CARTAS DE AMOR E GUERRA
7. E a morte apareceu
A minha carta de 5/10/1965, abaixo transcrita, deu origem a um outro texto meu já publicado neste blogue a 7 de janeiro de 2012: P9326. ”Manhã maculada”.
Todos os capítulos publicados até agora foram compostos com excertos de várias cartas. Como parceiros da correspondência, eu e minha esposa, temo-nos abstido de publicar coisas de carácter muito íntimo. E há ainda aquelas partes que, a nosso ver, não têm interesse e/ou valor suficiente para aqui serem publicadas. O que não quer dizer que não sirvam de apoio e consulta para um qualquer trabalho mais alargado que, no futuro, possa vir a ser feito por alguém interessado neste tema e nos seus conteúdos.
Desta vez há só uma carta, a qual vai quase na íntegra para poder dar uma ideia sobre a minha posição político-ideológica na altura em que foi escrita, posição com fortes reflexos no meu modo de ver e de sentir a guerra.
Está claro que seria esquisito, para não dizer muito estranho, que as nossas opiniões de hoje coincidissem totalmente com as de há quase 50 anos atrás sobre seja lá o que for. Não coincidem muitas vezes, como é natural. É por isso que vemos estes namorados como jovens que conhecemos muito bem nos anos sessenta do século passado, como alguém que já fomos e que já não somos. Somos como que seus espectadores tal como outros possíveis leitores destas cartas o poderão ser. Com a diferença de já termos “visto este filme e conhecermos bem o seu enredo e respetivas personagens.”.
É com muito prazer, e algumas vezes admiração, que nos recordamos de sermos aqueles jovens cheios de idealismo humanista a lutar contra o que consideravam errado na política e na sociedade da época, decididos a participar na construção de um mundo melhor onde a opressão e a exploração do homem pelo homem não pudessem ter lugar. Utopias? Sim, mas “pelo sonho é que vamos” e pelas utopias também temos de lutar mesmo sabendo que nunca alcançaremos os nossos objectivos. Mas não faz mal.
Somos os “mesmos, mas outros” e cá vamos fazendo caminho, já um pouco cansados das jornadas, com algumas cicatrizes e uma ou outra ferida aberta no corpo e no espírito. Não se pode é ficar parado, o caminho faz-se caminhando, “se hace camino al andar” disse o grande poeta sevilhano Antonio Machado:
“ (…) /caminante, no hay camino, / se hace camino al andar / Al andar se hace camino, / y al volver la vista atrás / se ve la senda que nunca / se ha de volver a pisar / (…)”
(Antonio Machado, “Campos de Castilla” : excerto do poema “Caminante no hay camino” ) … … …
Caminante no hay Camino por Juan Manuel Serrat
Bissau, 5 de Outubro de 1965
Minha querida, precisamente hoje recebi a tua carta de 27/Setembro.
(…). Queria-te convencer de que preciso imenso das tuas cartas. (…) uma carta é um bálsamo refrescante e alentador. As horas mais felizes que se passam aqui são aquelas em que se tem a sorte de receber umas cartitas. Tenho a certeza que não imaginas o que é a hora da distribuição da correspondência. (…).
A simpatia pelo movimento revolucionário é quase geral mas é preciso, também para este movimento, conservar a zona calma pois Bissau não deixa de ser um dos principais centros de actividade conspirativa que abarca principalmente a aliciação do povo, a captação de informações e o próprio reabastecimento dos revoltosos. Visto isto, a vigilância militar é contínua, mesmo arrasante, pelo menos para evitar o pior já que limpar esta zona é impossível. (…).
(…). Às vezes vamos fazer uma incursão até às zonas perigosas (…). O sibilar das balas inimigas (…) conduz-nos a uma vivência tão grande como grande é o perigo que corremos. (…). São momentos difíceis de definir.
O desejo de sobrevivência sente-se tão fortemente que eu – EU, que tristeza! – chego a sentir prazer em [poder] matar. Para mim são os momentos mais tristes que tenho passado. Mas o que é certo, infelizmente, é que estou metido numa “alhada” e embora chegue a pensar que devia levar um tiro, [que] merecia levar um tiro (as ocasiões hão-de ser muitas com certeza), tenho de me safar.
A vida é tão preciosa! Aqui sente-se isto profundamente. E tu, meu amor, exiges a minha presença junto de ti. E a minha família também. É uma situação incrível esta, a minha. “Preso por ter cão e preso por não ter”.
Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e de aviso para os seus familiares e camaradas de luta!
Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco. (…). Perto dela ficou uma jovem de quinze a dezassete anos, viçosa, seminua, seios túrgidos, vigorosos, pintalgados de sangue – talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível.
“Perto dela ficou uma jovem …” que hoje recordo com esta bela imagem de paz.
Na foto: “Uma rapariga beafada entrega-se aos cuidados da cabeleireira nativa para realçar, ainda mais, a sua beleza.”
Foto extraída, com a devida vénia, do livro “GUINÉUS” de Alexandre Barbosa, 3ª edição, 1968. Edição, foto e legenda do autor.
Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida N. O meu batalhão está aqui há dois meses. Tem dois mortos, três feridos muito graves e vários soldados com ferimentos leves. Um dos mortos era um furriel meu amigo, o Jaime Feijão, das Caldas da Rainha. A série iniciou-se. Quem virá a seguir?
