1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2013:
Queridos amigos,
O documento do tenente Bernardino António Álvares de Andrade, datado de 1796, é uma peça a todos os títulos de inegável importância.
Trata-se de uma profissão de fé nas potencialidades da Guiné, sugere-se a um ministro de D. Maria I que a Guiné tem que entrar no mapa, são necessários soldados, a ocupação, o conhecimento das populações, a negociação com os régulos, a competitividade naval, a “racionalização” da escravatura e cultivo da terra que, como ele diz, dá tudo.
Faz recomendações numa escrita entusiástica, é um prosélito. Ninguém lhe terá ligado, a sua memória foi parar à Biblioteca do Porto e interessou Damião Peres que a publicou pela primeira vez em 1952.
Bernardino de Andrade viveu e morreu no absoluto olvido.
Um abraço do
Mário
Planta da Praça de Bissau e suas adjacentes:
Uma memória ímpar da Guiné no declínio do século XVIII
Beja Santos
Esta “Planta da Praça de Bissau e Suas Adjacentes” conheceu a sua primeira edição em 1952 e a segunda em 1990. A introdução e anotações históricas couberam a uma figura eminente da historiografia portuguesa da primeira metade do século XX, Damião Peres. A Academia Portuguesa da História não ficou indiferente a um manuscrito inédito guardado na Biblioteca do Porto, o seu autor, Bernardino António Álvares de Andrade, revelava um entusiasmo incomum acerca das potencialidades agrícolas do território guineense, então com dimensões mais vastas que as atuais. Escreveu uma memória original onde admitia a possibilidade de uma integral ocupação portuguesa daquele território, achava que mais do que o fornecimento de escravos e marfim a Guiné tinha todos os predicados para um desenvolvimento modelar.
Bernardino de Andrade embarcou para a Guiné em 1765, ia servir voluntário no posto de tenente, com exercício de engenheiro, seria um dos artífices na construção da fortaleza de Bissau. Estivera preso por apropriação abusiva de dinheiros, terá preferido ir até à Guiné e ver a sua pena comutada. Os dados estudados por Damião Peres confirmam que o seu trabalho foi reconhecido e recebeu vários louvores. Decidiu viajar para fora de Bissau, internou-se até ao curso superior do Geba, fez negociações com o régulo de Bissau com vista a manter a concórdia durante o levantamento de fortificações.
A fortaleza de Bissau está concluída em 1774, Bernardino de Andrade é ali colocado como tenente e no ano seguinte é igualmente inspetor do hospital militar. É por essa época que começa a emitir pareceres para Lisboa. Oiçamos Damião Peres: “Abordando o problema da guarnição militar, afirmava ser insuficientes as três companhias, com o total de 240 soldados, mal chegava para guarnecer os postos da praça, não havendo assim as reservas necessárias para acudir às necessidades militares de Cacheu, Farim, Ziguinchor e principalmente Geba, povoação de grandes lucros, acrescentando que a essa falta de soldados se somava a de material militar e ferramentas”. E faz alvitres, que os soldados se dediquem à agricultura nas horas livres, já que a terra de Bissau tem capacidade para ser cultivada de milho, mandioca e outros frutos, sugere ao governador ferramental agrícola e sementes bem como uma atafona (moinho manual) para moagem dos cereais. Assegura que a terra é boa para produzir toda a qualidade de pão. Os anos passam e Bernardino de Andrade parece ter vivido numa completa obscuridade profissional. Convém não esquecer que a época é marcada por uma certa esperança no que a Companhia do Grão-Pará e Maranhão iria fazer quanto ao povoamento e desenvolvimento.
Que a sua afeição pela Guiné terá sido intensa e duradoura comprova o facto de aos 68 anos de idade ter entrado num concurso para provimento do lugar de governador da Praça de Bissau, invocando antigos serviços na Guiné. Indeferido. Observa Damião Peres: “Cm o seu menor posto, que era o de tenente, reformado, e com uma vaga aprendizagem de engenharia, não podia queixar-se de ter sido objeto de um tratamento injusto. Deve então ter começado, no declínio de uma apagada velhice, o olvido dos seus préstimos e o olvido do seu nome”.
