sábado, 22 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12884: Bom ou mau tempo na bolanha (49): Tira-me o retrato (Tony Borié)

Quadragésimo nono episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.



Para quem visitou grandes cidades, grandes metrópoles, como Nova Iorque, São Francisco, Denver, Phoenix, São Louis, Los Angeles, Miami, Londres, Atalanta, Washington, Orlando, Las Vegas, Tóquio, Houston, Hamburgo, Paris, Rio de Janeiro, São Paulo, Roma, Milão, Bruxelas, Frankfurt, Amesterdão, Madrid, Porto, Lisboa, Chicago, Toronto ou até Montereal, sabe que em quase todas essas grandes cidades, as suas principais atracções se resumem ao Aeroporto, cheio de lojas a tentar as pessoas, ao seu qualquer grande museu, que sempre dizem que é único no mundo, a um parque, às vezes mal tratado, com alguns bancos, passadeiras em cimento, talvez um pequeno lago e algumas árvores que, ou são centenárias e vão resistindo ao “cimento armado”, ou são “rafeiras”, quase a morrer. Toda a gente lhe rouba uma folha, lhe encosta uma bicicleta, os animais abusam delas e, o “cimento armado”, a espreitá-las, esperando a oportunidade para avançar!.


Também têm um qualquer complexo de desportivo, representando o clube lá do sítio, que também dizem que é o melhor do mundo, o complexo da Universidade, que quando é um edifício antigo, até vale a pena ver, e todas, mesmo todas, têm a “Main Street”, que é uma rua, normalmente na parte baixa da cidade, fechada ao trânsito automóvel, com todas aquelas lojas que vendem “produtos de marca”, restaurantes “temáticos”, com mesas e cadeiras na passadeira, que servem uns pratos com muito pouca comida e muita cerveja, a um preço, que nós que somos “daquele tempo”, consideramos um roubo!

Se a cidade tem mar, rio ou um grande lago, normalmente, existe uma ou mais pontes, diferentes, umas mais bonitas e elegantes do que as outras, mas menos funcionais, uma zona a que chamam “marina”, ou “zona do porto”, onde talvez exista um aquário, onde tornam a dizer que tem umas “espécies muito raras”, talvez do outro mundo, onde se repete o cenário, lojas de recordações, onde se compra algo, que não mais se usa, restaurantes “temáticos”, com pouca comida, muita bebida, um preço louco, uma vista bonita, que talvez seja paga na bebida.


O resto é cimento, cimento e cimento, e as zonas periféricas, de onde talvez se possa avistar o tal cenário bonito da cidade, mas quando nos preparamos para avistar ao longe, se repararmos ao perto, vemos as casas em muito mau estado, as estradas congestionadas, as pessoas apressadas, às vezes empurrando-se, onde ninguém, ou quase ninguém se conhece. Posso estar a exagerar, mas no fundo é isto.

Ora companheiros, depois de falar de todo este “cimento armado”, cada vez tenho mais saudades da vila de Mansoa, sim de Mansoa, tal como muitos companheiros, pelo menos nos últimos postes têm falado da vila de Bafatá, Mansabá, Bissorã, não de Olossato, onde para mal daqueles martirizados militares que lá se encontravam, pouco mais havia do que as instalações do aquartelamento, pelo menos naquele tempo, mas em Mansoa, que já mais de uma vez eu disse que considerava a vila, o tal “Posto Avançado de Fronteira”, pois naquele tempo, era a partir daqui que começava a verdadeira guerra.


Lá também havia a “Main Street”, onde existiam alguns canteiros com flores, pintados de branco tal como o tronco das árvores, a loja do Libanês, onde no lugar de roupas de marca, se podia comprar desde o sabonete “Lifebuoy”, uma agulha e alguns botões ou uma camisa de tecido fino e branco, de manga curta, que tinham vindo de Macau e eram muito populares entre os militares, quando “trajavam à civil”, e creio que só havia duas medidas, (grande ou pequena), que nós emprestávamos uns aos outros, o edifício dos correios, mais um pouco abaixo o “Clube dos Balantas”, o mercado, a Igreja, e as bolanhas nos arrabaldes da vila, eram como se fossem “espelhos de água”, que as grandes cidades gastam fortunas para manter a água limpa, o rio, a ponte, também havia a “zona do porto”, claro, cheia de lama, onde as canoas do Iafane estavam ancoradas, a taberna da “Cabo-verdiana”, que servia, só às vezes, comida com muita fartura, a um preço que nem pagava a lavagem da louça, e a cerveja, tal como o pão, umas vezes roubados no quartel, outras vezes desviados, antes de chegar ao quartel, pelo menos a cerveja, quando vinha da capital.




