodilos.
E logo o Setúbal, fala mais alto, e diz:
- Também não exageres, pois eu nunca vi nenhum, mas depois a maldita lama entranhada no camuflado, com as minhas botas rotas, onde entra água e toda a porcaria, é um sacrifício caminhar. Quando vai o alferes da companhia de intervenção, e não quer parar, sempre com aquela voz fininha: “vamos, vamos, que se faz noite”, parece tal e qual as gajas que à sexta-feira apareciam na minha aldeia para fazerem “uma geral”.
O Cifa continuava a ouvir, e ia dizer que era verdade, mas o Curvas, alto e refilão, logo lhe dizia:
- Cala-te, essas mãos e essas unhas nunca sentiram uma G-3 com o cano em brasa e tu desesperado para dares mais fogo, não teres mais balas, portanto és “tropa rafeira, tropa fandanga, tropa manhosa”.
Entretanto chegaram ao dormitório, atiraram o resto cigarro para o chão, entraram ouviram o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, gritar para o Curvas, alto e refilão:
- Porra, estava à vossa espera para ir-mos ao café, pois já sabes, se chegas tarde, o Arroz com Pão, que era o cabo do rancho, fica pior que estragado, e ficas sem comer até ao meio dia.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10911: Do Ninho D'Águia até África (42): O Cifra encontra um inimigo (Tony Borié)
6 comentários:
Ganda Cifra, diz lá ao Curvas, alto e refilão:
-... Agora imagina estares no Rio Geba Estreito, no Mato Cão, encalhado num sintex, metido no tarrafo, e vir o macaréu... Em Mansoa, não tinhas o macaréu... não se pode ter tudo!
Um Alfa Bravo. Luis
Olá Luís.
Em Mansoa, não havia esse fenómeno do macaréu, pois a área era alagadiça e o rio expandia-se pelas zonas alagadiças e única e simplesmente inundava a área. Podia dizer-se, como dizes nos teus maravilhosos poemas:
...o rio, corria suavemente
inundando e separando
tudo aquilo que era gente
da bolanha e do seu campo.
As palavras não têm o encanto dos teus poemas, nem encaixam lá muito bem, mas percebem-se.
Um abraço, Tony Borie.
Uma pergunta para o Cifra: Deve grafar-se "tarrafo" ou "tarrafe" ?... Nos dicionários de língua portuguesa, só encontro "tarrafe",,, Penso que "tarrafo" é crioulo da Guiné-Bissau... Atenção; temos tendência para tomar "tarrafo" como sinónimo de "lodo" das margens dos rios...
Aqui fica um resposta a um consulta no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:
A origem e o significado do topónimo Tarrafal
[Pergunta] Primeiro que tudo, deixem-me dar-vos os parabéns. Parece-me que o Ciberdúvidas é um espaço imprescindível para quem trabalha com a língua portuguesa. E assim, gostaria que me esclarecessem sobre a origem e o significado da palavra Tarrafal. Em Cabo Verde encontramos o Tarrafal de Santiago, o Tarrafal de Monte Trigo em Santo Antão e a vila do Tarrafal em São Nicolau — e todos eles lugares quentíssimos. Terá a origem da palavra alguma coisa a ver com calor?
Obrigado. Manuel da Cunha Feijó :: Tradutor :: Mindelo, Cabo Verde
[Resposta] Segundo José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa), Tarrafal é um topónimo com origem num nome colectivo, tarrafal, derivado de tarrafe, que é o mesmo que tamargueira. Tarrafal significa, pois, «campo de tarrafes».
Note-se, contudo, que o Dicionário Houaiss indica que tarrafe é termo da Guiné-Bissau, com origem na palavra árabe tarf, «tamarindeiro», e que passou ao crioulo (presume-se que o dicionário se refere ao crioulo guineense). No Brasil, a planta em apreço é conhecida como mangue-vermelho, que é (idem):
«árvore de até 5 m (Rhizophora mangle) da fam. das rizoforáceas, com grossas raízes basais, casca adstringente, tanífera e de que se extrai tintura, madeira avermelhada, de qualidade, flores amarelas, axilares e frutos obcônicos, nativa de manguezais e áreas salobras de regiões tropicais das Américas, África e ilhas do Pacífico»
Trata-se, portanto, de uma planta própria de regiões de clima quente. Não podemos é dizer se a presença de tarrafes é indício de uma zona especialmente quente no contexto do clima das ilhas cabo-verdianas.
