sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P15004: O segredo de... (24): Segredo desvendado (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 8 de Agosto de 2015:


Segredo desvendado*

Num certo dia, quando estávamos quase em fim de comissão, depois do jantar o capitão chamou-me, e disse-me:
- Mande preparar o pelotão para, pelas sete horas de amanhã, escoltar uma coluna de viaturas, para Farim.
- Qual a finalidade? - Perguntei-lhe.
- Trazer um envelope, com oitenta contos, para pagamento ao pessoal nativo.

De imediato tomei as medidas necessárias para que no amanhecer do dia seguinte tudo estivesse pronto para ir a Farim.

Acontecia que as lanchas da Marinha, que patrulhavam o rio Cacheu, acostavam muitas vezes no cais de Binta. Foi o que aconteceu naquela noite. Como tinha um bom relacionamento com os marinheiros, fui jogar cartas para uma das lanchas.

Em conversa normal, disse ao patrão da lancha que na manhã seguinte ia a Farim.
- Que vão lá fazer? - Perguntou-me.
- Buscar o dinheiro para pagar ao pessoal nativo. - Respondi-lhe.
- Se é só isso, - continuou ele ., nós damos-te boleia.

Aproveitei a disponibilidade dos marinheiros e combinei aparecer no cais, às sete horas do dia seguinte. Entretanto, avisei os furriéis no sentido de manter o pelotão pronto para sair, mas que isso talvez não fosse necessário.

Quando regressei, para dormir, o capitão não estava. Esfreguei as mãos de contente, pois não se podia queixar, ou acusar-me de não lhe ter dito.

Às sete da manhã, quando fui para o cais, ele dormia. Esfreguei de novo as mãos. Entrei na lancha, pelas nove horas levantei o dinheiro na secretaria do batalhão, e regressei a Binta, todo satisfeito, ao leme da lancha, feito turista.

Desembarquei, agradeci a gentileza aos marinheiros, e entreguei o dinheiro ao sargento da companhia. O capitão continuava a dormir.

Entretanto, o sargento mandou chamar os caçadores nativos, para proceder ao respectivo pagamento. O espaço onde funcionava a secretaria ficava ao lado do quarto do capitão. Quando chegaram para receber, os nativos fizeram barulho, e o capitão acordou, mas mal disposto.

Ainda em trajes menores, abriu a porta do gabinete e foi perguntar ao sargento:
- Mas que barulho é este? O que se passa aqui?
- Não se passa nada. Estou a pagar a este pessoal.

Sempre com voz exaltada continuou:
- O Gonçalves já chegou?
- Já, meu capitão. - Respondeu-lhe. Já me entregou o dinheiro.
- É um irresponsável. Não picou a estrada.

E mandou-me chamar.
Quando estava, já, na presença dele, vociferou um palavrão, e disse-me:
- É um irresponsável. Não picou a estrada.
- Não foi necessário. Fui a Farim, na lancha da Marinha.
- Não foi pela estrada?
- Não. Arranjei boleia.
- Desobedeceu a uma ordem! Isso é grave!
- Pois desobedeci. Mas a companhia tem falta de gasolina, e eu poupei.lhe algumas dezenas de litros. E poupei o pessoal, que anda cansado, até doente. Mais, a mais, no rio ainda não há minas.
- Vou dar-lhe uma porrada.

Naquele momento, a conversa ficou encerrada.
Ainda nesse dia, o sargento veio ter comigo, dizendo-me:
- Olhe que o capitão vai mesmo dar-lhe uma porrada.
- A sério?
- Sim, a sério. Já me pediu o RDM, para ver o castigo a aplicar.

Naquela altura, quase no fim da comissão, uma porrada era algo complicado. No entanto, disse ao sargento:
- Diga-lhe que eu até esfreguei as mãos, de contente, quando me falou no assunto. A tal porrada, não vai ser um castigo, mas sim um prémio.
- Um prémio?
- Sim, um prémio. Não terei mais de o aturar. Quer prémio melhor?

Não sei se o sargento trocou com o capitão mais alguma conversa, sobre o assunto. O certo é que os dias foram passando, e acabei por não sofrer porrada nenhuma.
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Notas do editor

(*) Outro segredo de Domingos Gonçalves no poste de 7 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14981: O segredo de... (22): O problema não eram os pecados, - os nossos segredos -. O problema acontecia quando quem mandava em nós desvendava os pecados (Domingos Gonçalves)


Último poste da série de 10 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14991: O segredo de... (23): Histórias escondidas com o rabo de fora (Mário Vitorino Gaspar)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Bela história, melhor segredo... Na realidade, um homem estava sujeito, se o RDM fosse aplicado à letra, a ser preso por ter cão e por não ter cão... A lógica da unidade comando controlo tinha estas coisas perversas.. E a tropa sempre foi assim, em toda a parte, em todos os tempos: obedece-se a ordens, e estas nunca se discutem... A eficência e eficácia dos militares estavam aqui... O problema (incluindo ético) é quando quem dá ordens é um cego que conduz um bando de cegos para o precipício... Àb. Luis

Anónimo disse...

Este tema de relacionamento dos capitães com os subalternos das companhia merecia ser considerado. Eu revejo-me nesta história porque sofri bastante com o meu comandante de companhia que para camuflar a sua ignorância e incompetência usava a força dos seus galões . A quem tiver possibilidade recomendo vivamente a leitura dum livro antigo que se chama a Psicologia da Incompetência dos militares. Aparece descrito a razão de muitos dos desaires das campanhas militares comandada por grandes nomes. Devia ser de leitura obrigatória nas Escolas Militares.
José Pedro Grilo
ex-combatente

José Botelho Colaço disse...

Não há regras sem excepções na minha companhia de caç. 557 funcionava como uma família o capitão era como se fosse o pai, havia respeito consideração e ordem, quando havia um problema fosse qual fosse tinhamos o apoio do comandante para o resolver.
Por isso digo foi de certeza a única coisa boa que me aconteceu na tropa foi ter como comandante o capitão João Luís da Costa Martins Ares.
Ainda hoje essa unidade, amizade é o cerne mais notado nos almoços anuais de convívio, todos os adjetivos que usasse carecem por defeito para qualificar este comandante.
Obrigado capitão.

Um abraço
Colaço.