terça-feira, 10 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13266: Ser solidário (159): É verdade, é tristemente verdade, Isabel, por aí, por essa terra madrasta, pode bem dizer-se: "... E a morte continua"!... No dia em que foi a enterrar a Alicinha do Cantanhez (2010-2014).

A Alicinha e a mãe, nalu,
Cadi Indjai (1985-2013)
1. Mensagem da Isabel Levy Ribeiro, em Bissau, chegada hoje por volta das 11h55

Assunto - Alicinha

Olá, Alice e Luis. Acabei de receber agora a noticia da Alicinha. A vossa [menina] morreu ontem e está a decorrer agora o seu funeral  lá no sul.

Não sei o que aconteceu! Apenas que se foi.

Há pouco deram mais uma notícia da morte de um rapaz que trabalhava na TV de S. domingos. 
Por aqui, pode-se dizer ..."e a morte continua", 
ao contrário de "a vida continua".

Um abraço
Isabel

2. Resposta de Luís Graça:

Obrigado, Isabel, pela grandeza do teu gesto. Registo e não esqueço. Os amigos são também para estas ocasiões dolorosas. 

A minha Alice ficou num pranto quando, incrédula,  leu a notícia. Acabávamos de chegar da casa do Nuno Rubim, na noutra banda, onde fomos buscar uns livros. 

Telefonámos de imediato ao António  Baldé, pai da Alicinha, que mora aqui perto de nós, em Alfragide [, foto  à esquerda]. Estava triste por ter recebido, da Guiné-Bissau,  a notícia de que a menina, ontem,  estava muito doente. Demos-lhe a então a notícia do brutal desfecho.(*)

A Alicinha do Cantanhez, a filha da Cadi e do Baldé, a mana do Nuninho (**), não chegava aos 5 anos, a mítica fronteira da sobrevivência na Guiné-Bissau. A morte levou-a com ela, depois da mãe Cadi, depois do mano Nuninho. Fica um pai (e um irmão, adolescente, de 15 anos), desctroçado. Ele que tanto queria conhecer (e viver ao lado de) a sua filhota  mais nova... Tinha planos para voltar para a Guiné, para a sua casa em Caboxanque, no próximo ano, e dedicar-se à apicultura...

É uma dor de alma. A Guiné é  uma terra madrasta para as crianças... E tanto que a Alice e o Baldé sonharam em trazê-la para cá!.... De alguma maneira, a Alice também se sente culpada por não  ter conseguido vencer, em tempo útil, a burocracia e trazê-la para Portugal, para o pé do pai e do irmão... A Alicinha, que ela já tratava como a "sua menina"... 

É verdade, é tristemente verdade, Isabel, por aí, na Guiné,  pode-se dizer: "... E a morte continua!"...

Obrigado, amiga. Espero que as coisas melhorem para ti e a  tua família. Um xicoração apertado. Luis (e Alice).
__________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 26 de fevereiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12776: Ser solidário (158): Gente amiga da ONGD Ajuda Amiga: o cor comando ref Hélder Vaz Pereira, presidente do conselho Fiscal, que viveu desde os 4 anos em Bissau... (Armando Pires)

(**) Vd. Luís Graça > Blogpoesia > 24 de setembro de 2008 > Blogantologia(s) (II) - (72) Nasceu e morreu um pretinho da Guiné

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Setor de Bedanda > Cananima > 2 de Março de 2008 > Uma jovem, da região, que estava grávida, e que tinha o marido em Bissau. Caíu nas boas graças das nossas senhoras, sempre muito maternais: a Júlia [, esposa do Nuno Rubim], a Alice [, esposa do Luís Graça], a Isabel [, esposa do Pepito]... 