A sua memória tem cerca de 26 páginas, é uma minuciosa e animada exposição relativa às possibilidades de desenvolvimento económico da terra guineense e do progresso moral das suas populações nativas, não tem paralelo com qualquer outra documentação do seu tempo. Tem a data de 1796 e é dirigida a Luís Pinto de Sousa Coutinho, ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. Depois de saudar o governante, apresenta aquela região da Guiné “muito fértil de arroz, milho, gado vacum, de toda a qualidade de caça, assim terrestre como volátil por toda a marinha e rios de peixes; os nacionais são homens formosos, e bem proporcionados, famosos lavradores, bons marinheiros e de natureza guerreiros; as mulheres igualmente os acompanham em todas as ações, não usam vestidos, unicamente traçam sobre os ombros um pano; nesta Ilha toda a pedra é férrea, tem salitre, a que os nacionais chamam sal de vaca”.
Informa que os filhos da colónia levam uma vida primitiva, inaceitável. Volta aos louvores da agricultura: “Achei em todo o país desta colónia, ou seja na Ilha de Bissau ou na terra firme, produzir-se perfeitamente toda a qualidade de pão; tendo mais a vantagem de frutificar duas vezes num ano a mesma semente, e o mesmo sucede nas searas de milho”. Diz mesmo que o linho se cria com perfeição e abundância. E passa a propor ao governante um conjunto de providências que devem chegar ao conhecimento da Augusta Soberana, D. Maria I: que sejam enviados para a Praça de Bissau mil dos filhos da Ilha de S. Tiago e duzentos europeus, que fossem operários de todas as artes mecânicas, e recorda o tremendo sacrifício em vidas que foi a construção da fortaleza de Bissau; que aumente o tráfego marítimo e que as mercadorias fiquem sob inspeção do governador, estabelecendo-se um giro mais rápido para que a escravatura chegue aos portos da América sem detença; que a rainha nomeie um governador prudente, amante da Pátria, verdadeiro, observante das leis divinas e humanas e desinteressado; igualmente que a rainha enviasse para a colónia ministros do Sagrado Evangelho e que os sacerdotes sejam obrigados ao ensino da religião cristã e das primeiras letras (e dá o exemplo do que os ingleses estão a fazer na Serra Leoa). Faz-se depois um comentário aos pontos assinalados na planta de Bissau, começa na praça de S. José, a freguesia de Nossa Senhora das Candeias, armazém da fazenda real, hospício, a seguir descreve a localização dos Papéis, várias ilhas e ilhetas, refere Bolama, o Ilhéu do Rei, a boca do rio de Geba, a povoação de Porto Gole, vários rios. A sua descrição permite ver que conheceu perfeitamente o rio Geba e a povoação de Geba, como se transcreve: “A povoação de Geba dista de Bissau 123,5 léguas, é tão antiga como o descobrimento de Bissau, é povoada por mil vizinhos; está circundada por todos os lados de gentio e à margem do mesmo rio, os povoadores deste sertão se dividem em três classes, gentios, mouros e Fulas, todos estes homens são sumamente amigos do campo e da lavoura pelo que se ajudam mutuamente no dito trabalho, com o qual cultivam com muita abundância milho de toda a qualidade, feijão, grão, arroz, algodão, anil, etc.”. E prossegue: "da povoação de Geba continua o rio do mesmo nome, seguindo sempre o rumo de leste, na longitude de 50 léguas, há uma grande pedra que impede a navegação do mesmo rio desta pedra para cima, a 60 léguas de distância há uma lagoa também de água doce que mostra ser o seu horizonte de 20 léguas de distância, dizem os moradores vizinhos daquela que dela desabam quatro rios; dois por mim conhecidos que é o Geba e o Senegal, o terceiro dizem eles ir para a Costa da Mina e o quarto para a Ásia”. A preocupação permanente de Bernardino de Andrade é vencer todos estes obstáculos, como ele diz “tirá-los do abismo da rudez”.
As anotações históricas permitem ao leitor conhecer o que era Bissau antes da fortaleza construída na contemporaneidade de Bernardino de Andrade, como se efetuaram as negociações com os régulos de Bissau, como a marinha de guerra participou nos trabalhos destas fortificações.
Documento espantoso, e mais espantoso ter ficado no silêncio dos arquivos até 1952.
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Nota do editor
Último poste da série de 23 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13182: Notas de leitura (593): "O Eco do Pranto - A criança na poesia moderna guineense", recolha e coordenação de António Soares Lopes (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Olá Camarada
Ainda não acabei de ler este livro.
Tem de ser bem digerido.
Mas, para já, cai por terra a tese "daquela portuguesíssima terra que sempre nos foi vendida.
Um Ab.
António J. P. Costa
Pela data foi no tempo de Pombal que foi deportado para a Guiné este colonialista.
Beja Santos e a sua persistência, só pela planta da fortaleza e do Geba ainda sem a rua e o cais do Pigiquiti vale como um dos postes mais interessantes deste blog.
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