Sandra Duarte Tavares :: 17/09/2008
http://www.ciberduvidas.com/pergunta.php?id=24287
Eis alguns excertos de postes em que aparece o marcador "tarrafo":
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(...) Mas, se por um lado nos congratulamos com o fim da angústia de um dia a dia incerto, cheio de perigos e de stress permanente, quer pelas saídas em patrulhas para o tarrafo, picadas e bolanhas, onde nos esperavam inúmeras armadilhas, minas e emboscadas, quer pelos bombardeamentos ao aquartelamento, etc., que poderiam representar a qualquer momento a nossa mutilação e, ou, morte, por outro lado, chorávamos aqueles que faleceram e ficaram para sempre estropiados, nomeada e mais sentidamente os da nossa Unidade. (...)
9 DE MAIO DE 2010
Guiné 63/74 - P6350: Controvérsias (74): Como eu vi o fim da guerra (Fernando C. G. Araújo, ex-Fur Mil OpEsp / RANGER da 2ª CCAÇ / BCAÇ 4512)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2010/05/guine-6374-p6350-controversias-74-como.html
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Comentário de Carlos Nery:
(...) Passado pouco mais de um mês, em 17FEV69, perante a suspensão prolongada dos reabastecimentos In na zona do Cruzamento, a Companhia efectuou um reconhecimento à variante dos Rios Jassonca/Uaja. Transportados por LDM, desembarcámos efectuando cuidadoso reconhecimento. Perto da nascente do Jassonca encontrámos três canoas de grandes dimensões, escondidas no tarrafo e guardadas por sentinelas que se puseram em fuga. Destruímos as canoas e transportámos para a LDM diverso material capturado. (...)
10 DE OUTUBRO DE 2007
Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2007/10/guin-6374-p2172-fotobiografia-da-cca.html
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(...) Agora não era assim e, uns dias mais tarde, o Furriel P. procurou-me para me dizer que a sua esposa continuava a pressioná-lo para que a deixasse vir para a Guiné. Que sim, que já lhe escrevera a tal carta, mas ela até ameaçava que um dia aparecia-lhe no quartel, sem avisar. Esforcei-me por dissuadi-lo de colaborar em semelhante loucura, mas não contei com uma intervenção do Alferes Gomes, meu ex-colega de liceu, embora mais novo, e agora sempre decido a resolver tudo bem e depressa. Tendo presenciado a nossa conversa, gritou-lhe:
- Olha, pá! Se ela aqui aparecer, sem avisar, tu enfias-lhe um murro na tromba que ela fica enterrada no tarrafo até aos ovários. E agora, vai lá escrever a carta e conta-lhe a verdade, para ela ficar a saber porque é que não pode vir para aqui.
(...)
29 DE JULHO DE 2012
Guiné 63/74 - P10206: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (7): Um casal estranho
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2012/07/guine-6374-p10206-minha-guerra-petroleo.html
Olá Luis.
O Cifra é um grande "zero", a escrever português, o Curvas, alto e refilão, influenciou-o muito mal, mas na sua modesta opinião, em inglês, tanto "tarrafe", como "tarrafo", são palavras que não têm tradução, se disserem "tarrafe", ou "tarrafo" , estão bem pronunciadas, "tarrafo", é como dizes "crioulo", era a linguagem do povo, lá na Guiné, que dizia, "vai no tarrafo", feito de "tarrafo", a bolanha "cá tem tarrafo", pessoal branco, "não gosta de tarrafo", e muito mais um sem número de frases que nos ficaram na lembrança.
Na área de Mansoa, naquele tempo havia muito tarrafo e mosquitos, pois era uma área alagadiça.
Um abraço, Tony Borie.
Olá Luis.
O Cifra é um grande "zero", a escrever português, o Curvas, alto e refilão, influenciou-o muito mal, mas na sua modesta opinião, em inglês, tanto "tarrafe", como "tarrafo", são palavras que não têm tradução, se disserem "tarrafe", ou "tarrafo" , estão bem pronunciadas, "tarrafo", é como dizes "crioulo", era a linguagem do povo, lá na Guiné, que dizia, "vai no tarrafo", feito de "tarrafo", a bolanha "cá tem tarrafo", pessoal branco, "não gosta de tarrafo", e muito mais um sem número de frases que nos ficaram na lembrança.
Na área de Mansoa, naquele tempo havia muito tarrafo e mosquitos, pois era uma área alagadiça.
Um abraço, Tony Borie.
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