Tal como em Nova Iorque as pessoas gostam de fotografar a Estátua da Liberdade, o Empire State Building, o Rádio City ou a ponte de Brooklyn, lá em Mansoa, os pontos mais fotografados eram a ponte sobre o rio e uma placa de sinalização, que se encontrava logo à entrada da vila, logo depois da ponte, que dizia: Encheia, Nhacra, Bissau, Porto Gole, Enchalé, Bambadinca e Bafatá, e com uma seta a indicar a direcção, não vá algum descuidado meter-se pela mata dentro, ou mesmo atravessar uma bolanha, pois naquela altura, as estradas eram pouco mais que carreiros.


Quase todos os militares ali estacionados tiravam uma fotografia junto da placa de sinalização, a quem o Curvas, alto e refilão, chamava o “urinol”, pois muitas vezes se viam cães vadios, magros e cheios de insectos no corpo, de perna alçada, junto ao poste da placa, onde às vezes o Curvas, alto e refilão e não só, vindos da sede do clube de futebol, depois de terem bebido, também se encostavam à placa e urinavam.

Às vezes, quando regressávam da sede do clube de futebol, já um pouco tontos, depois de beber cerveja, vinho, ou qualquer outro licor, o Setúbal, quase sempre dizia:
- Chegas à placa... e viras á esquerda, sempre em frente... sem olhar para ninguém, e entras no quartel antigo..., depois é só atravessar o arame farpado e estás dentro do aquartelamento...

Não havia dúvida que era um bom sinal de orientação.


A ponte, que tinha um arco de cada lado, (foto onde está o Cifra com um companheiro, que oxalá ainda esteja vivo e a veja), onde se faziam apostas, cujo prémio, às vezes era um maço de cigarros, em quem era capaz de atravessar esse arco, caminhando e batendo palmas, ao mesmo tempo.

Havia alguns que com certa coragem começavam, mas quando chegavam ao meio do arco e este começava a descer, voltavam para trás, muitas das vezes de joelhos. Havia só um militar, que era o Marafado, que atravessava todo o arco, fazendo o pino, ou seja, caminhando com as mãos, mas a troco de uma cerveja ou de um maço de cigarros “Três Vintes”. Ele dizia que tinha trabalhado num circo.

Havia a ponte velha, esta a preferida do Cifra e de outros militares que queriam alguma paz, e onde se passavam horas, sentado, fumando, pensando na aldeia atrás da montanha em Portugal, apreciando a área alagadiça, quando da maré cheia, com alguns pelicanos descendo o rio, mergulhando o pescoço, na procura de algum peixe.

Tony Borie, Março de 2014.
P.S. - Algumas destas fotografias foram cedidas pelo companheiro César Dias.
____________

Nota do editor:

Último poste da série de 15 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12842: Bom ou mau tempo na bolanha (48): Bolanhas em dois continentes (Tony Borié)

6 comentários:

Cesar Dias disse...

Olá Tony
Gostei do que li, mas reparei que te esqueceste da Libanesa, a Igueta, ou será que na altura ainda lá não estava? era mesmo em frente aos Balantas.
Um abraço, tudo de bom por essas terras.
César Dias

Tony Borie disse...

