quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13616: Os nossos capelães (4): O bispo de Madarsuma, capelão-mor das Forças Armadas, em Gandembel, no natal de 1968 (Idálio Reis, ex-alf mil, CCAÇ 2317, Gandembel / Balana, 1968/69)



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > Natal de 1968 > Missa de Natal celebrada pelo capelão-mor das Forças Armadas, bispo de Madarsuma (*).


Foto: © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados [Edição de L.G.]


Idálio Reis (1968)
1. Excerto de um antigo poste  do Idálio Reis ex-alf mil, CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana 1968/69), engenheiro agrónomo reformado, residente em Cantanhede (**) e autor do livro de memórias "A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné: Gandembel/ Ponte Balana" (edição de autor, 2012):

(...) No início da semana de Natal [de 1968], foi-nos dado a conhecer que o capelão-mor das Forças Armadas viria celebrar uma missa campal.

Os preparativos para esse dia não poderiam ser de grande monta, mercê das circunstâncias que nos eram impostas, mas houve a alegria bastante para se proceder a uma limpeza mais esmerada da pequena parada, que serviria de lugar de culto.

Assim, numa quarta-feira, dia 25 de Dezembro, como habitualmente fomo-nos levantando aos primeiros raios do alvor. Era dia de Natal, e muito certamente o único que a Companhia passaria em Gandembel/Ponte Balana, e talvez mesmo em terras da Guiné, já que do tempo de comissão decorrido, tudo indiciava que a próxima Natividade seria passada no tão desejado aconchego familiar.

Bastante cedo, fomos procedendo às tarefas de rotina, e com um efectivo redobrado, seguimos até ao rio Balana buscar água; tudo haveria de correr de feição. O almoço haveria de ser mais avantajado e suculento, já que tínhamos recebido determinados víveres que deram azo a que a ementa fosse das melhores que durante esta longa estada nos fora proporcionado.

E ao princípio da tarde, vestidos a preceito (onde a camisa era indumentária de gala), esperámos o séquito que haveria de vir ao nosso encontro. E pouco tempo passado, irrompiam, nos ares do horizonte, um conjunto de helicópteros que aterravam celeremente no centro de Gandembel, donde iam saindo diversas personalidades. E logo, aquelas singulares máquinas alares - as únicas que nos puderam tantas e tantas vezes socorrer -, levantavam.

Recordo os que pisaram este chão térreo: uma comitiva do Movimento Nacional Feminino, onde pontificava a sua Presidente, D. Ana Supico Pinto; presbíteros liderados pelo Bispo de Madarsuma; o Comandante-Chefe António de Spínola com alguns militares do seu Estado-Maior; um jornalista do Diário Popular.

A Companhia postou-se junto a uma das casernas-abrigo e aprestou-se a dar as boas-vindas. Em silêncio (não em sentido), Spínola aproximou-se de nós e durante alguns momentos fitou-nos de frente [apresentava um fácies de olhar lânguido] e profere uma alocução muito breve em que abordando o tema do Natal, deu particular ênfase aos conceitos de Deus, Pátria e Família. Muito seguramente já havia tomado a decisão pela evacuação daquele aquartelamento, mas nada exteriorizou. De todo o modo, julgo que ao findar as suas palavras, parece ter-lhe perpassado um frémito de emoção, e repentinamente manda descer o seu helicóptero e segue um outro caminho, porventura menos ínvio e liberto que este.

As senhoras do MNF, em atitude bastante contida, simpaticamente fizeram uma pequena oferta a cada um de nós. O Natal de 1968 também nos obsequiara com o maior número de mulheres que Gandembel jamais tivera oportunidade de agregar, e ”nas conversas de caserna” referia-se que talvez fosse a maior prenda que o Pai Natal nos aportara.

Também se retiraram rapidamente.

Ficavam os membros do Clero, para a concelebração da missa. Um altar improvisado e uma Companhia em que a maioria dos seus homens eram católicos praticantes, sentida e contemplativamente ouvem e rezam em murmúrio dolente e fervoroso.

Mas, mal a missa acabou, começam a detonar uma série de granadas de morteiro 82, lançadas junto à fronteira. O bispo e seus acólitos ficam atónitos ante tal quadro e num relance meia dúzia de soldados vão em seu socorro, pegam-lhes nos braços e conduzem-nos para uma das casernas-abrigo. Passaram-se cerca de 10 minutos, terminam as deflagrações, e o helicóptero que devia estar em Aldeia Formosa é chamado, e os membros da Cúria também seguiram outros destinos.

Restou ente nós, o jornalista do extinto Diário Popular, que haveria de escrever um belo artigo sobre a guerra de Gandembel/Ponte Balana, e que o Blogue já o divulgou na sua quase generalidade. (...)


Capa do livro "A CCAÇ 2317, na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana", da autoria de Idálio Reis. Edião de autor, 2012.


2. O bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de bispo de Madarsuma, com funções de capelão mor das Forças Armadas, no período de 1967-1975. era D. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), capelão e professor da Academia Militar, e procurador da Câmara Corporativa antes do 25 de abril (VIII Legislatura).





Ficha biográfica do bispo de Madarsuma, António dos Reis Rodrigues (Ourém, 1918 - Lisboa, 2009). Fonte: Sítio oficial da Assembelia da Repúblicia (Com a devida vénia)
_________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 5 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13577: Os nossos capelães (3): O capelão do BCAÇ 619 ia, de Catió, ao Cachil dizer missa... Creio que era Pinho de apelido, e tinha a patente de capitão (José Colaço, ex-sold trms, CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

(**) Vd. poste de 24 de dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3666: O meu Natal no mato (19): Spínola, as meninas do MNF, o bispo de Madarsuma e um jornalista, em Gandembel, 1968 (Idálio Reis)

7 comentários:

Luís Graça disse...

