terça-feira, 18 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12851: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (5): O porco que não consegui comer

1. Quinto episódio da série "Acordar memórias" do nosso camarada Joaquim Luís Fernandes (ex-Alf Mil da CCAÇ 3461/BCAÇ 3863, Teixeira Pinto, 1973 e Depósito de Adidos, Brá, 1974):


ACORDAR MEMÓRIAS

5 - O SEGREDO DE...

O PORCO QUE NÃO CONSEGUI COMER

Nesse mês de Junho, iria começar uma nova função, que acumularia com as já habituais; passaria a desempenhar a função de gerente da messe de oficiais. Na necessidade de, mais uma vez, me afirmar responsável e competente, quase como a ter que ganhar o direito a existir, eu que me sentia de fora, pouco "militar", deslocado na classe privilegiada, assumi mais esse encargo como um desafio. Iria empenhar-me para melhorar a qualidade das refeições servidas na messe, dentro dos estabelecidos 30 escudos por pessoa e por dia. Ganharia melhor alimentação e evitaria as duras críticas e acusações que tinha ouvido, dirigidas ao camarada que me antecedera nessas funções.

Uma profícua papaeira do horto do batalhão. Ou uma prova de que com querer, algum trabalho, organização e técnica, a Guiné seria uma terra produtiva e próspera.

Depois de me inteirar do serviço a desempenhar, reuni com o Cabo Vagomestre transmitindo-lhe os meus propósitos visando ganhá-lo para a minha causa. Diariamente, procurava acompanhar as contas dos gastos e as ementas planeadas, incentivando-o a que se melhorasse a confeção das refeições e se variasse, quanto possível. Mas tinha uma circunstância a contrariar os meus intentos: a horta do batalhão, que nos meses anteriores tinha sido generosa e farta em verduras, alguns legumes e leguminosas, estava em final de ciclo produtivo; estava quase tudo seco e já pouco se poderia colher.

Ficaríamos dependentes dos reabastecimentos vindos de Bissau, em coluna, uma vez por semana, com poucos frescos. Era o recurso ao arroz, às massas, aos enlatados e ao peixe da bolanha. Nem com muita imaginação e boa vontade se conseguiriam ementas que agradassem. Por repetitivas, tornar-se-iam enjoativas.

O Mamadú, (?) auxiliar do soldado hortelão. Diariamente prestava serviço no quartel, ou no horto ou no corte da lenha para a cozinha e para o forno do pão. Sempre descalço e de cachimbo na boca.

Perante a marcação que fazia ao cabo vagomestre para que não se caísse na rotina e desmazelo de ementas contestadas, coloquei-me a jeito para que ele me lançasse o repto: “Se o meu alferes quer que se melhore a alimentação, só temos uma solução: ir às tabancas comprar víveres.” E eu aceitei o repto. Segundo o vagomestre (e disso deveria ele saber), as populações das tabancas tinham a obrigação, imposta pela administração civil, de fornecer alguns animais ao batalhão, para a alimentação da tropa.

Depois de me informar melhor, e tomar as providências necessárias, lá fomos, acompanhados de um Cipaio, que serviria de intérprete nas “negociações” e representava a Administração Civil.

Acompanhavam-me, para além do vagomestre, que faria de tesoureiro, alguns soldados do meu grupo e pessoal adstrito à cozinha da messe, em duas viaturas, creio que uma unimog e uma mercedes.

Chegados à tabanca escolhida, não sei se Beniche, se Bajope, se Chulame, que eram ladeadas de férteis bolanhas, iniciou-se o “jogo da apanhada” às galinhas, aos cabritos e aos porcos, que por ali andavam em liberdade, em volta das moranças e das cercas. E o “negócio” lá se ia fazendo, com a intermediação do cipaio e o pagamento feito em espécime (sem fatura e sem recibo).

As férteis bolanhas ao redor das tabancas da zona de Teixeira Pinto. Um grupo de homens (poucos) a preparar a terra para as sementeiras/plantações, virando a leivas com os seus arados. Alguns são ainda meninos outros já velhos. Os jovens adultos faziam a guerra, dos dois lados da contenda. E eu pensava: como seriam produtivos estes campos, se fossem introduzidas outras técnicas e mecanização. Mas o esforço ia todo para a guerra.

As mulheres manjacas, mulheres de trabalho, nos viveiros do arroz, procedem à repicagem para o transplante.

Aspeto exterior das moranças das muitas tabancas dos arredores de Teixeira Pinto; onde pessoas e animais viviam em harmonia e liberdade. Só a guerra e os militares levavam o desassossego.

