Queridos amigos,
O coronel Carlos Alexandre Morais era um indefetível admirador de Spínola, sabíamos que nutria esses sentimentos num livro que lhe dedicou e que confirma nestas curtas memórias onde, em todas as circunstâncias, o general é um espelho do humanismo, do irreprimível sentido do dever e da bravura.
Eduardo Freitas da Costa escreveu a zurzir Spínola, um ambicioso e um exibicionista (diz ele) que soube explorar a indecisão de Caetano, ambos, pela ambiguidade, foram coniventes isto quando a esmagadora maioria dos generais já não confiava na orientação de Caetano em relação às guerras africanas.
Pouco fica para a história deste libelo acusatório, mas ele existe e há que lhe prestar a devida atenção.
Um abraço do
Mário
Memórias do coronel Carlos Alexandre de Morais
Beja Santos
A seu tempo, já aqui se fez recensão ao livro “António de Spínola, o Homem”, por Carlos Alexandre de Morais, Editorial Estampa, 2007. Em edição de autor, temos agora “Pequenas Histórias da Guerra”, dadas ao público em 1998. O autor recorda a Índia, Angola e a Guiné, comissão em que desempenhou as funções de chefe interino da Repartição de Pessoal e Logística do Quartel-General do Comandante-Chefe. São três curtas memórias que aqui se registam.
Na primeira, conta que “Uma tarde o Comandante-Chefe convocou-me ao Palácio. Mal entrei no seu gabinete entregou-me uma carta que acabara de receber. Foi um dos documentos mais comoventes que chegaram até mim. Tratava-se da mãe de um alferes que ali morrera em combate, durante um ataque ao seu aquartelamento. A senhora permanecia inconsolável perante a morte do filho e decidira ir à Guiné para conhecer o local onde ele perdera a vida”.
O Comandante-Chefe determinou que ele tomasse em mãos o assunto, havia que marcar um helicóptero que os transportasse ao referido aquartelamento. No dia seguinte à sua chegada, logo embarcaram em direção ao fatídico local. O autor comenta: "não me recordo do nome do local. Lembro-me do seu aspeto visto do ar. Era uma área totalmente desarborizada em que a tropa, submetida a frequentes bombardeamentos, vivia em abrigos subterrâneos”.
O helicóptero sobrevoa o local, os militares saem para montar a segurança, abrem-se as portas, o comandante do aquartelamento encaminha-se em direção à aeronave. E assim se atinge o clímax da história, a mãe do falecido alferes lança-se a correr em direção do jovem alferes, que nada sabe do que se está a passar: “Naquele momento ele simbolizava o filho que perdera. Com os olhos rasos de lágrimas, abraçou-o convulsivamente. Todos ficámos estáticos com aquela comovente cena. Através da conversa que se seguiu, o alferes acabou por conhecer a razão de tão dramática visita. Não mais a terá esquecido”.
O segundo episódio regista a morte de três majores e um alferes do CAOP de Teixeira Pinto, em 20 de Abril de 1970, aqui largamente documentado. Sabe-se como foi um duro golpe para a resolução pacífica do “chão manjaco”. O que o coronel Carlos Alexandre de Morais não esqueceu é que logo a seguir à visita que Spínola fez ao local para constatar o bárbaro massacre, ele foi convocado para iniciar, de imediato, os processos de condecoração dos militares mortos, assim reconfirmou a presença de espírito de Spínola que ele considera ser o seu irreprimível sentido do dever a sobrepor-se a tudo.
O terceiro episódio prende-se com os briefings que diariamente se realizavam à noite na Fortaleza da Amura. Os mísseis terra-ar estavam a provocar um desnorteamento na Força Aérea, era já considerável o número de baixas, o impacto psicológico afetava tudo e todos. Nessa atmosfera, dá-se o cerco de Guidage. Spínola dirigiu-se ao coronel piloto-aviador Moura Pinto, ordenando-lhe que mandasse preparar para a manhã seguinte um helicóptero a fim de se ele se deslocar a Guidaje. O comandante da zona aérea argumentou com enorme perigo falando em 80 % de probabilidades de insucesso. O general manteve-se calado, mas no fim do briefing virou-se para o coronel Moura Pinto dizendo-lhe com a maior naturalidade: “… quanto ao helicóptero mantenho a hora da partida e trate lá de baixar essa percentagem de risco…”.
