DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 59
O Cifra tinha feito pelo menos quatro vezes a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, pois as dobradiças e fechadura, há muito que se tinham partido e desfeito com a ferrugem, pois naquela altura sempre havia falsas notícias de regresso, mas um dia, o comandante reúne todo o comando, que está na foto em baixo com o Cifra a dizer se será desta que regressa, que foi tirada pouco antes de deixarem o aquartelamento de Mansoa, como podem ver era um comando sem armas, mas que infelizmente directa ou indirectamente dava ordens para matar, junto do carro da psico-social, e emocionado, diz entre outras coisas:
- Obrigado a todos, e vamos regressar na próxima semana. O comando que nos vai substituir, já saiu de Portugal e regressaremos no mesmo barco.
Dois dias depois volta a reunir o comando e diz, ainda mais emocionado:
- Já não iremos para a semana que vem, pois o comando que vem a caminho foi destacado para outra zona, onde a guerra se está a desenvolver cada vez com mais intensidade, mas prometo-vos que iremos na próxima viagem que o navio “Uige” fizer, têm a minha palavra.
Todos ficaram desolados, menos o Curvas, alto e refilão, quando o Cifra lhe contou, que murmurou:
- Aqui, estou na guerra, mas tenho a vossa companhia, são a família que nunca tive, mas agora que nos vamos separar, é que dou o valor ao que é uma família. Lá, sem vocês, vou ser um desgraçado, sem amigos nem ninguém.
Mas continuando, agora essa mala estava feita, feita de vez.
Estava ao lado da cama e só usava o saco de lona do exército. Ai colocava o resto dos trapos, que era a sua farda do dia-a-dia, tinha uns calções com algumas nódoas, que não eram visíveis a olho nu, pois eram nódoas do medo que o Cifra sentiu algumas vezes, quando eram atacados durante a noite por granadas de morteiro e rajadas de metralhadora, uma camisa e um par de meias rotas na frente, assim como as botas melhores, no fundo do saco, tudo para o tão desejado dia. O resto por cima, era só trapos, e alguns sujos.
Neste momento, tal como os seus companheiros, só pensava em Portugal, na sua aldeia, no seu lugar, era melhor que não se metesse com ele, ou o provocasse, era melhor assim, pois de contrário, iria haver um desastre, pois a sua mente já estava cansada do aquartelamento, do arroz com peixe da bolanha, dos tiros, dos rebentamentos, dos estilhaços, dos abrigos cheios de lama e água suja, da farda camuflada e rota, das ordens, da obediência, onde não podia haver um simples não, em caso de uma provocação, não sabiam como ia responder, pois ainda vivia num cenário onde havia armas e granadas por tudo o que era lugar, que usadas, podiam matar pessoas, e o Cifra, às vezes pensava só para si: Estou com um fraco carácter, estou muito pior que o Curvas, alto e refilão.
No meio de todo este desespero, o tão esperado e desejado dia chegou finalmente e foi ele próprio quem decifrou a mensagem. Não ficou contente nem triste, uma onda de nostalgia percorreu-lhe todo o corpo, fechou os olhos, ergueu as mãos para cima e exclamou emocionado: OBRIGADO!
No dia seguinte, por volta das dez horas da manhã, a coluna militar estava pronta a seguir para a capital, houve alguns abraços de despedida, deu algumas moedas a alguns africanos, que foram seus companheiros, e um último olhar pelo que ajudou a construir, e que nunca lhe pareceu tão selvagem, tal qual um campo de concentração, como na hora da despedida. Os nossos companheiros combatentes têm mostrado fotografias do aquartelamento, mas na altura em que o Cifra o deixou, tinha só cinco pavilhões, ou seja três e mais dois, todos na direcção de Este/Oeste, todo cercado de arame farpado, só com uma porta pequena onde circulavam militares a pé, e uma abertura maior, sem qualquer protecção, virada para a vila, onde entravam ou saíam viaturas militares.
A coluna militar, foto em baixo, antes da ponte de Mansoa, percorreu os setenta quilómetros até à capital, largando o grupo do Cifra no cais. Aí permaneceu dois dias, tempo que durou o desembarque das tropas novas e o embarque das velhas, que era feito em lanchas pequenas do cais para o barco.
O comando a que o Cifra pertencia não chegava a trinta militares, sendo mais de dois terços os militares graduados. Enquanto esperavam pelo embarque, alguns dormiram na fortaleza de S. José da Amura, onde estava a polícia militar estacionada e onde o Governador da província se deslocou, com todo o seu aparato militar, para dar a todos umas insígnias com as cores da bandeira portuguesa, dizendo que representavam a medalha da campanha militar da Guiné, pois não havia medalhas para todos, o Cifra ainda hoje guarda essas insígnias como um “amuleto de boa sorte”.
Todos os haveres dos militares do seu comando estavam num grande monte, quase à entrada do cais de embarque e eram guardados por militares que faziam a sua guarda por turnos, pois iam regressando do interior outras unidades para embarcar, que faziam o mesmo, e deste modo, antes do embarque, quase todo o cais estava ocupado por diversos montes de malas e sacos, era um pandemónio, mas era um pandemónio feliz, pois avistava-se o barco ao longe, que os havia de levar de regresso a Portugal.
Chegou o grupo do Furriel Miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, onde vinha o Setúbal, o Curvas, alto e refilão, o Trinta e Seis, o Marafado, o Mister Hóstia e outros, e a partir daí, o pandemónio, passou a ser maior, estavam vestidos e rodeados de equipamento militar, mas já se sentiam pessoas civis, e andavam pela cidade, bebendo, passeando, e fazendo algumas compras, onde o Cifra comprou uma boina nova, e uns sapatos à sua medida, o Curvas, alto e refilão, caminhando sempre na frente, procurando ser o chefe, dizia:
- É tudo muito lindo, para vocês, mas eu vou perder a minha família, que são todos vocês!.
E num momento em que devia de haver alguma alegria, chorava, e fazia chorar o Cifra e os seus companheiros.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11261: Do Ninho D'Águia até África (58): A tripeça (Tony Borié)
1 comentário:
Passámos todos pelo mesmo, mas é bom recordar. Um abraço Tony, do
Veríssimo Ferreira
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