Cadi era o seu nome. Vivia em Farim do Cantanhez. Esteve recentemente às portas da morte. E perdeu o seu primeiro e único filho, o Nuninho, de 4 meses. Por paludismo. Por abandono. Por falta de tudo (ou quase tudo). Por falta de cuidados de saúde (primários e secundários). Por falência dos serviços públicos de saúde. Por falta de médicos que vêm estudar para Portugal e não voltam.... Por ser guineense, por ter nascido num dos piores países do mundo no que diz respeito a indicadores de saúde materno-infantil... "Que raiva, que mundo, que desgraça de país" - é a primeira reacção que nos ocorre, a nós, que estamos num país que tem um dos baixos indicadores de mortalidade infantil do mundo... Sofremos, e muito, com estas notícias tristes que nos chegam da nossa querida Guiné... e que nos envergonham a todos (LG).


Nasceu e morreu um pretinho da Guiné

Cadi, de seu nome.
Amorosa.
Uma ternura.
Uma jóia de miúda.
Tinha a graça de uma gazela
apascentando na orla da bolanha.
Era nalu.
Vivia em Farim do Cantanhez.
Filha de um velho combatente da liberdade da pátria,
com direito a pensão
ao fim do mês.
Estava grávida de muitas luas.
Atrelou-se à Júlia e à Alice
em Iemberém,
no início de Março de 2008.
Com aquela candura, doçura, espanto e maravilhamento
das crianças africanas,
quando vêem uma Mulher Grande, branca.

8 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Infelizmente estas situações já aconteciam no nosso tempo. Recordo-me do nascimento de trigémeos no dia em que cheguei a Canjadude. A mãe e as crianças tiveram de ser evacuadas, por complicações, já com uma das crianças “por um fio”.
Antes de regressar, já a terceira criança se tinha ido juntar aos irmãos.
Parece que na Guiné nada melhorou.
Acompanho-vos na vossa tristeza.

Luís Graça disse...

Obrigado, Zé...

Acabámos por ter e manter uma ligação emocional forte a esta família... Nunca conhecemos a miúda, só a mãe, e mais tarde o pai, que... vive agora perto de nós, e com quem falamos regularmente. É visita da nossa casa.

Conhecemos a Cadi em circunstãncias diversas, eu e a Alice, o Nuno Bubim e a Júlia, em março de 2008, numa visita ao Cantanhez; o João, como médico e viajante, em Iemberém, em dezembro de 2009 (um mês depois, nasceria a Alicinha)...

O pobre do António Baldé, que tem a dupla nacionalidade, e foi 1º cabo da CART 11, tendo trabalhado depois com o Pepito, nos serviços agrícolas, sofreu um triplo golpe da Senhora Morte em escassos meses: (i) morreu-lhe a Cadi, a mais jovem das suas 4 esposas; (ii) a seguir, morreu-lhe a mulher mais velha, mãe de uma filha (amorosa) que vive cá, em Massamá; e (iii) agora, coitado, recebe de chofre, por um telefonema nosso, a notícia que a "sua Alicinha" (que ele ainda não conhecia e tanto ansiava conhecer!) acabava de ser enterrada esta manhã...

A notícia chegou-nos por email da viúva do Pepito, a Isabel. A Alicinha, orfã, vivia com uma tia materna, na região de Tombali. Íamos tendo notíciaas dela através do saudoso Pepito e do pai...

São heróis as crianças que conseguem chegar à idade dos cinco anos na Guiné-Bissau!!!

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Luís Graça

Esta notícia triste também teve o condão de me emocionar. Porquê? Pela perda de mais uma criança inocente e indefesa? pelo sofrimento do Pai, do irmão, da madrinha?...

Ou por sentir a dramática situação da vida naquela terra, que também tenho no coração e o reconhecimento da impotência para fazer o tanto que falta, para alterar a triste realidade atual?!

Abraços fraternos

Luís Graça disse...

O sofrimento aproxima-nos. A dor tem um rosto. E um rosto que nos é familiar. Estou a imaginar o sofrimento desta criança que eu só conhecia, nós só conhecíamos, de pequenos vídeos e fotografias...

Sei agora que a Alicinha esteve uma semana com diarreia. Levaram-na, tarde demais, a um distante posto sanitário. Talvez Iemberém... que deve ter quando muito um enfermeiro, ou auxiliar de enfermagem..

