terça-feira, 5 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11197: Do Ninho D'Águia até África (56): Contava os dias e ia sobrevivendo (Tony Borié)




1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:





DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 56



Nos últimos dois meses de comissão, o Cifra era uma pessoa diferente, e algumas vezes complicativa. Mas o seu trabalho foi sempre feito rigorosamente e com honestidade.

O aquartelamento estava práticamente acabado, todo rodeado de arame farpado, com os postes em cimento, pintados de branco, um branco que não era branco, pois por baixo tinha todas as cores, mais as cores do sangue, da amargura e do medo que o Cifra sentiu em muitos momentos, mas que ajudou a pintar.


Uns meses antes de acabar a comissão, o Comandante, um dia, chama-o ao seu gabinete, manda-o sentar, e numa conversa bastante franca, entre outras coisas, diz-lhe:
- Ouve com atenção, fizeste um grande trabalho neste aquartelamento que muito contribuiu para o sucesso de muitas operações, vou dar-te um louvor e propor outros para uma possível promoção, para que continues no exército de Portugal.

Ao que o Cifra lhe respondeu, também com sinceridade:
- Meu comandante, meta os elogios onde quiser, deixe-me ir embora, e em paz, pois quando me vir livre desta, não me vou meter em outra. Sinceramente, não tenho vocação para a guerra.

O comandante deu-lhe um louvor, do qual está uma cópia em cima, dizendo entre outras coisas que “revelava excepcionais qualidades de trabalho, ajudava os seus companheiros, era muito educado, aprumado, metódico e inteligente, e depressa se tornou digno da confiança, consideração e amizade dos seus camaradas e superiores”, e onde também, entre outras coisas menciona que o seus amigos Tchena Imbalá, Ionna Indegame e Canjura Turé, tinham trocado de número. Mas não menciona que andava quase sempre com a garrafita de coca-cola nas mãos, que continha tudo, menos coca-cola, que fumava cigarros feitos à mão, que roubava vinho e pão ao cabo rancho, que era o bom do “Arroz com pão”, às vezes roubava álcool ao Pastilhas, fugia desenfiado para a capital da província, no carro dos doentes, andava quase sempre na tabanca, para onde levava comida, umas vezes restos, que pedia ao sargento da messe, ou ao cabo do rancho, outra vezes roubada, para as pessoas suas amigas, andava sujo e a barba crescida, durante os dias de folga das suas tarefas. Que ele e o seu grupo de amigos, bebiam, fumavam e faziam toda a espécie de poluição sonora, atormentando os restantes companheiros, e andavam sempre metidos em problemas no dormitório. Tinham má fama e qualquer coisa que de mal acontecesse, era o grupo do Cifra, tudo isto entre outras coisas, que o Cifra não vai dizer, porque senão ainda vão chamar o D. Afonso Henriques e questioná-lo porque é que andou à guerra com a mãe e fundou o Estado Portucalense!

Também não menciona que nos últimos meses de estadia em cenário de guerra, o seu estado normal, fora dos dias em que estava de serviço, pois nessa altura executava as suas tarefas com toda a precisão e honestidade, era de uma pessoa, quase sempre sobre influência, para não se lembrar do cenário de guerra em que estava metido, para esquecer toda a sua angústia, medo e desespero, que chorava compulsivamente vários minutos, sem poder controlar, quando se lembrava que ia abandonar as pessoas amigas da tabanca e o seu grupo de companheiros, que já considerava família, mas não podia esquecer a sua verdadeira família, que tinha deixado em Portugal.


Mas o comandante deu-lhe este louvor, porque foi seu amigo desde o dia em que se encontraram, quando o Cifra o cumprimentou, no tal acampamento junto ao rio, perto do cais de desembarque na capital da província, com as botas e a farda amarela cobertas de lama, e o Cifra, todo picado dos mosquitos e já com manchas vermelhas na pele do seu corpo. Este mesmo comandante auxiliou-o passado uns anos, já na vida civil, pois o governo de então não lhe dava a caderneta militar, nem o passaporte, e o Cifra queria sair de Portugal, na companhia da sua esposa e companheira.


Era discriminado no País que defendeu, por ser de família pobre, de agricultores honrados, mas na vila a que pertencia, a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, diziam que era uma família “do contra”, e por tal motivo não tinha acesso a emprego decente, a crédito para ter uma casa, criar uma família e dar educação aos seus filhos, como era sua intenção assim como da sua companheira.

Emigrou. Eram outros tempos.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Março de 2013 > Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)

1 comentário:

Anónimo disse...

Amigo Tony, que sorte estás quase no fim da comissão e cheio de saudades. No que se refere a não teres singrado cá e teres de sair do País, agora é isso que está a ser aconselhado pelos políticos cá do burgo. Isto é uma terra onde a miséria cada vez é pior e onde só os ricos podem viver. Um abraço e continua a escrever que tens-me aqui a acompanhar-te.
De Veríssimo Ferreira