Vigésimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 3 de Agosto de 2015.
Os amigos, companheiros de guerra, estiveram num
tempo da nossa vida, onde eram quase a nossa família.
Depois da guerra, alguns de nós, começámos uma
família, isso mudou um pouco o nosso comportamento, criámos novos grupos, não é que não nos lembrássemos mais daqueles companheiros, mas as novas responsabilidades,
dificuldades e a sobrevivência, mudou-nos, mas colocar
esses amigos, companheiros de guerra, de novo juntos,
pelo menos fisicamente, pois os que por lá ficaram
atravessados por estilhaços ou balas inimigas, naquelas
savanas, tarrafo e rios de lama, esses seguem juntos,
mas no nosso pensamento, mas para colocá-los de volta,
agora, quando não há muito tempo nas nossas vidas,
quando aparece um, ficamos de algum modo contentes,
pelo menos vendo a sua fotografia e, mesmo que
qualquer desses companheiros não esteja entre nós, não
há nenhuma razão para um momento menos feliz, é um
momento sobre o tempo, sobre as nossas relações de quando éramos jovens.
Passando os olhos pelo nosso blogue, no post P14957, o
nosso companheiro, João Sacôto, que foi alferes
miliciano, fazendo parte da CCAÇ 617/BCAÇ 619, que
andou lá por Catió, Ilha do Como e Cachil, precisamente
nos mesmos anos que também por lá andámos, mostra
umas fotos em que se pode ver uma simpática personagem,
cujo nome não nos lembramos, mas deve de ser ele,
estou mesmo em dizer que é ele, pois a foto que temos
do nosso tempo de convivência, são muito idênticas.
Temos alguns amigos, mas “amigos especiais”, daqueles
que sempre lembramos, são os da guerra, aqueles que
estavam na mesma situação de angústia e aflição,
aqueles que estando no interior de África, olhavam o
mapa e viam a cidade de Bissau, não como alguma
civilização, mas como o caminho da Europa, são esses
amigos, daquele tempo de juventude, daquele tempo de
aprendizagem, onde a convivência nos fazia copiar os
maus e bons costumes.
Nessa altura éramos um normal soldado recruta, vulgo
instruendo, que estava no seu dever de cidadão, seguindo
os princípios para que foi educado, tanto no seu lar, como
na escola primária da vila de Águeda, onde sempre lhe
disseram que a sua Pátria, estando em guerra, devia ser
defendida, sem quaisquer restrições, mesmo usando o
sangue dos seus cidadãos. Neste contexto, o instruendo
que nós éramos, veio a sua casa, com licença de fim de
semana, retornando ao seu quartel, o tal lugar onde o
estavam a preparar para defender a, tal sua Pátria.
Era aquele normal fim de semana para, entre outras
coisas, saborear a comida da mãe Joana, todavia, quando
saímos da nossa aldeia, o sol ainda não cobria a marca,
na base da porta do curral das ovelhas, dizendo-nos que
era meio dia, aquilo era fácil, eram vinte e poucos
quilómetros, sacola ao ombro, com alguma roupa lavada,
assim como o farnel que a mãe Joana nos preparava. Seguíamos quase sempre a corta-mato, ou seja
encurtando caminho, percorremos quase todo o trajecto
da vila de Águeda à cidade de Aveiro, tirando um pequeno
percurso, em que viajámos à boleia no carro do
“homem do berbigão”, oriundo de Mourica do Vouga, que
encontrámos numa taverna próximo da povoação de
Eixo, naquele momento, comia ele, “umas sopas de
cavalo cansado”, vulgo “sopas de vinho”, que seguia
direito à lota de Aveiro, comprar o berbigão, sardinha e
carapau, para vender pela madrugada na nossa zona,
cujo carro era puxado por um “macho”, cujo “acelerador”
era um valente cajado com que batia no lombo do
desgraçado animal, quando este começava a dar
sinais de fraqueza, pois não tinha partilhado com o seu
dono das tais “sopas de cavalo cansado”.