Com o sistema imunitário enfraquecido, desidratada, a criança deve ter morrido de desidatração!... Em plena época das chuvas!... Ou teve alguma infeção oportunística, não sei... A mãe morreu aos 28 anos... E suspeitamos da doença... Conheci-a em 2008, era um torrão de açúcar! Um encanto!...

È assim, Joaquim, sabemos, em abstrato, que a situação sanitária na "nossa" Guiné é um desastre... Mas são estes casos que reforçam os nossos sentimentos de solidariedade e amizade para com aquele povo que bem merecia melhor sorte!...

A primeira criança que vi morrer foi na Guiné... ao meu lado. O primeiro homem que vi morrer, em combate, foi na Guiné. Ao meu lado... Depois a morte "banaliza-se".... mas não devíamos deixar que isso acontecesse... Na guerra, no hospital, eu sei que é uma defesa dos "profissionais", sejam médicos ou combatentes...

De qualquer modo, há que fazer o luto das nossas perdas...

Obrigado, Zé Martins e Joaquim Fernandes pelas vossas palavras de conforto que eu vou transmitir ao pai, ao mano e à "madrinha"... A Alice gostava muito daquela criança para a qual sonhava um futuro...

José Teixeira disse...

Há notícias que não podem ser notícia, mas infelizmente são, para nossa dor.
Estive com a mãe da Alicinha duas vezes.Uma jovem cheia de vida com uma bebé amorosa - daquelas que gostavamos de trazer connosco no regresso se tal fosse possível.
De repente, a informação de que estava doente. Lá dos confins do Cantanhez, (nde para se fazer 30 kilómetros se gastam 3/4 horas,nos tempos de hoje) veio até Bissau e conseguimos que fosse internada no Hospital de Cumura, mas o seu estado de saúde era muito grave e..perdeu-se uma vida. A menina foi entregue a uma tia, que tinha crianças da sua idade e foi viver para outra Tabanca. Assim me disse o Avô quando a fui procurar m 2013.
Era uma menina linda e cheia de vida.
Agora,fica o vazio de mais uma vida perdida e são tantas as vidas que se perdem neste mundo cão, onde os pobres têm de continuar a ser pobres, para que os ricos possam ser mais ricos.
Zé Teixeira

Rui Silva disse...

Apoiado Zé Teixeira !!
Para além de lamentar, e muito, a perda de uma inocente criança, gostei de te ler: "neste mundo cão, onde os pobres têm de continuar a ser pobres, para que os ricos possam ser mais ricos".
Abraço.

Rui Silva

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Como de costume, nestas situações, faltam-me as palavras.

Sim, sei que se trata 'apenas' de 'mais uma criança' ainda por cima 'lá longe', mas o valor da vida humana não se pode nem deve medir por questões de proximidade.

Acompanhei a história do nascimento desta criança e da génese e do porquê do seu nome. À distância, sem querer, fui criando curiosidade para perceber a sua evolução.
Agora chega assim, de modo brutal, a notícia da sua morte. Isto tem o sabor do irremediável. Um travo amargo.

Para o Luís e principalmente para a Alice, o meu recolhimento e abraço solidário, para os familiares e amigos, os meus sentidos pêsames.

Hélder S.

antonio graça de abreu disse...

A Alicinha filha da Cadi, também partiu para o céu, ou para o nada.

Lembrei-me de um poema que escrevi em memória da namorada de um dos meus quatro filhos, falecida com 23 anos. Tudo igual, menos a idade e a cor da pele.
O poema chama-se:

Efémero e frágil

Recordando a Márcia,(a Alicinha!) tão cedo ao encontro de Deus

O teu corpo de menina
jaz no cemitério junto ao mar.
Tão breve a tua jornada entre terra e céu!
O teu rosto, a pele branca, os dedos delicados,
não nasceste para noiva de mortais,
foste um rebento novo queimado pela geada,
uma flor rara levada pelo vento.
As mais puras sempre as mais frágeis,
quebram como vidro,
desaparecem como nuvens.1


Abraço,

António Graça de Abreu

1 António Graça de Abreu, China de Jade, Lisboa, Vega Editora,2007, pag. 37.