terça-feira, 26 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13534: Estórias do Juvenal Amado (52): Portugal, fábrica de soldados

1. Em mensagem do dia 20 de Agosto de 2014, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos um texto dedicado ao Portugal dos anos 60 e 70, à época autêntica fábrica de soldados.


ESTÓRIAS DO JUVENAL

52 - FÁBRICA DE SOLDADOS

Uma das recordações que tenho daquele tempo prende-se com os comboios.
Comboios diferentes dos de agora. Diferentes no uso, nos passageiros e na função para a qual tinham sido requisitados. Falo dos especiais para militares, sempre a abarrotar de fardas verdes e boinas castanhas, que cruzavam de Norte a Sul o nosso país, para fins-de-semana e regressos aos quartéis, mas também dos transportes para os embarques. Esses eram menos visíveis, pois saíam dos centros onde se formavam os batalhões directos sem paragens, a meio da noite e iam descarregar a sua carga humana em Sta Apolónia ao amanhecer .

Eu esperava o meu no Valado dos Frades, terra produtora de produtos hortícolas, artigos de faiança e porcelanas (*) a meia dúzia de quilómetros de Alcobaça e outro tanto da Nazaré, estância balnear frequentadas por nós naqueles anos, no meu caso desde criança.

De comboio até à idade da tropa, viajei esporadicamente para Lisboa e regresso. Bem diferente foi o meu conhecimento com esse meio de transporte após a incorporação.
Fui para Coimbra e posteriormente para o Porto neles. Eram comboios modernos vulgo automotoras, em que a 2.ª classe era ocupada pelos praças, a 1.ª por oficiais e sargentos numa divisão hierárquica imposta pelas leis militares.

Nos cais de embarque ficavam muitos familiares e namoradas a ver-nos partir normalmente com um até ao próximo fim-de-semana. Era assim que me despedia dos meus, até nas vésperas do embarque eu mantive o “até para a semana” já sabendo que essa semana seria dali a muito tempo.

Mas quando saí do Porto na direcção de Abrantes conheci outro tipo de composições ferroviárias que pareciam ter recuado no tempo até ao do Século XIX após a vila do Entroncamento no seu cadenciar tipo “muita terra pouca terra”. Desconfortáveis pois tinham bancos de madeira, lentos, paravam em todas as estações e apeadeiros para além de raparmos um frio danado.

Logo no dia que fui transferido com mais camaradas condutores e uma dúzia de soldados de Pel Rec, rumamos a Abrantes findas que foram as respectivas especialidades, levamos uma noite inteira para chegar ao nosso destino. Saindo da orla costeira parecia que mergulhávamos noutro país facto que vim a comprovar nas horas que levava a chegar a Sta. Margarida bem com a sair de lá.
Mas os comboios passavam sempre a abarrotar de soldados, muitos deles nunca tinham visto o mar, encheriam pouco depois os porões de navios rumo à Guiné, Angola e Moçambique a sabor da incerteza. Portugal parecia dormente, aceitava esse fardo como se fosse cumprir um destino e os pais, viam partir os filhos esperando pelo seu regresso sãos e escorreitos. Cada um guardava a sua própria dor, que não se podia medir, nem pesar, nem comparar.

Quando embarquei já milhares de jovens tinham embarcado antes de mim durante os 10 anos de guerra, entre eles o meu irmão mais velho seis anos que eu. Parecia que o país não se esgotava. Na verdade naquele tempo, Portugal mais parecia uma fábrica de soldados.

Um abraço
Juvenal Amado
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(*) - N.A. O valado dos Frades pertence ao concelho da Nazaré, mas na verdade Alcobaça também sente essa vila como sua. Os seus campos agrícolas misturam-se com os da Cela e a ligação com o tipo de indústria, reforça os laços que nos unem. Muitos de habitantes dessa hoje vila, trabalhavam em Alcobaça e a própria fábrica de porcelanas SPAL, é como o nome indica uma emanação da nossa proximidade.

Recruta - CICA 4

Juramento de Bandeira

Partida para Sta. Margarida

Abrantes - Já mobilizado
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13104: Estórias do Juvenal Amado (51): Amendoins e bajudas, cheiros antigos

7 comentários:

Anónimo disse...

Olá Juvenal,
Conheci bem esse transporte de que falas, que saía à meia-noite, à frente do comboio correio, este chegava ao Porto já pelas 8 horas enquanto o militar chegava lá por volta das 4 e tal 5 horas, depois era fazer tempo por aquelas ruas até o quartel abrir.
Quem não se lembra dessa espera ao frio e à chuva, como os sem abrigo, nessa altura levados para instituições.
Sabes, nem todos tínhamos carro e parece haver quem esteja apostado no regresso a esses tempos.
Um abraço,
BS

Juvenal Amado disse...

Belarmino

É verdade sim. Eu comprava o jornal, talvez o Século pois era bem grande e e junto ao muro do RI 6 deitava-me nele com o saco a fazer de cabeceira enroscado para combater o frio, esperava pelas 7 horas hora que abria a porta de armas.
Quando fui mobilizado estava em Sta Margarida e o frio era tanto que cheguei a deitar-me todo fardado. Senti alguma alegria quando fui mobilizado embora o destino não me tenha agradado nada, mas quem que tem Sol na eira e chuva no milheiral?

Um abraço

Anónimo disse...

Caro Juvenal

Ainda há poucos dias, passei por Valado de Frades, a caminho de Famalicão e veio-me á memória a Linha do Oeste, que fiz diversas vezez, a caminho da Figueira, pois estive 7 meses no CICA 2, a dar recruta.Fica bem...
Um abraço.
Jorge Rosales

Anónimo disse...

Caro amigo Juvenal,

O mesmo poderia ser escrito sobre os barquitos que faziam viagens inter-ilhas lá pelos Açores. Porém, com uma grande diferença. Não havia fins de semana ou feriados para quem não era da ilha do aqurtelamento.

Se me permites, a minha comissão, como a de muitos outros açorianos, começou práticamente no dia em que me despedi dos meus familiares e acabou no dia em que os abracei novamente. Foram cerca de 45 meses.

É verdade, as condições dos barquitos eram em tudo muito semelhantes aos comboios. Havia o Funchal, o Angra do Heroísmo, os outros e aqueles pouca-vaga, pouca-vaga que saíam entre ilhas em dia de bom tempo.


Abraço transatlântico,
José Câmara

Juvenal Amado disse...

Rosales

Esqueci-me de falar dos comboios que apanhava para S. Martinho do Porto e da sua estação, que o chefe fazia gosto de manter florida e limpa de tal forma que chegou a ganhar prémios.

José da Câmara

Imagino como era penosa a separação das famílias não só quando iam para África mas também quando vinham para as especialidades no continente.
Foi mais duro para uns que para outros é bem verdade.

Um abraço aos dois

Anónimo disse...

"...Portugal parecia uma fábrica de soldados..."
Esta curta e aparentemente simples frase encerra todo o calvário que representou para a juventude de Portugal, a guerra de África. Hoje, causa-me sofrimento, aviva-me a ferida, ouvir opiniões defensoras do prolongamento desse conflito burro.
Um abração Juvenal.
Carvalho de Mampatá

manuel maia disse...

Olá Juvenal,

Conheci as automotoras e os comboios a carvão como aquele que me levou para terras de Viriato.
Saí de casa de comboio e após várias mudanças,apanharia o vouguinha para a cidade onde está sediado o RI14 onde fui dar uma recruta demorando catorze hora... Houve paragens em várias estações com mudança de composições.
Nunca mais me esqueceria pela vida fora...
abraço.