Já com uma boa “caçada” consolidada, surge à vista um esmerado e bem nutrido leitão. A rapaziada entusiasmada com o “jogo,” enceta uma perseguição ao bicho, que lá se ia esquivando, ensarilhando entre as cercas e as moranças. Mas perante a determinação dos bravos pegadores, não foi longe. Amarrado e transportado para a viatura, grunhia e guinchava que nem um desalmado.

Surge então um ancião, que tomei como sendo o dono do animal, com modos pouco amistosos. Tentou-se a conversação e a negociação, mas o homem estava irredutível. Não percebi uma palavra do que disse, mas entendi que ele não queria vender o porco. Perante os factos, disse ao cabo vagomestre que seria melhor libertar o bicho, mas ele replicou que não o devíamos fazer, que o homem tinha a obrigação de vender o porco e que se não quisesse receber ali o dinheiro, que o fosse levantar à Administração, que era esse o procedimento habitual.

Não me agradava aquela situação, mas perante esta argumentação e as circunstâncias (novamente a minha condição de “pira”, inseguro e pouco firme, a vir ao de cima) cedi e viemos embora com o porco, sem o pagarmos, deixando para trás o ancião furioso, que com o seu olhar agressivo parecia querer fuzilar-nos. Se não era já afeto ao IN, após esse dia passou a sê-lo, com certeza.

Durante a viagem de regresso, autocensurava-me pelo que se tinha passado; deveria ter sido mais firme e não ter consentido em trazer o porco sem o pagar, mas também não tive iniciativa de voltar atrás e devolvê-lo ao dono. Achava que isso me deixaria diminuído na minha autoridade para com o vagomestre, para continuar a pedir-lhe todo o empenho para melhorar o serviço na messe. Mas pensava também no risco que corria, se o ancião, que eu desconhecia quem era, fosse fazer queixa ao Régulo e se este fizesse chegar a queixa até Bissau, ao Com-Chefe, talvez não me livrasse de uma “porrada”; e isso era a última coisa que eu queria; lá se iriam os meus 35 dias de licença, tão desejados. Se isso acontecesse, não sei como me iria aguentar.

Quando passados alguns dias o leitão foi servido na messe, não consegui comer dele. Ou porque estava mal cozinhado, pareceu-me só gordura, ou por remorso. E lá fui, mais uma vez, compensar-me no bar com uma lata de fruta enlatada e uma garrafa de leite achocolatado. Eu tratava-me e cuidava-me bem, para me manter com saúde e em forma.

Durante estes 40 anos esqueci muita coisa, quase tudo, nomes de pessoas e de locais, episódios, etc. Até o número da companhia e do batalhão eu tinha esquecido, mas este acontecimento nunca o esqueci e considero-o uma nódoa no meu comportamento, que desejei impoluto e pautado pelos elevados valores éticos, que tinha levado na mente e no coração, que procurei preservar, cultivar e ser fiel, não o tendo conseguido. A par de outros atos incorretos, confessados a quem de direito na devida altura, este, de caráter mais público, fica bem aqui retratado, nesta série “O segredo de:”. Dele peço desculpa, pelo que representa, a quantos se sintam por ele, atingidos e prejudicados.

Foto tirada da pista que ficava próxima do quartel. Ao fundo, o aspeto exterior das muitas tabancas de Teixeira Pinto. Uma área arborizada com as moranças circulares feitas de barro e cobertas de colmo. Arquitetura ancestral, bem adaptada às gentes e ao clima. Bem melhores que os reordenamentos que a tropa fazia, em áreas descampadas, retangulares, com blocos de barro cozidos ao sol e cobertura de zinco. Na zona havia alguns, mas pouco habitados. O objetivo principal não era servir as populações a quem se destinavam, mas sim controlá-las.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12841: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (4): Teixeira Pinto, adaptação às pessoas e ao terreno

8 comentários:

Cesar Dias disse...

Joaquim, essa árvore deu o máximo, ninguem lhe podia exigir mais, muito bem tratada, dá gosto ver.
Abraço
César Dias

Anónimo disse...

De: Augusto Silva Santos
Para: Joaquim Luís Fernandes

Camarada e Amigo,

Apesar de neste momento me encontrar longe, pois estou no Dubai onde vive uma das minhas filhas, também ela "obrigada" a emigrar pelo que de tão mau se passa agora no Portugal que tanto ajudámos a construir e que outros teimam em destruir (desculpa este meu desabafo político), não consigo diariamente de vir consultar o "nosso" blogue (é um dos meus "vícios"), e de muito naturalmente tentar encontrar mais uma das tuas narrativas, que tenho seguido com muito interesse. Coincidência ou não, acredita que me tenho revisto em muito de que tão bem nos contas, não tivéssemos ambos passado pelo Chão Manjaco. Continua amigo e obrigado pelo que tens contribuído para o acordar das nossas memórias. Recebe um grande e forte abraço.