Dou agora conta que o procurador à Câmara Corporativa, António dos Reis Rodrigues, tem um parecer sobre a Escola Nacional de Saúde Pública, na VIII legislatura (1961/65)...

A Escola (onde eu trabalho, desde a década de 1980) foi criada em 1966 mas é herdeira do Instituto Central de Higiene, que remonta à reforma da saúde pública, em Portugal, liderada por Ricardo Jorge (1899-1902), um homem do Porto...

Antº Rosinha disse...

A foto da "Ultima Missa em Gandembel", é uma das fotos mais falantes do que qualquer outra que se possa ver sobre a Guerra do Ultramar.

Aquela mesa/altar, aquele ajudante em tronco nú, representam bem o desenrascanço da malta.

Esta última missa documentada por Idálio Reis, contrasta com a 1ª missa, festejada por índios e pintada por artistas e documentada pela carta de Caminha.

Quatro dias após ter chegado em Porto Seguro, no Domingo de Páscoa, em 26 de abril de 1500, Cabral determinou que se realizasse uma missa no ilhéu da Coroa Vermelha. Foi a Primeira Missa celebrada em solo brasileiro e o evento foi documentado pela Carta de Caminha.



Anónimo disse...

Visita de "médico" das altas entidades..ficou o clero..que também se raspou perante sinal de perigo..restou o "zé povinho"..como sempre.

Sempre foi e será assim.

Deviam era fazer um "estágio"..vá lá de 1 semana..comer a "bianda"..saber o que era levar com flagelações constantemente..dormir na vala..prontos, num abrigo..passar fome e sede..de certeza que ficavam sem "tesão" de apelar ao sentido patriótico ..do dever..e outras merdas.

Um grande alfa bravo para todo os "gandembeis"..provavelmente uma das maiores senão a maior estupidez que se cometeu na guiné durante toda a guerra..ao colocarem-vos naquele "cú de judas".

C.Martins

Luís Graça disse...

Rosinha, é uma legenda genial para esta foto!... Vou ver se arranjo uma gravura alusiva à histórica missa pascal em Porto Seguro, em 26 de abril de 1500...

Antº Rosinha disse...

Luís, quantas legendas e quão variadas...mas como dizia o Alfredo Marceneiro: "nã se pode cantar todas as cantigas, por cása da cinssura!

Valdemar Silva disse...

António Rosinha que bela legenda 'Última Missa em Gandembel', para esta fotografia extraordinária. Nem o Fellini conseguiria arranjar uma imagem tão surrealista como esta: o altar, uma tosca mesa de madeira feita à pressa, os castiçais das velas acesas, umas amolgadas latas de coca-cola, o ajudante, de joelhos, em calções e tronco nu, qual penitente desvalido, o sacerdote erguendo ao céu um cálice de prata, apenas com a estola sobre o camuflado, e, como se fosse a abside, uma imponente
peça de artilharia a meter todo o respeito.
É pena que nesta extraordinária fotografia não possamos ver a assistência à missa, para a podermos igualar à 1ª. Missa celebrada no Brasil, em 1500, descrita na carta de Pero Vaz de Caminha, depois pintada num quadro maravilhoso.
Parabéns Idálio Reis por esta obra d'arte.
Valdemar Queiroz

José Marcelino Martins disse...

Se os capelães caíam em emboscadas e sofriam ataques aos aquartelamentos, não sei.

Só conheci um capelão, apesar de haver de 2 batalhões durante a minha estadia.

Conheci o Padre Libório, tipo bacano e que "safou" muito alferes que se não apresentou ao render da guarda. Também não era necessário. O Libório tomava o lugar do faltoso, e depois "passava a pasta".

Esta cena via e, soube que era normal, com comentários com a malta do Batalhão.

Quando o vi ir numa coluna, ia desarmado. Disse-lhe que era bom levar a "canhota", porque ficava igual aos outros, apesar de já ter uma idade jeitosa.

Respondeu-me que foi para a guerra para salvar homens, e não para usar armas.

Uns tempos depois, já o vi a usar pistola, baseado no facto de que Deus o protegia, mas que ele, Padre, devia colaborar.

Em 11 de Julho de 1969, a CCAÇ 5 estava em operação a 4 grupos de combate. No aquartelamento ficou a Formação, 1 Grupo de Combate da CCAV 2482 (recebida em reforço temporário) e 1 Pelotão de Milícias nº 129.

O Padre Libório encontrava-se de visita ao aquartelamento, tendo chegado no dia anterior com o pelotão de cavalaria.

O Padre Libório não deu um tiro, mas organizou, com as mulheres dos soldados que fugiram para dentro do quartel, um grupo para encher os carregadores que os soldados iam atirando para junto deles, para serem carregados.

Incentivou toda a malta ao combate, mas não me consta que tenha chamado, ao IN, Santos ou Anjinhos. O que chamou foi de grau muito mais vernáculo.

Sem que, quando regressou aos Açores, já a sua mãe e uma irmã com quem vivia, tinham falecido. Foi para junto duma comunidade portuguesa na América.

Onde quer que esteja e se ler esta mensagem, vai um grande abraço para o meu amigo CAPELINI, como eu o tratava, do furriel das transmissões de Canjadude.