Não é bem a ideia da morte que me aflige mas o poder vir a morrer aqui por uma causa estúpida em defesa de princípios antinaturais e anti-sociais, em defesa daquilo que grandemente abomino. Só quem aqui anda é que pode ter uma ideia mais segura a respeito desta catástrofe nacional.
Com que direito se utilizam da minha vida para a guarda dos seus monopólios, para a sustentação das suas megalomanias? Acaso já fui alguma vez favorecido? E o povo é favorecido? E ainda por cima me vêm cá gritar, (…), que estamos em defesa de princípios sagrados - a defesa duma pátria católica e da própria religião!
Ah, então isto é que é sagrado? Isto que se faz aqui desta maneira é que é sagrado? Se isto é coisa sacra … então quero que vão todos à merda com todo o seu sacratismo! Pulhas!
Oh grande Maximo Gorki, como tinhas razão!: Sagrado é o descontentamento que o homem sente por si próprio e a sua aspiração de se tornar melhor; sagrado é o seu ódio pelas velharias de uma existência de que ele próprio é responsável; sagrado é o seu desejo de aniquilar na Terra a inveja, a ambição desmedida, os crimes, as doenças, as guerras e toda a inimizade entre os homens; sagrado é o seu trabalho pela conquista da liberdade e da progressão social.
Não me venham agora cá com loas ensaiadas e pré-dirigidas, seus abutres infectos!
Meu amor, penso que ficarás mais ou menos com uma ideia do que é o ambiente em que agora vivo e como, cá dentro, o teu M. reage. Exteriormente, só tenho de obedecer. Envergonho-me de ser carneiro mas, o que é certo, é que o sou. Aparentemente, faço parte do rebanho. Tive azar com os pastores. E o que é desesperante é que não há meio de nos unirmos e destruirmo-los à cornada. Peço que me desculpes pela crueza com que expus certas ideias. Talvez, falando assim, te fizesse sofrer um bocadinho. Mas, às vezes, a verdade dói.
(…) isto no aspecto de sobrevivência vai bem. Muito bem até. Não há motivos para preocupações. Corre-se mais perigo a atravessar uma avenida de Lisboa do que estar aqui na zona onde actualmente habito. Acredita-me, minha querida. Não te preocupes, sim? E … ESCREVE!
Até à próxima!
Com todo o meu amor, sou o teu M. Beijo-te.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 20 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11122: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (6): Amor sofrido
6 comentários:
Olá Manuel Joaquim.
Continuo a ler com uma certa atenção e a apreciar a tua sinceridade.
"...com que direito utilizam a minha vida para a guarda dos seus monopólios...".
Esse era o meu pensamento, na parte final da minha estadia em cenário de guerra, onde a palavra "SOBREVIVÊNCIA", era uma das mais importantes.
Um abraço, e por favor continua.
Tony Borie.
Falas ali no Feijão. Foi em Manhau,íamos a sair do aquartelamento e uma mina anti-pessoal acabou com ele. A minha Secção é que estava destinada a ir à frente, mas ELE ofereceu-se argumentando que sendo nós periquitos,ele iria à frente até ao objectivo. 50 metros depois deu-se a desgraça que nunca mais esqueci. Abraço Manuel Joaquim e pelo que agora vejo, estivémos juntos por ali em Mansabá.
De Veríssimo Ferreira
Obrigado Manuel, muito obrigado.
armando pires
Com que direito se utilizam da minha vida para a guarda dos seus monopólios, para a sustentação das suas megalomanias? Acaso já fui alguma vez favorecido? E o povo é favorecido? E ainda por cima me vêm cá gritar, (…), que estamos em defesa de princípios sagrados - a defesa duma pátria católica e da própria religião!
Ah, então isto é que é sagrado? Isto que se faz aqui desta maneira é que é sagrado? Se isto é coisa sacra … então quero que vão todos à merda com todo o seu sacratismo! Pulhas!
Manel é com esta pureza que se constroiem alternativas ou pelo o menos mantemos vivos a razão da nosso passado e presente.
É preciso continuar sonhando "pois é pelo o sonho que vamos"
Um grande abraço pelo o que escreves e muito obrigado por seres o amigo que és.
Caro Manuel Joaquim
Continuas assim a expor os teus sentimentos, a tua maneira de pensar.
Muitos de nós se podem rever no que relatas, alguns reprovarão. É a vida!
Continuo a acompanhar com agrado e nostalgia.
Abraço
Hélder S.
Caro Manel,
Quando há pouco me referiste esta carta, que não te deixei revelar, fiquei em pulgas, e acabo de a ler.
Fantástico, como pelos nossos verses anos, podemos aguentar com as pressões da guerra sem descarrilar.
Por acaso, hoje, ao acordar, também me aconteceu "aterrar" com numas ideias contraditórias como as que espelhas: desde a vontade de matar (matar o inimigo, sublimando quem nos fazia sofrer), até à clara identificação dos donos das terras e dos negócios, cujos interesses nos obrigavam a proteger.
Gostei Manel, e a citação de Gorki é tão pertinente, que parece ter o tempo pasmado.
Aquele abraço
JD
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