Era domingo, um dia antes, pois no papel da licença
estava escrito segunda-feira, o céu já estava colorido com
aquelas cores estranhas, pois lá para o lado das praias já
se podia observar o começo da noite, a tal noite que se
prolongou por África e nos acompanhou nos próximos
três anos.
Com ele nos cruzámos em plena Avenida Lourenço
Peixinho, já na cidade de Aveiro, fazendo-lhe uma tremenda saudação, mesmo daquelas em que nos
colocamos na posição de sentido, só com a diferença, em
que ambos trajávamos civilmente. Ele riu-se, com
aquele sorriso maroto, sempre mantendo uma certa
compostura, eu fiquei a olhá-lo, talvez espantado. Esta
simpática personagem era o nosso aspirante, instrutor
que nos ensinou algumas normas militares, como marcar
passo, manusear a espingarda “Mauser”, desencavilhar
uma granada, que nós nunca aprendemos pois ficávamos
nervosos, quase a tremer, alguns exercícios físicos, enfim,
aquelas coisas que se aprendem na recruta. Na primeira instrução do nosso pelotão, ele, a tal
personagem, muito sério, explicou que trajando civilmente
não era necessário “bater a pala” a nenhum superior,
nunca mencionou o nosso nome, mas claro, olhando para
nós com o tal sorriso maroto. Voltamos a falar sozinhos,
já em Lisboa, à saída do comboio especial que nos trouxe
para a capital, onde fomos distribuídos por diversos
quartéis, aí dizendo-nos que mais cedo ou tarde, o nosso
destino era a guerra do ultramar.
Tomando a liberdade de mostrar as fotos do companheiro
João Sacôto, para ver a comparação, oxalá que esta
simpática personagem esteja viva, se estiver que
apareça com saúde e alegria em viver, pois se não
houver outra razão, a sua atitude para connosco, tornou-nos
cúmplices, podemos mesmo dizer que tivemos o
nosso “secreto”, o que nos torna de algum modo felizes
por o termos conhecido, neste mundo selvagem, onde os
oceanos já não têm aquele azul de outrora, os ventos já
não trazem a brisa de orvalho, mas sim, varrem destroços
da catástrofe que é o modo de vida e procedimento dos
“vindouros”, que não têm nenhuma contemplação ou
respeito por quem deu a vida pela sua bandeira, pela tal
sua Pátria.
Tony Borie, Agosto de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 2 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14960: Libertando-me (Tony Borié) (28): Pôr a carta no Correio, na guerra
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Tony Borié:
É o alferes Pedro Eduardo do Vale Guimarães Oliveira, da companhia 616. é natural de Aveiro. Filho do antigo Governador Civil de Aveiro. É separado já há muitos anos, tem duas filhas formadas, mas vive muito isolado. Apenas uma vez participou no convívio anual da CC 616. Na fotografia aparece abraçado ao cão que levou para a Guiné que se chamava "Petardo". Esta informação foi-me cedida pelo ex-Alferes Miliciano Joaquim da Silva Jorge que pertenceu ao meu Batalhão 619, CC 616 Guiné Janeiro de 1964 a Fevereiro de 1966.
Um abraço,
João Sacôto
Olá João Sacôto.
Muito contente por comunicar contigo, bem hajas.
A tua informação é muito importante, vou continuar as buscas, pois deve de estar vivo e andar por aí, não vou desistir e, baseando-me nesta preciosa informação, tenho quase a certeza, que com ele vou comunicar de novo.
Já não somos muitos, felizmente estes poucos que somos, naquele tempo, respeitávamo-nos, tínhamos orgulho em cumprir o dever de cidadão, simplesmente olhando-nos nos olhos, éramos fiéis a qualquer compromisso, tenho algumas saudades desse tempo.
Muito obrigado pelo teu tempo e atenção.
Que continues com saúde, vontade em viver, assim como para os que te são mais chegados.
Recebe um abraço amigo, de um companheiro e combatente do teu tempo.
Tony Borié.
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