Anónimo disse...

J Luís Fernades

Bonitas imagens daqueles tempos.

A papaieira (ou mamão nas américas), tão anã e já tão carregada talvez fosse uma mutação ou nova variedade resultante da experimentação das Granjas divulgadas pelos trabalhos do CAOP 1.
Quanto ao trabalho rude, nas bolanhas e não só, claro que poderia, teoricamente, ser facilitado por maquinaria.
Mas cuidado, que economicamente tudo isso tinha os seus custos e não eram pequenos.
Não é fácil aplicar modelos de países industrializados, onde os custos de certos factores de produção são baixos, em países pobres, que teem de importar todos esses mesmos factores de produção a preços absolutamente proibitivos.
A Agricultura Portuguesa que o diga...

Abraços
JPicado

JD disse...

Caro JLFernandes,
Nunca é tarde para pormos as contas em dia, e conseguiste fazê-lo com a elevação possível, com o incómodo de um acto dividido.
E as descrições continuam a ser de bom nível, pelo que volto a manifestar agrado.
Um abraço
JD

Joaquim Luís Fernandes disse...



Camarada César Dias

O teu comentário sobre a papaeira profícua, que agradeço, remete-me a ver nela uma metáfora, aplicada à nossa geração: - Demos o máximo. Ninguém nos podia ter exigido mais e nem sempre fomos bem tratados. Fomos fecundos. Fizemos grandes mudanças e transformações, sociais, urbanísticas, arquitetónicas, tecnológicas, nas mais diversas áreas, no nosso país. Dá gosto olhar para trás e ver o quanto foi feito.

Mas olhando o presente e o futuro incerto que se nos afigura,nesta regressão sem fim à vita, tenho que me interrogar: Em que é que falhamos? E agora o que é que podemos fazer? Ainda nos vão continuar a exigir mais? Até quando? Quem é que nos tramou e quer continuar a tramar?
Desculpa o desabafo.

Um abraço
JLFernandes

Joaquim Luís Fernandes disse...


Camarada e amigo Augusto Santos

Como eu sinto o teu desabafo! Também nisto nos aproximamos! Dói-me muito ver a situação a que o nosso país e muitos de nós portugueses chegamos.

Depois de uma vida de intenso trabalho e de grandes sacrifícios, eis ao que chegamos! eis o futuro que legamos aos nossos filhos! Um país bloqueado, numa regressão que não sei onde acabará.

Além dos filhos/as (eu tenho quatro) também já me preocupa o futuro das netas (também já quatro).

Mas vamos ter fé e esperar melhores dias, fazendo por isso, no que estiver ao nosso alcance.

Boa sorte para a tua filha aí no Dubai, para ti uma boa estada e um bom regresso a casa.
Voltaremos a encontrar-nos neste blogue quando calhar.

Um abraço
JLFernandes

Joaquim Luís Fernandes disse...



Caro jorge Picado

De agricultura (e não só) sabes tu. Eu sou apenas um camponês, praticante desde criança, mas sem formação para o ato.
As legendas das fotos do trabalho nas bolanhas, são o desabafo de um jovem de 21 anos, sensível e bem intencionado, mas não mais do que isso.

Mas continuo a pensar que a Guiné-Bissau tem potencialidades agrícolas para ser auto-suficiente em alimentos e ainda produzir excedentes.

Com certeza que não se poderão mecanizar as suas bolanhas como se mecanizam as várzeas dos nossos rios, onde se produz o nosso famoso arroz carolino, ou os vastos campos de milho, hortícolas, etc.

Nem tudo ao mar, nem tudo à terra. Será na racionalização equilibrada dos meios, das tecnologias, adaptada às realidades, económicas, humanas e geográficas, que se encontrará a solução ajustada. Disto, saberia melhor do que nós todos, o malogrado nosso amigo Pepito.

Obrigado pelo teu comentário

Um abraço
JLFernandes

Joaquim Luís Fernandes disse...



Caro J. Dinis

Confesso-te que me deu gosto escrever este registo deste acordar memórias da Guiné,
mesmo não tendo formação para escrever, da área das letras. (Sou um técnico da área da mecânica e das engenharias)

Reconheço que a minha escrita, sendo imperfeita e com muitos erros, revela alguma sensibilidade na expressão dos sentimentos vivenciados nas realidades que me envolvem. Mas sou um iniciado sem prática e sem experiência.

Já tu, és um experiente escritor, na área social e política. Talvez jornalista! Não sei.

Iremos continuar a encontrar-nos por aqui. Nos postes ou nos comentários.

Um abraço
JLFernandes