sábado, 22 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12883: Blogpoesia (385): O Dia Mundial da Poesia, 21 de Março de 2014, na nossa Tabanca Grande (XVI): Écloga em tempo de guerra, de David Mourão Ferreira, com anotações de Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):

Caro amigo e camarada Luís Graça

Não sendo poeta mas gostando de poesia, não posso deixar de responder positivamente ao desafio que nos lanças.

Assim, valendo-me de um dos livros de poesia, dos que me acompanharam durante a minha comissão na Guiné e nos quais procurava afogar as minhas mágoas, escolhi um poema para partilhar com a Tertúlia, se assim o entenderes, que lia com frequência, como desabafo, protesto e consolo, chegando ao ponto de modificar algumas palavras para melhor se enquadrarem com a flora local e melhor o sentir.


O livro é: "A Arte de Amar, 1948/1962",  de David Mourão Ferreira. Lisboa Editoral Verbo 1973, 271 pp. O poema é: Écloga em Tempo de Guerra , que ele dedicou a Jos]e Regio

As palavras entre parenteses [, retos, em itálico], junto a outras similares dos versos, eram as que trocava, não alteravam o sentido nem a rima do poema e assentavam melhor na minha situação.

Em anexo envio o poema, com essas adulterações. Faz dele o que julgares melhor.

Um abraço

JLFernandes


2.  ÉCLOGA EM TEMPO DE GUERRA,

de David Mourão Ferrerira

A José Régio


Só grilos desafinados
povoam a solidão.
Pastor de almas de soldados,
sigo nos campos lavrados,
sem ouvir o coração.
Se o ouvisse, que ouviria?
Alegria?
Certo, não.

Sem palavras e sem gestos,
pisando estevas e trigo [capim],
nestes caminhos funestos
alimento-me dos restos
do passado que persigo [há em mim].
(E nem sequer receamos,
entre os ramos,
o inimigo.)

Sob céus de Primavera,
por entre olivais [palmeirais] de prata,
seguimos... e quem nos dera
que a nossa febre esquecera
quem de nós nos arrebata!
Não são ’stranhos que tememos.
Bem sabemos
quem nos mata.

Que destino tão errado,
o que haviam de me impor!
Pastor a soldo forçado
de um gado que não é gado,
nem precisa de pastor!
E vamos!, vidas marcadas
p’las espadas
do terror.

“Maldito seja quem faz
profissão da nossa morte!
Quem ordena, lá de trás,
em segurança, na paz
que injustamente o conforte!”
(Mudos embora, este grito
fica dito
desta sorte.)

E vamos, como ciganos,
mas sem nenhuma aventura.
Seguem, atrás, os garranos,
pacientes, quase humanos,
a moer a terra dura.
– E segredam-nos os ventos
que estes tempos
são loucura.

À sombra de um castanheiro [mangueiro],
eis que paramos, cansados,
para instalar um morteiro
que faça fogo certeiro
sobre outros, sobre outros gados
– inocentes como o nosso,
mas que um fosso
fez danados!

Nenhuma ordem nos chega.
Ainda bem! Inda bem!
– E, cegos, na noite cega,
cada corpo é uma entrega
à calma que lhe convém.
Até o vento, mais brando,
vem sonhando
com alguém...

... E sonha então cada qual
com as pastoras distantes...
Uma zagala, um zagal...
No recanto de um pinhal [palmeiral],
promessas exuberantes...
(Anda sempre a mesma história
na memória
dos amantes!)

Se o dia há-de ser de luta,
que a noite não tenha fim!
Ao menos, quem quer desfruta
a placidez impoluta
de um primitivo jardim.
E se mais nos não concedem,
se é esse o preço que pedem,
seja assim!

David Mourão Ferreira / [Adapt. de Joaquim Luís Fernandes]

3. Comentário de L.G.:

Joaquim, a fechar esta longa maratona em que quisemos, à nossa maneira, celebrar o Dia Mundial da Poesia (*), que foi ontem, 21, deixa-me discorrer sobre este estranho fenómeno: dizem que Portugal é um país de poetas, mas não de leitores de poesia... É provável que se publiquem mais do que um livro de poesia por dia, sendo muitas as edições de autor. Estamos a falar de 3% de todos os títulos em língua portuguesa que, em 2012, atingido um total de 9473 (dos quais 73% são originais e os restantes 27% são traduções (Fonte: Pordata - Base de Dados Portugal Contemporâneo). 

Estamos a falar de monografias, ficam de fora desta estatística as publicações periódicas...Mais de 5% do total de originais (N=6892) devem ser livros de poesia...