Olá César.
Obrigado pelas fotos e por teres gostado desta pequena descrição do foi a nossa terra por algum tempo.
Em frente aos Balantas, era terreno vazio, com uma casa de adobe e chapas de zinco no telhado, ao fundo, onde um senhor europeu, creio que da região do Minho, pois muitos lhe chamavam, "hó minhoto, ou vamos ao minhoto", casado com uma senhora libanesa, que negociava em madeira, ali abriu uma taberna, uns meses depois, talvez meio ano depois de eu chegar, com um cozinheiro, roubado á tal família "caboverdiana", que fazia de vez em quando comida barata, fazendo um largo em frente da casa, com cimento desviado das obras do aquartelamento, onde estou eu na foto, a acender o cigarro, onde nós dividíamos o tempo, entre essa taberna e os Balantas, esse largo em cimento, tinha algumas mesas e cadeiras, onde se jogava à "sueca" e não só, pelo menos no princípio do mês!.
Também me lembro que "o minhoto", começou a vender vinho verde ao copo, e que custava 7 pesos por copo, que nós bebíamos e no fim lhe chamáva-mos "ladrão", claro, tudo isto no princípio do mês!.
É disto que me lembro.
Um abraço,
Tony Borie.

Francisco Baptista disse...

Amigo e camarada:

Gosto muito de ler o que escreves, pela teu poder descritivo e pelo tom calmo que poes nessas descricöes e por tantas memórias que conservas dos tempos antigos
Gostei de ver também as fotos de Mansoa terra onde fui e por onde passei algumas vezes, já que estive 6 meses em Mansabá,na Cart.2732 a partir de Setembro de 1971.

Um grande abraco

Francisco Baptista

Jose Pedro Neves disse...

Amigos e Camaradas da Guiné, César Dias e Tony Borie, Também estive na zona de Mansoa, quando a minha C.Cac. 4745, Águias de Binta, esteve no destacamento de Polibaque, junto ao cruzamento para Porto Gole, a fazer a proteção aos trabalhos da abertura da estrada Jugudul-Babadinca. O "Minhoto", casado com a Libanesa, no meu tempo,73/74, era o Mário, com quem o pessoal militar mantinha uma óptima relação. Um Abraço aos dois Camaradas ex-Combatentes.

Luís Graça disse...

Toni, é uma evocação ternurenta da tua velha mas bela Mansoa, que te ficou no coração...

E lá estão aos teus velhos e bons camaradas, o Cifra, o Curvas, o Marado... Já não mnorrerão contigo porque lhes deste vida, aqui no nosso blogue... Estão ao alcance de um clique, onde quer que tu ou mais camaradas da diáspora estejam, de Miami a Sydney, de Kiruna a Luanda...

Subscrevo a primeira parte do teu texto sobre as cidades da globalização: as nossas cidades globais começam a ficar todas iguais, monótonas, asfixiantes, feitas pelos mesmos arquitetos, engenheiros, promotores imobiliários e sobretudos os mesmos "shareholders" do capitalismo global (os tais 1%, os mais ricos deste mundo que são donos deste planeta e de tudo o que nele mexe...)... Como são iguais todas as pessoas que nelas vivem (?), e que tendem a comportar-se da mesma maneira, estereotipada, comendo e bebendo os mesmos produtos, consumindo a mesma música, a mesma televisão, o mesmo cinema...

Eu que eu te queria mesmo dizer é que é um sinal de boa saúde mental, da tua parte, teres (re)encontrado beleza e poesia na tua Mansoa City...

Um alfabravo. Luis

Hélder Valério disse...

Pois é, Tony

Este teu texto, e principalmente as reflexões iniciais, com as fotos complementares, vêm ao encontro da 'velha' discussão sobre o que é que 'mede' o progresso.

O número de "arranha-céus"? O número de andares dos prédios? A altura do maior (mais alto) deles?
Há quem contraponho que se devia 'medir' o progresso pelo nível de satisfação das pessoas, pelo bem-estar social...

Enfim, alguma coisa será, mas lá que às vezes (muitas vezes) a vidas simples correspondem níveis de satisfação mais gratificantes isso parece ser inegável. Mas é 'perigoso' pois pode levar os cínicos a dizer que 'por essa perspectiva os pobrezinhos são os mais felizes'....

Mas gostei, novamente gostei desse teu jeito de estares constantemente a fazer a ligação entre a vida que agora levas e as tuas vivências na Guiné, as quais, admito, te fazem agora ver a relativização das coisas. Pelo menos as fotos assim o parecem mostrar.

Abraço
Hélder S.