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Spínola, o anti-general, por Eduardo Freitas da Costa
O jornalista Eduardo Freitas da Costa tinha convicções ultranacionalistas, foi um temível polemista e distinguiu-se, no plano da investigação, por um trabalho em torno de Fernando Pessoa, trabalho esse injustamente esquecido. A seguir ao 25 de Abril, redigiu várias catilinárias, Marcello Caetano e Spínola foram os seus alvos principais. No seu ensaio sobre Spínola, o jornalista pretendia “a desmontagem do mito e a incontestável exautoração do desmistificado”. Como é óbvio, aqui só se regista o que tem a ver com Spínola e a Guiné. Ambicioso e oportunista, incoerente e paradoxal, impertinente e arrivista, foram alguns dos mimos com que Freitas da Costa tratou Spínola neste livro publicado pelas Edições do Templo, em 1979. A primeira crítica vai logo para a carta que o tenente-coronel Spínola escreveu a Salazar, em Abril de 1961, sugerindo-lhe a remodelação imperativa dentro do regime, libertando-o de gente desacreditada, o militar arvorou-se em político e pena foi, observa o autor, que Salazar não lhe tenha dado o devido corretivo. A questão será também grave quando Salazar o nomeou para governador da Guiné, em Maio de 1968, também aqui Spínola apareceu com ideias fantasistas que levavam, a terem sido concretizadas, à independência. Depois, o governador contou com o marcelismo como aliado, foi assim possível ter andado em negociações com o presidente Senghor com o objetivo de se chegar, imagine-se, a uma autodeterminação provável em dez anos. Para mostrar como havia conivência entre Spínola e Marcelo, Freitas da Costa invoca o testemunho do antigo Presidente do Conselho e que tinha a ver com o pedido de fundos para serem usados na absorção do PAIGC da região, no chão manjaco: “Para isso necessitava de umas dezenas de milhares de contos, que lhe mandei entregar por fundos secretos. Regressou com o dinheiro a Bissau e a promessa de em breve anunciar esse grande êxito. Mas tudo o que houve foi o assassínio dos três majores que iam ao encontro dos mensageiros dos que diziam querer entregar-se, assassínio que ocorreu numa emboscada habilmente preparada. Não se viu nada mais nem se soube do dinheiro entregue para o efeito”.
O autor trata Spínola como um ingénuo que pôde agir em total impunidade graças ao marcelismo, enleado em indecisão e que não soube fazer frente à tentação de Spínola no abismo da rendição perante o inimigo.
Freitas da Costa envolve permanentemente Caetano e Spínola devido à duplicidade e ambiguidade de Caetano que levou naturalmente Spínola a considerar que uma coisa era o que o Caetano dizia para português ver e outra o que no fundo pensava e praticava.
Spínola conseguiu dissimular o seu fracasso militar na Guiné, diz Freitas da Costa contundente. Rotulado de chefe carismático, era necessário contê-lo politicamente, e por isso fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas. É na circunstância à atmosfera propícia que garante a Spínola, com a anuência de Costa Gomes, em publicar “Portugal e o Futuro” e que encontrou pela frente o desesperado desejo de Marcello Caetano de fugir às responsabilidades de uma situação que desencadeara e se não se sentia já capaz de dominar – é nesses termos, diz o autor, que Marcello quando recebeu em audiência Spínola e Costa Gomes lhes aconselhou que se dirigissem ao Presidente da República pedindo-lhe “a entrega do poder às Forças Armadas”. A revolução estava em curso, inevitável.
O resto do livro é outra forma de libelo acusatório da inépcia de Spínola face ao surto revolucionário sob a égide da Comissão Coordenadora do MFA.
Mas isso já é outra história que não cabe nesta recensão.
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Nota do editor
Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12298: Notas de leitura (534): Escravos e Traficantes no Império Português, por Arlindo Manuel Caldeira (2) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Quando Marcelo Caetano viu chegar ao Brasil em Março de 1975, Spínola sem monóculo, à civil, e desanimado em entrevista aos jornalistas brasileiros, o que teria passado pela cabeça de M. Caetano?
De facto sem Salazar com a queda da cadeira, já estavamos entregues a nós próprios.
Eduardo Freitas da Costa imaginará hoje, 2013, que poderia haver alguém que fizesse melhor ou pior que Marcelo e Spínola?
Obrigado Beja Santos por mais ois autores.
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