No entanto, quando falamos de poetas e de poesia, é preciso mostrar alguma cautela com a palavras (i) "poeta" é o que escreve poesia, mas também o "idealista", o "sonhador", o que "é dado a devaneios",  o "o que anda sempre nas núvens", o até o "pateta"... A palavra tem, às vezes, em certas bocas, conotações pejorativas.. Por exemplo, diz o povo: "De poeta, médico  e louco, todos nós  temos um pouco"...E da poesia diz que é "a música da alma",,,

Quem, de nós, na adolescência e na juventude, não escreveu pelo menos uma quadra, uns versos, uns poemas com ou sem rima, à sua amada ? E na Guiné, nas horas de solidão e lassidão, nos diários, nas cartas e nos aerogramas, escreveram-se versos...  Não importa a qualidade literária, são documentos de uma época e de uma geração... Muitos ter-se-ão perdido... Outros foram destruídos.. Outros ainda estarão esquecidos algures, numa gaveta, mala ou baú...

Joaquim, fechas com chave de ouro esta nossa iniciativa, que mobilizou cerca de duas dezenas de autores, incluindo 3 amigas nossas, a Regina Gouveia, a Joana Graça e a Filiomena Sampaio. E, contrariamente, à ideia feita de que a poesia não se lê, o nosso blogue teve, ontem,  6ª sexta-feira, o melhor desempenho da semana, com um nº de visitas superior a 2600. Bem hajam a todos e todas!

Já agora, que fostes desencantar  (e adaptar)  o conhecido poema de David Mourão Ferreira (1927-1996), "Écogla em tempo de guerra", deixa-me, Joaquim, dar aos nossos leitores só uma pequena dica, para melhor interpretação dos versos do  poeta...

Este poema tornou-se conhecido quando, em 1971, foi musicado, em França, por Luís Cília, Mas o David Mourão Ferreira tê-lo-á escrito muito antes, na altura em que cumpria o serviço militar, e por sinal em Portalegre, onde foi reencontrar (e fez amizade  com) o grande poeta e esritor José Régio (1901-1969), natural de Vila de Conde. (Régio viveu praticamente toda a sua vida naquela cidade do Alto Alentejo, onde foi professor de liceu, e onde tem um museu, que é visita obrigatória, a Casa-Museu José Régio).

Este poema deve datar de 1952 quando o poeta foi aspirante, miliciano, em Portalegre, no BCA nº 1, presumo, e onde deve ter dado instrução a recrutas:

"(...) Pastor de almas de soldados, / sigo nos campos lavrados, / sem ouvir o coração. / Se o ouvisse, que ouviria? / Alegria? Certo, não.( (...) Que destino tão errado,/ o que haviam de me impor! Pastor a soldo forçado / de um gado que não é gado, / nem precisa de pastor! / E vamos!, vidas marcadas /p’las espadas do terror." (...) "E vamos, como ciganos,mas sem nenhuma aventura. / Seguem, atrás, os garranos, /pacientes, quase humanos,/ a moer a terra dura." (...).

Essses tempos já longínquos de 1952 foram evocados por David Mourão Ferreira no número especial de "A Cidade – Revista Cultural de Portalegre" (4/5, nova série, 1990), "integralmente dedicado aos 20 anos da morte do poeta José Régio e do pintor D’Assumpção, duas personalidades marcantes das letras e das artes ligadas à capital do Norte Alentejano" (, cito a págína Largo dos Correios, de António Martinó de Azevedo Coutinho, uma personalidade marcante da vida cultural e social de Portalegre, onde nasceu em 1935).

 (...) "Disso mesmo [da complexa personalidade de José Régio]  tive sobejas provas ao longo dos cinco meses - de Março a Agosto de 1952 - em que diariamente privei com ele aqui em Portalegre, para onde me tinham arrastado, como aspirante-miliciano [, de cavalaria, a deduzir pelas botas do futuro escritor, professor universitário e figura mediática, com o seu inseparável cachimbo, na foto à esquerda, cortesia do sítio Largos Correios...], as irrevogáveis obrigações do meu serviço militar. 

