sexta-feira, 21 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12864: Notas de leitura (574): "Pai, tiveste medo?", por Catarina Gomes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2014:

Queridos amigos,
É mesmo uma abordagem original, os filhos a questionar a guerra dos pais, a descodificar doenças ou silêncios pesados, à busca de identidade, a aprender que há dores irrepresentáveis, como ser filho de prisioneiro de guerra ou receber um dia um livro que o pai propositadamente elaborou sobre aquela comissão militar em que perdeu uma perna.
A Guiné tem aqui uma fatia de leão: o soldado Vítor Capítulo, resgatado na operação Mar Verde e que foi acolhido triunfalmente em Sesimbra, parecia o dia da procissão do Senhor Jesus das Chagas; o drama do pai de Alexandra Penteado que veio com stresse pós-traumático da Guiné e levou a vida familiar aos quintos dos infernos; a ternura de “I nha fidju”, Maria Júlia da Costa Deitado, filha ilegítima do Cabo FZE 9375 narra a sua história tocante, ninguém ficará insensível à majestade deste depoimento; Mariama Sambú filha de um piloto aviador da Guiné-Bissau que nasceu no mato, em 1973; Tiago Teixeira cresceu a ouvir falar de tabancas, de rebentamentos e do amor do pai a uma povoação, Mampatá, outra história edificante; um filho de João Bakar Jaló mantém um amor entranhado a alguém que ele trata como herói de Portugal.
São pedaços das memórias filiais que abrem a porta a um ângulo inédito de um tremendo conflito onde releva o amor filial, acima de tudo.
Não percam.

Um abraço do
Mário


Pai, tiveste medo?

Beja Santos

“Pai, tiveste medo?”, por Catarina Gomes, Matéria-Prima Edições, 2014, é uma abordagem original da história da guerra colonial, até hoje não enveredada: o registo de depoimentos de quem a descobriu através da memória dos pais. São relatos em que só o afetivo é enaltecido, não há território nem espaço de manobra para censuras, vitupérios ou ajustes de contas, nem remorsos. Para os filhos desses combatentes, parece que o tempo sarou feridas, limpou malquerenças. Em sequência, a autora, que soube timbrar todos estes relatos dentro de uma inequívoca atmosfera jornalística, põe a desfilar um prisioneiro de guerra que será resgatado em Conacri e recebido triunfalmente em Sesimbra; um fuzileiro sofredor de stresse pós-traumático e que pôs a família a viver num inferno; Marisa que descobre na mala do pai o imaginário de um militar que queria vencer a solidão e que escrevia febrilmente para várias madrinhas de guerra; Maria Júlia Deitado, filha ilegítima do cabo FZE 9375 demorou décadas a descobrir a sua mãe guineense, é talvez o relato mais empolgante deste encadeado de narrativas em que a guerra colonial é vista ao caleidoscópio pelos filhos dos combatentes de então...

Mas há mais, o leitor irá descobrir a importância de uma cabeça de veado embalsamada, Mariama tem a fotografia do seu pai tirada na União Soviética, Serifo Sambú era piloto aviador, Mariama vive em Portugal e gosta de saber que o seu pai tem um nome respeitado na Guiné; o filho de Hugo Ventura, piloto que desapareceu no ar, em Moçambique, sem deixar rasto, guarda o dossiê desse pai que perdeu quando tinha dois anos; um maqueiro à força na Guiné devotou-se a ajudar a população, em Mampatá, o filho, médico, fascinou-se com as histórias que o pai lhe contou na infância e juventude, pai e filho, cada um pelo seu próprio caminho, mantêm-se ligados à Guiné… e há o filho do mítico capitão João Bakar Jaló, Comandante da primeira Companhia de Comandos Africana; e há um militar que escreveu um livro sobre a sua experiência dolorosa, a guerra para ele acabou no dia em que perdeu uma perna; e há também uma paraquedista e há Pedro Luqueia de Santarém que foi apanhado em menino durante uma operação em Angola e que continua a ir aos almoços convívios do Esquadrão de Cavalaria 122, foram estes militares que o trouxeram…

Não é um livro sobre a história da guerra colonial, quem depôs para este livro nem conhece os outros. A jornalista foi à procura de histórias em que os filhos verrumaram túneis de escuridão, desafiaram silêncios, aprenderam a amar os pais graças a uma experiência que acabou por os deslumbrar.

Teresa Capítulo é filha do soldado Capítulo que foi prisioneiro do PAIGC em Conacri, conheceu 33 meses de cativeiro, foi liberto na operação Mar Verde. Resgatado, não pôde revelar a ninguém de que modo tinha sido resgatado e voltara a Portugal. “A 4 de dezembro de 1970, Sesimbra encheu-se de um mar de gente para o receber, tanto que mais parecia o dia procissão do Senhor Jesus das Chagas, padroeiro dos pescadores, assim lhe descreveram o acontecimento para que Teresa percebesse o tamanho da multidão que o esperava”. Pai e filha conversaram muito, há um álbum com as imagens desse tempo de guerra, antes do aprisionamento. E há os relatos da prisão. O pai prestou um depoimento, gravou-o em vídeo para a sua junta de freguesia. Ainda hoje em Sesimbra continua a ser conhecida como “a filha daquele rapaz que esteve lá fora, a filha daquele que esteve preso”.

Alexandra Penteado tem muitas memórias de um pai violento, ameaçador, só muito tarde descobriu que o pai era um veterano de guerra doente. Era o pai tinha sido um jovem cordial, brincalhão, foi para a Guiné como Fuzileiro Especial, depois tornou-se um farrapo. Quando o pai faleceu vítima de cancro do pulmão, em 2002, Alexandra juntou aqueles papéis e aquelas fotos, manteve-se indiferente aos ritos dos Fuzileiros que vieram ao funeral. Procurou decifrar o pai, já o desculpou. Nos dias em que o pai acordava a meio da noite a gritar “saiam senão mato-vos”, Alexandra vê a tentativa de proteger a família dele mesmo, é como se ainda tivesse consciência que não os devia magoar, mas talvez não passe de uma mera explicação de alguém que passou a vida a sofrer os danos colaterais de quem não assumia que estava doente…

“Pai, tiveste medo?”, é pungente, inspirador, no conteúdo e na forma. É uma coletânea de explorações que convidam a sondar o passado, a tentar entender por que razão se procuravam madrinhas de guerra porque se foi separado da mãe, como papéis, fotografais, histórias, memórias, tudo em confluência, ou quase, leva a que vejamos os nossos pais num outro tempo, hoje inapreensível. Como diz a autora, a guerra contada é muito diferente da que foi vivida. E é original porque rasga uma nova perspetiva sobre um conflito de antigos combatentes consigo próprios e que possui o condão de iluminar a ligação entre pais e filhos, durante e após a guerra colonial.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12848: Notas de leitura (573): "Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa", por Pires Laranjeira e "Jornal Português" e a notícia do assassinato de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

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