"Daí data efectivamente o auge do nosso convívio. Já por mais de uma vez aludi a essa experiência e, muito em particular, numa longa entrevista que me foi feita, em Abril de 1982, pela excelente revista A Cidade, que nesta cidade se publica. Não desejo pois repetir-me. Mas não posso deixar de rapidamente reevocar aqui o que tais cinco meses para mim significaram na companhia quotidiana de José Régio e do pequeno mas extraordinário grupo de seguros e provados amigos com que nessa altura ele aqui contava: Feliciano Falcão, Arsénio da Ressureição, Lauro Corado, Firmino Crespo, João Tavares, Adelino Santos. Rara a tarde ou a noite em que pelo menos com alguns deles nos não reuníssemos no Café Central. Mais raro ainda o fim de tarde que eu não passasse com Régio no seu pequeno gabinete de trabalho desta ‘casa velha’ -’velha, grande, tosca e bela’- em que decorreram muito para cima de trinta anos da sua existência.

"E dávamos grandes passeios aos domingos… Ora a pé, pelo interior da cidade e pelos seus mais próximos arredores, ora no automóvel de Senhor Adelino Santos, que desempenhava, na ocasião, as funções de secretário-geral do Governo Civil. E eram então improvisadas excursões até Marvão, Castelo de Vide, os Olhos de Água…” [cit por Largo dos Correios > 17 de março de 2013 > David e José II].

____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de março de  2014 >ãManuel Sampaio / Artur Conceição / Rui Vieira Coelho

5 comentários:

Luís Graça disse...

Tenho uma dúvida: não sei se antes do início da guerra colonial, em 1961, todos os oficiais do exército, do QP e milicianos, usavam botas de cano alto, como aquelas que usava, em 1952, em Portalegre, o poeta David Mourão Ferreira (, veja-se a foto)... E isto, independentemente da arma a que pertenciam...

Deduzi que o David Mourão fosse de cavalaria, pelas botas, mas se calhar estou errado... Além do mais, Portalegre não tinha, nessa época, nenhuma unidade de cavalaria.... Havia lá, desde 1926 (segundo o Zé Martins) o BCAÇ nº 1, extinto em 1977, se não erro...

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2014/01/guine-6374-p12570-fabricas-de-soldados.html


Zé, explica lá isso à gente... O nosso poeta (que escreveu algumas das mais belas letras de fado, cantadas pela Amália) era de cavalaria ou de infantaria ?...

Dois anos e tal depois, em 1954/55, passou também por Portalegre, em cumprimenmto do serviço militar, outro grande futuro intelectual português, crítico, ensaísta e professor universitário, que também irá privar com José Régio e tornar-se inclusive um especialista da sua obra... Nasceu em Lourenço Marques (hoje , Maputo) em 1930...

Sim, é o mesmo Eugénio Lisboa que, aos 82 anos, em 2012, viria a escrever uma notável e desassombrada carta aberta ao primeiro ministro, que circulou na altura pela blogosfera, e que continua a ser atual, e merecer ser lida e relida...

Veja-se aqui:

http://pedroroloduarte.blogs.sapo.pt/283162.html

rogferreirafurrielguine disse...

Vejo o nome de Arsenio da Ressureiçao nos amigos de Regio que Mourao Ferreira tera conhecido, penso seja o pintor mais tarde ter se -á mudado para Santarém onde tera pintado a caneta de tinta da china os becos desta minha cidade, que eu tenho em postais se tiver a hipotese de carregar em scannner terei gosto de os publicar, quando era estudante do Liceu em 1958 0u 1959 lembro de o ver pintar um recanto do Tejo que se via junto a igreja de Santa Clara. sei que seria famikliar do Historiador Dr Jorge Custodio

Luís Graça disse...

É esse mesmo, aqui tens uma detalhada nota biográfica:


http://largodoscorreios.wordpress.com/2013/10/22/arsenio-da-ressurreicao-pintor-de-portalegre/

Luís Graça disse...

No meu tempo de adolescência, e de estudante, o "Cântico negro", célebre poema do primeiro livro de poesia do José Régio, "Poemas de Deus e do Diabo" (1925), fazia parte obrigatória dos "recitais de poesia" ou "sessões de declamação de poesia" que estavam na moda, com o aparecimento da televisão e com os programas de João Villaret...

É um dos poemas mais "teatrais" da nossa poesia contemporânea, com um final dramático:

(...) Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


Veja-se aqui um registo áudio do Villaret:

http://www.youtube.com/watch?v=qKyWRJZnu2o

E já agora a letra completa em:

http://www.releituras.com/jregio_cantico.asp


Hilario Peixeiro disse...

Caro Luís
Julgo, e é quase certo. que na época em que David M Ferreira fez o serviço militar os oficiais, pelo menos a partir de comandante de companhia (e na província nessa altura era frequente um Asp ou Alf ter essas funções) tinham cavalo distribuido mesmo sendo de Infantaria,daí ele aparecer de botas altas.
Um abraço
HP